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Depois de Ontem
Partiste. Quando à mesa
num futuro próximo te esperávamos.
Para mim havia um prato, um guardanapo,
um copo, talheres a salvo por e para ti.
Ainda me dóis, tanto.
Mais do que na noite em que de corpo vazio
te senti partir. A diferença é essa
os outros viram-te partir, eu senti-te.
I
Anoitecera. A lua que lhe fazia companhia em todas as madrugadas estava já no céu quando o telefone tocou. Camila a um passo de entrar no quarto e este insistia chamando-a da sala naquele tom estridente que tanto lhe perturbava o silêncio. Parou diante da porta, hesitante. Aos poucos, à medida que o som do telefone se tornava mais ensurdecedor entoava no cérebro de Camila a voz de Elisa: “Não te esqueças de guardar um lugar para mim na mesa”.
Quando tentava decidir-se entre correr até à sala para atender a chamada telefónica ou entrar no quarto, no preciso instante dessa reflexão, o telefone parou e uma rajada de vento vinda da janela que lhe servia de cabeceira fechou bruscamente a porta.
“Não te esqueças de guardar um lugar para mim na mesa”, repetia Elisa. A sua voz parava durante o dia mas assim que a lua invadia a solidão cerebral de Camila, retomava a última frase que dissera: “Não te esqueças de guardar um lugar para mim na mesa”. E Camila não se havia esquecido, a cadeira estivera lá vazia esperando-a, até os talheres haviam sido colocados pormenorizadamente ao gosto de Elisa: o garfo do lado direito, a faca do lado esquerdo. Não fora por seu esquecimento que a tragédia se dera e o cérebro de Camila sabia-o. Maldito coração que insistia em culpabilizá-la. Gradualmente essa pena por cumprir que o seu inconsciente lhe havia aplicado ia-se atenuando, tal como acontecera com a sua rejeição por refeições servidas à mesa. Durante mais de nove meses a presença de Camila nos almoços e jantares limitava-se à solidão do quarto, não fora ter a paciência de Salvador, seu marido, e as louças da noite fatídica teriam permanecido intactas esperando a ressurreição de Elisa.
Talvez fosse mais fácil gerir aquela dor no masculino ou talvez essa presunção se devesse meramente ao egoísmo de Camila. A verdade é que raras vezes ouvia o choro de Salvador ou este se permitia a abordar o assunto, seria mais corajoso? Insensível? Tinha sido capaz de cumprir as suas responsabilidades quotidianas com a mesma rotina de sempre, por vezes isso perturbava Camila ao ponto de lhe ter asco, uma espécie de aversão que só o calor da intimidade atenuava. E esta era necessária, tão cruelmente indispensável para que todas as más memórias se restabelecessem.
Apesar disso, nos primeiros contactos após a partida de Elisa a textura e o odor da pele de Salvador causavam-lhe uma certa repugna, após se esgotarem um ao outro de desejo Camila afastava-se a um canto da cama, aguardava o sono do marido e corria para debaixo do chuveiro onde agredia o corpo compulsivamente na tentativa de apagar qualquer vestígio de um possível fracasso entre os afectos consumados. Aí regressava ao pensamento a frase angustiante: “Não te esqueças de guardar um lugar para mim na mesa”, Camila contorcia-se ao ritmo daquelas palavras enquanto exagerava ainda mais a violência corporal, só o ventre sobrevivia à sua revolta. Tacteava-o com a delicadeza de um contacto nupcial e apetecia-lhe beijá-lo com os próprios lábios, chorava. Chorava com e sem lágrimas.
Interrogava-se acerca do choro de Salvador, seria este demasiado contido e por isso imperceptível? Procurava doentiamente em cada gesto casual do marido impressões de dor, precisava desvendar o luto dele, ter a certeza que não era a única mergulhada naquele sofrimento oceânico. Além de tudo, o que mais a atormentava era a perfeita consciência que só ela tinha ouvido as últimas palavras de Elisa, o resto do mundo desconhecia-as e isso acarretava uma responsabilidade insuportável. “Não te esqueças de guardar um lugar para mim na mesa”, palavras que pareciam andar aos tombos na sua barriga, agora vazia, oca, inútil.
Camila mantinha-se inerte, prostrada junto à porta do quarto. Emaranhada em memórias o som do telefone tornara-se imperceptível. Numa acidental retoma da realidade apercebeu-se que este voltara a insistir no mesmo tom agudo de sempre.
