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A Criança (um pequeno e resumido conto)

Um grito rompeu a noite, acordando-a do torpor negro, enquanto o seu veludo cobria São Petersburgo. Fora um grito de dor e alívio, um grito que se extinguiu na imensidão de uma minúscula habitação que se desfazia aos poucos com o passar inexorável dos anos. Quando Ele abriu os olhos, Ela cerrou-os. Oferecera-lhe o último fôlego num suspiro há muito preso no seu íntimo. Por fim, poderia descansar.

A parteira segurou a criança nos braços, observando os bracinhos débeis que se erguiam para a sua face. O pequeno ser parecia não sentir o frio que retinia em cada partícula de ar, e os olhos, de um cinzento expressivo, estavam abertos e miravam-na com uma curiosidade que nunca antes vira noutro recém-nascido. Não se surpreenderia se, quando crescido, se tornasse num rapazinho inteligente. Mas a um plebeu não era dada escolha. Ou trabalhava, ou mendigava. Essas eram as regras no Império dos Czares.

Embrulhou-o num trapo branco, onde o limpou do sangue e dos resquícios de líquido amniótico. Mal deu atenção ao corpo da mãe. Os vivos tinham prioridade, apesar daquele só o parecer estar, por fitá-la tão atentamente. Não fizera qualquer ruído ainda. Era normal que não o fizessem, quando nasciam em pleno Inverno, mas isso acontecia por nascerem mortos. Mas aquele não. Era tal a vivacidade do seu olhar de prata, que sentia um arrepio percorrê-la quando os olhares se cruzavam. Parecia consciente da sua presença, julgando cada um dos seus gestos. Felizmente deixá-lo-ia no orfanato no dia seguinte.

Após trajar a morta convencionalmente, para que, quando fossem buscar o cadáver, não se ressaltassem com os restos sangrentos do parto, saiu para a álgida frescura, iluminada por candeeiros a gás. As botas rústicas deixaram pegadas na neve que se acumulava lentamente fazia uma hora. Quem a quisesse seguir, fá-lo-ia facilmente, porém ninguém palmilhava as ruas numa noite como aquela, pelo menos alguém vivo não o faria.

De manhã, a parteira, com o bebé bem ajustado aos seus braços, avançou decidida até ao orfanato da cidade. O que realmente desejava era ver-se livre do encargo que transportava. Como era possível um bebé tão minúsculo não chorar? Não se assustar com tal mudança que era o aconchego no ventre da mãe e a crueza do mundo? Não parecia correcto.

Bateu com força às altas portas e esperou o que lhe pareceram ser dez minutos, até que alguém se dignasse a abrir-lhe a porta.

- Outro? – Inquiriu uma mulher com frieza, sem estender os braços para receber a criança.

- Sim, outro. Nasceu de madrugada – respondeu, retribuindo o tom, enquanto tomava a iniciativa de se livrar da criança.

A governanta pegou-lhe em contragosto, mostrando uma enorme aversão. A parteira não compreendia como é que uma pessoa daquelas trabalhava num orfanato atafulhado de miúdos. Lamentava por eles, mas nada podia fazer. Aliás, ela encarcerara lá uma boa parte dos órfãos que ajudara a nascer.

Vagamente, o sorriso do menino presenciou-a, de olhos cinza com uma pinta de carvão no centro. Bonito, mas de forma alguma amoroso, muito pelo contrário.

.~.~.

A parteira percorreu o espaço entre o casarão e a entrada, numa pequena corrida. Tinha mais que fazer que ficar na conversa com a governanta Voska. Encostou o portão quando saiu e desceu a rua. O frio entranhava-se-lhe pelo esqueleto, obrigando-a a esfregar os braços incessantemente, desde que largara a criança. Olhou para as mãos sem luvas. Estavam azuladas de frio. Inspirou e expirou com dificuldade. Deveriam ter diminuído uns dez graus, subitamente. A brisa soprou forte, levando dos seus cabelos pretos, o chapéu que a protegia do frio. No mesmo instante, o olhar tornou-se vítreo, e a parteira tombou na direcção que o vento seguia, toda ela azul. À sua frente, o par de pegadas que era o seu e que seguira para o orfanato, estava acompanhado por outros, de pés mais pequenos e descalços, a que ninguém viu dono.

.~.~.

Dez anos depois:

Ivanov observou a governanta Voska ser levada pelas forças superiores, por de trás de um arbusto do pátio. Não sorria nem chorava. Voska era acusada do assassínio de todas as crianças do orfanato que, ao longo de dez anos, foram morrendo, ou desaparecendo, uma a uma. A última que desaparecera, fora um sossegado rapaz de dez anos, magro e pálido, porém, as poucas pessoas que o conheceram, notavam sempre algo de estranho no seu olhar, ou nas poucas palavras que dizia. Era frio e inteligente, mais do que seria recomendado para aquela altura, não obstante do seu aspecto enfezado. O nome do pobre desaparecido era Ivanov, ele que observava através das folhas perenes que o resguardavam. Deixou que todos se afastassem, para sair do seu esconderijo. Esfregou os olhos, como faria qualquer criança com sono, e bocejou.

Apesar de tudo, estava com fome, muita fome. Mais tarde, iria ter com a repugnante governanta à sua cela, antes de a fuzilarem pelos seus hediondos crimes. E aí, devorar-lhe-ia a alma. Não poderia deixar que a desperdiçassem.

O olhar cruel brilhou uma última vez, antes de se extinguir no próprio ar que respirava. Só um par de pegadas, quase invisíveis, mostrava que uma criança descalça, saíra através do portão fechado a cadeado e descera a rua em direcção às almas que se movimentavam atarefadas no centro da cidade. Mas ninguém se apercebia desses pormenores e, entre tantos vivos, ninguém daria por falta de um ou outro. E ele tinha fome.

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sábado, novembro 22, 2008 - 20:52

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