Em breves segundos, Camila, perguntou-se a si mesma se teria forças para ir até à sala, sabia que sim. Sabia que não podia adiar a proximidade com Eduardo por muito mais tempo. Ergueu-se já meia extenuada pelo entoar do telefone e dirigiu-se trémula até à sala. Entrou em pontas de dedos como que receando acordar alguém, trazia no peito um aperto fundo que aumentava a cada passo em direcção ao telefone cujo som parecia cada vez mais sobressaltado. Olhou-o e ainda antes de pegar no auscultador já o semblante de Eduardo se vislumbrava na sua frente, adivinhava-o do outro lado da linha. Fechou os olhos e encostou o telefone ao ouvido sem capacidade de pronuncio. Por pouco não desmaiou na confusão imagética que lhe invadiu o pensamento, do outro lado a mesma expectativa silenciosa.
Subitamente a voz terna e sonolenta de Eduardo: “Amar-te-ei mais do que a qualquer outra mulher”, a saudade invadiu-a. Camila encolhia-se agarrada ao telefone acariciando-o com a quentura de todos os mimos reservados a Eduardo.
A chamada certamente tinha caído e nenhum sinal se ouvia, somente o gemido grave do silêncio, seria a respiração pausada de Eduardo, incapaz de desligar? Também ela não conseguia desligar-se dele, acalentava o seu amor quase obrigando-se a carregá-lo pela vida como uma penitência.
Imaginava os dois de mãos dadas, sorridentes, cedendo ao maior dos afectos humanos. Muitas vezes nessas projecções mentais Salvador participava dos momentos partilhados com Eduardo, acentuando ainda mais a vontade mórbida de o manter presente, de o gastar em lembranças, de consumir repetidas vezes cada letra da sua frase perfeita: “Amar-te-ei mais do que a qualquer outra mulher”.
Angustiava-a as conversas em vão com Salvador, tentando explicar-lhe estes argumentos, fazendo tudo para convencê-lo da benignidade desta sua insistência pelo que sentia por Eduardo. Sabiam ambos que a sombra dessa relação seria inapagável.
Havia noites em que Camila sonhava com o som do telefone, aí enroscava-se no corpo de Salvador, sentindo-lhe o pulsar, procurando desesperadamente uma sensação carnal inspiradora de vida. Nesses momentos não queria admitir a morte como um facto consumável. O que mais lhe custava eram as aparições constantes da lembrança de Eduardo aquando dos ensejos íntimos com Salvador, cada vez que o marido lhe presenteava os seios assaltava-a uma intensa frustração almejando a boca de Eduardo sugando-lhe os mamilos com toda a sofreguidão do instinto humano, um misto de dor e prazer.
Em plena consciência do quanto o seu matrimónio estava a ser contaminado não podia negar a Salvador as suas obrigações de esposa, nem negar-se a si mesma a possibilidade de concretização das únicas esperanças que lhe restava, ainda assim, a excitação limitava-se à pele enquanto o espírito permanecia impenetrável. Por vezes Salvador agarrava-a e ela hesitava, pedindo-lhe com o olhar que não a desejasse nunca mais, como se essa fosse a desculpa perfeita para desistir da vida, para não mais necessitar buscar forças onde estas escasseavam de dia para dia. Mas ele amava-a, amava-a tanto! Jamais deixaria de a querer possuir como mulher e como cúmplice de emoções, ainda que subtilmente partilhadas.
Talvez a grandeza do sofrimento que se abateu sobre eles tenha justificado a incapacidade de unirem esforços, cada um cavou a sua dor tão fundo que esta se lhes tornou inacessível de parte a parte.
As infusões do teu espírito
tranquilizam-me.
Todos me diagnosticam um estado
inquietante. Enganam-se.
E nesse engano perdem-me
enquanto me ganhas.
II
Camila entrou no quarto como se de lá nunca tivesse saído. Fechou a porta. Deitou-se sobre a colcha bordada à mão, rendada, verde água. Ema beijou-lhe a testa, num tom apaziguante acariciava-lhe os membros superiores. Camila desejava que ela pudesse estar verdadeiramente ali, que a passagem do vento pela sua pele fossem de facto carícias de Ema, olhava a lua pela janela, tão distante quanto a companhia de Ema. Ela havia sido a terceira a partir e no íntimo de Camila não sobraram lágrimas para a sua perda, conseguindo com isso que Ema lhe arrancasse sorrisos quando lembrada. Com Elisa e Eduardo tal não acontecia, mas com as lembranças de Ema abria-se um refúgio de paz onde Camila se embrionava como um casulo, ficava horas deitada sobre aquela colcha com cheiro a pó de talco, de olhos entreabertos, por vezes desleixando-se ao ponto de levar o dedo à boca, o mesmo dedo da mão esquerda com que Elisa lhe mostrou ser canhota. Pareciam-lhe tão sóbrios esses instantes que a lucidez de Salvador interrompendo-lhe todas as vivências de memórias lhe soava insultuosa.
Quando Ema aparecia não ousava desconfiar da sua real presença. Camila agarrava-se à almofada apertando-a contra a barriga, um abraço abdominal que lhe dava a sensação de sentir entrepernas o contrair orgásmico dos músculos vaginais que outrora pertencera a façanhas do marido.
A saudade de Ema não era daquele tipo de ausência em que as lágrimas se derramam sem parar, era um outro tipo de saudade ou pelo menos manifestava-se de forma diferente. Não chegou a segurá-la nos braços e talvez isso a dotasse de todo um imaginário quimérico onde a morte não tivesse passado de um salto para a eternização dos laços entre as duas, como se no instante em que Ema se esvaneceu em sangue, esta tenha alcançado a imortalidade de toda a vida projectada na mente e no coração de Camila. Porque ela se transformou em sangue e sangue é vida. Muito diferente de tê-la visto na condição de cadáver, o maior tormento na recordação de Elisa e de Eduardo.
Ema aparecia-lhe sempre como um sonho angelical que mesmo não sendo senão sonho assumia contornos de verdade absoluta. Camila conhecia o corpo de Ema, sabia a cor dos olhos dela, a textura dos fios de cabelo, o gosto das suas nádegas, a delicadeza das suas unhas, cada pedaço de alma estava materializada ao pormenor.
Camila adormecia sobre a colcha e acordava com o corpo gelado, sentindo-se leve como uma pena, capaz de ganhar asas e libertar-se. Era quase sempre aí que Salvador entrava no quarto, deixava a porta entreaberta e ficava a dois passos da cama observando-a, antecipando a sua nudez.
De novo Eduardo: “Amar-te-ei mais do que a qualquer outra mulher”. Ao ouvir Eduardo os olhos de Camila brilhavam e o marido interpretava esse facto como um sim, então, aproximava-se lentamente. Poupavam-se em rodeios, partiam com pressas para a satisfação orgânica. Propunham-se a uma troca de afectos instantâneos. Salvador precisava do amor de Camila, precisava de a sentir, de a ter colada a si, de a ouvir num tom de voz que não estivesse magoado.
Para ele, fazer amor com Camila era uma inexplicável tentativa de obrigá-la a não se esquecer da paixão que existia entre os dois, ele duvidava que essa pudesse ser a cura para os sofrimentos que tinham vivido mas não se importava de possibilitar a Camila tal esperança, entregava-se a ela numa plenitude invejável perante a frieza que lhes habitava o lar. Todavia, a cada momento de amor, receava que dele pudesse brotar uma tempestade, que novamente tudo ao redor se inundasse de lágrimas. Enquanto isso, Camila assumia a intimidade entre ela e o marido como um compromisso em prol do mesmo interesse, a cura para apagar o passado, para quebrar de vez a sensação de fracasso que os assolava, um milagre. Obcecada por essa conquista nem de relance pressuponha a existência de amor e que este fosse a causa dos suores que gastavam juntos, o sexo de Salvador entrando-lhe no corpo acentuava a obsessão de cura num sentido inexplicável e os movimentos deste entorpeciam-na como que personificando as perdas sucedidas. Voltava a ter Elisa e Eduardo e depois a mesma sensação de vazio. Ah! Gritava! Gritava tanto, rasgava a garganta com a mesma força com que também tinha sido rasgada. Salvador entrava em delírio, transbordava de prazer com os gritos da mulher, percebia que, afinal, ela ainda o respirava em cada poro. Enchia-se de coragem.
Camila acreditava plenamente que Ema jamais a abandonaria. O universo entre as duas não era feito de palavras como acontecera com as despedidas de Elisa e Eduardo, o que restara de Ema eram acima de tudo silêncios, muito menos fugazes. Os silêncios são sempre mais profundos do que qualquer palavra com pretensões ao infinito.
O mundo de Camila escureceu na noite em que o lugar de Elisa ficou por ocupar na mesa, voltou a iluminar-se com a chegada de Eduardo, voltou a escurecer com a sua partida, iluminou-se por e para Ema... e até hoje cobria-se de luto.
Os dias gastos,
à míngua da presença dos ausentes.
III
Camila sempre gostara de ser mulher, costumava preocupar-se com o seu visual, viver com a sua feminilidade inflamada ao rubro, mas não foi assim que as circunstâncias se mantiveram.
A sua primeira negação da condição de mulher surgiu após a partida de Elisa, sem ela sentiu-se mulher pela metade ou mesmo uma não-mulher, forjada em vísceras femininas incompetentes. Gritava histericamente quando se via ao espelho percebendo o vácuo em que se transformara o seu corpo, percebendo que não aguentaria viver assim, aceitar-se daquela forma inútil. Ao mesmo tempo gostava demasiado de Salvador para ser capaz de se afundar em lamúrias privando-o da esposa que tinha escolhido para sua companheira.
Sempre precisara de Salvador para o amar, cuidar e partilhar a sua vida com ele, era a margem sólida que lhe permitia avançar destemida para qualquer horizonte. Por isso, Camila decidiu que voltaria a tentar ser mulher, uma verdadeira mulher, mas depois apareceu Eduardo pondo à prova a sua resistência, levando-a para além de si mesma na capacidade de lutar por quem se ama, perfurando-lhe o coração sem retoma. Para Camila a chegada de Eduardo antecipava a vinda de alegria, de maravilha e nunca de sofrimento ou algo semelhante ao que restara de Elisa, mas foi exactamente isso que aconteceu e numa intensidade ainda mais alarmante. Oh Deus! Jurou nunca mais se erguer da cama, jactar-se de quaisquer esperanças.
Até que veio Ema, reinventando todas as possibilidades, obrigando Camila a dar instintivamente um salto para uma realidade merecedora de força e vontade. Uma ilusão que pelo menos lhe poupou na sua duração, passando Ema a ser para Camila um talismã oculto de fuga à dor.
Desde muito criança que Camila sempre sentiu uma enorme curiosidade por tudo e possuía uma ágil imaginação. Muitas vezes deparava-se consigo observando os transeuntes e divagando sobre identidades, era estranho que alguém assim tivesse desistido de procurar uma vida para si própria. Ela, que tanto sonhara com a felicidade eterna, abdicara de todos os seus projectos profissionais na certeza de se dedicar a cem por cento ao ambiente familiar, ela, que desde cedo percebeu que Salvador era o homem que a faria sentir-se realizada a cada dia com um simples beijo ou um aperto de mãos. O que mais a indignava era exactamente isso, ter destruído um sonho planeado a dois, ter frustrado as expectativas do homem amado, se a dor tivesse sido só sua teria sido menos penosa.
Camila fora ensinada a nunca ter medo, a ser destemida. Abandonara tudo para acompanhar o marido numa carreira internacional, até ali nada disso a tinha intimidado e agora, quando chegara a hora de ser verdadeiramente corajosa, de enfrentar o sangue e a morte, o facto de estar a pôr em risco todo um futuro planeado detinha-a, mesmo sabendo que tudo se poderia tratar apenas de uma questão de tempo.
Quase se arrastava pelos corredores do lar. Ocasionalmente tinha rasgos de energia, revolucionava a casa numa só tarde, dispensava os serviços da empregada, recebia o marido com jantares à luz das velas, mas num ápice o entusiasmo esmorecia.
Salvador nunca se alterava. Não gritava, não desfalecia, não espelhava sofrimento no olhar, ele até sorria, o que por vezes era encarado rancorosamente por Camila. Ele esforçava-se por tranquilizar a mulher, com o passar do tempo e percepcionando a cronicidade dos comportamentos de Camila tentava de todas as maneiras aproximar-se dela, cada vez mais exilada num mundo só seu.
Entrou no quarto, lá estava ela, incompreensivelmente deitada, dormindo, sobre a colcha bordada à mão, rendada, verde água. Salvador aproximou-se, sentou-se a seu lado, foi-lhe acariciando a nuca, levantou-lhe ligeiramente a cabeça e pousou-a nas suas pernas. Ficou a olhá-la, a entrançar-lhe os cabelos. Camila acordou, com uma expressão penalizada, o abandono de Ema ante a proximidade de Salvador deu-lhe vontade de chorar. Ela chorava enquanto as lágrimas de Salvador se mantinham fiéis a uma chuva interior.
Quem pensaria que o amor pudesse vir a figurar uma zona de combate? Isso não parecia perturbar tanto Salvador quanto perturbava Camila, bateriam os seus corações ao mesmo ritmo?
- Porque me estás a fazer isso ao cabelo? – perguntou-lhe Camila.
- Porque gosto. – disse-lhe ele.
Pegando numa moldura de fotografia exposta na mesinha de cabeceira acrescentou:
- Queria arranjar-te o cabelo até que ficasses igual à fotografia, queria ver-te com o mesmo sorriso quando acordasses.
Por minutos Camila parecia perdida na contemplação da fotografia.
- Estás a lembrar-te da alegria que transparecias naquela altura? De como te ficavam bem as tranças? – questionou-a.
- Não. Estava a lembrar-me da tua expressão de orgulho e admiração enquanto me fotografavas. – respondeu, desviando o olhar.
O rosto de Salvador fechou-se, rangeu os dentes num sinal perturbador, mas de imediato disfarçou convencendo-a a descer para jantar.
- Também algo em ti se alterou Salvador. – retomou ela.
Ele sentiu-se comovido.
- Meu Salvador. – acrescentou-lhe.
- O nosso amor continua o mesmo. – afirmou-lhe o marido.
Estava a acabar de entrançar o cabelo de Camila quando esta decidiu manifestar a sua afeição por ele, trazendo-lhe as mãos para junto dos seios, dando-lhe a conhecer o ritmo do seu coração, talvez este conseguisse ser mais elucidativo. Ele debruçou-se sobre ela e beijou-lhe a tez luminosa.
Salvador parecendo preocupar-se seriamente com ela, ficava impressionado com qualquer gesto da esposa, apesar de pouco perceber da maioria das suas atitudes, observava-as como se se tratassem de coisas avaliáveis por observação ou pragmatismo. Acto bem intencionado mas insuficiente. Faltava à sua preocupação com os comportamentos de Camila a sensação de os considerar verdadeiros, embora sempre tenha sido sensível aos sentimentos da mulher, nunca deixando de a ouvir e de lhe dar oportunidade de falar. Aliás, ela tinha-se apoderado de todos os domínios familiares, cada vez que entrava no quarto ele sentia-se um autêntico estranho, a alma e espírito de Camila dominavam toda a atmosfera, muitas vezes a única reacção que lhe era possível nos esforços pela compreensão da mulher passava por se afastar a um canto e esperar um gesto afirmativo por parte dela.
Depois do jantar Salvador retirou-se da mesa juntamente com Camila. O final do dia estivera favorável entre os dois e por isso a noite adivinhava-se promissora.
- Talvez possamos ver juntos um pouco de televisão. – sugeriu Salvador.
- Pode ser, mas não me apetece ficar no sofá, preferia ir para o quarto. – disse-lhe ela.
Salvador lançou-lhe um olhar tolerante, estendeu-lhe a mão e depois, pondo-lhe um braço por cima dos ombros, caminharam juntos até ao quarto. Camila parecia estar satisfeita por aquela proximidade entre eles, tinham conseguido conversar, seguiu-se um jantar tranquilo, Camila tinha-se mantido à mesa sem nenhum ataque de pânico, mas de repente enquanto se dirigiam para o quarto voltou-se com um ar ameaçador:
- Sai daqui! – disse para Salvador, afastando-o.
Salvador ficou magoado com aquele acto repentino e deslargou-lhe as mãos de forma agressiva, então ela acrescentou, com uma voz suplicante e queixosa:
- Não te ofendas, por favor. Continuo a gostar de ti, só me apetece estar sozinha.
Antes de se afastarem, Salvador ainda insistiu com o olhar em ficar, mas finalmente foi para o sofá encostar-se a ler um livro. Pareceu-lhe sentir sobre as costas o peso duma culpa desconhecida e involuntária.
Nessa noite começou a trovejar e a relampejar de tal modo que todos os vidros das janelas estremeciam. Com a furacidade dos relâmpagos a rasgarem o céu negro Camila sentiu-se assustada como uma criança, olhou para o reflexo dos clarões brancos nas cortinas, balbuciou de medo, recostou-se na almofada e esticou a mão, que tremia, até ao telefone à sua cabeceira. Após alguns toques de chamada Eduardo atendeu:
- “Amar-te-ei mais do que a qualquer outra mulher”.
Camila tentou murmurar alguma palavra mas estava tão assustada que não lhe foi possível dizer nada.
Camila recostou-se, tentou respirar de forma comedida tranquilizando-se. Durante esse instante dezenas de trovões explodiam lá fora e ela hesitava em se perguntar porque não haveria de se dirigir até junto de Salvador.
Chamou por Ema para que viesse aliviar-lhe o pânico e na aflição de sentir medo começou a latejar-lhe a mente: “Não te esqueças de guardar um lugar para mim na mesa”, também os trovões lhe começaram a repetir aquele discurso exterminador, gritavam-lhe severamente.
Elisa sempre fora o seu sonho e Camila sempre soubera que um dia a teria na sua vida.
O clarão dos relâmpagos davam-lhe ainda mais a sensação de viver num vácuo, Elisa ocupara-lhe tempo e espaço, fora-se embora tão repentinamente que num ápice parecia nunca ter existido, como se apenas para Camila tivesse tido tamanha dimensão. Camila nunca aceitaria isso, não tinha o dom do esquecimento fácil, violentava-a a lembrança constante de Elisa, mas ao mesmo tempo receava o poder do esquecimento, como se aquela dor se tivesse tornado um mal necessário.
Entretanto a trovoada cessou, mantendo-se apenas o ruído da chuva.
Desde que a tragédia se apoderara sobre ela, Camila sofria de uma necessidade patológica de privacidade, buscando na solidão a compreensão que mais ninguém lhe assegurava, à exclusão de Ema, ninguém mais conseguia penetrar-lhe tão fundo e decifrar-lhe o que lhe habitava as entranhas. Era perfeitamente concebível no seu pensamento que um dia aquela solidão, por enquanto companheira e amiga, pudesse vir a matá-la. Mas porque razão haveria de recear essa ameaça?
Puxou os cobertores até ao pescoço e tentou dormir. O coração continuava a bater aceleradamente, sentia-o no céu-da-boca. Camila detestava os minutos que antecediam o sono, transfiguravam eternidades.
Rasgo as cicatrizes
já com fendas quase uniformes,
centrifugo os amores com violência.
Falta-me um toque
que seja profundo, rebuscado, visceral.
Encontro-o nas vossas mãos e (ai!)
como é intensa a leveza de ver
estas duas mãos solitárias
transformadas em outras seis.
IV
De manhã, ainda balbuciando pelo sono, Camila dirigiu-se à cama de Salvador, entregou-se a ele duma forma muito afectuosa, nessa manhã deram-se um ao outro mais intensamente do que vinha acontecendo nos últimos anos. Ela queria redimir-se do desaire que tivera na noite anterior e Salvador soube receber essa bênção.
Fizera-se tarde, já ele tinha saído para o emprego quando Camila reamanheceu. Ao despertar sentiu uma imensa pena, de tudo, de todos os problemas pessoais presentes nas vidas humanas.
Certa de que não se queria deixar dominar pela inércia do sofrimento e que, ao almoço, receberia o marido com o mesmo tom amoroso que tinham partilhado no leito, Camila precisava abreviar a manhã, sem que nela sobrassem espaços para receios ou sonhos. Resolveu cobrir-se apenas com um fino roupão de seda rendilhada, desceu à cozinha engolindo de um trago sumo de laranja e saiu para o jardim que ficava nas traseiras de sua casa.
Tinha sido um dos seus lugares predilectos de passeio com os três filhos, especialmente, com Eduardo e Ema. Após a perda de Elisa a sua actividade condicionou-se ao repouso e a única possibilidade de passear ao ar livre com Eduardo e depois, repetidamente, com Ema era desfrutando daquele lugar. Tratava-se de um jardim simples, com uma extensão razoável de relva, uma cadeira de baloiço e um tanque que existia no terreno desde a construção da casa e que se mantivera ali, inutilizado, esquecido.
Camila descalçou-se, pousou os pés na relva orvalhada e caminhou lentamente, alternando a concentração com constantes abrir e fechar de olhos, ao ritmo da respiração. Sentia o vento arrastar-lhe os cabelos, sentia o sol devolver-lhe cor à expressão e ia, a cada passo, sentindo, uma a uma, as lembranças de Elisa, Eduardo e Ema. Não se querendo emaranhar na memória decidiu voltar para dentro.
Quando se dirigia para casa parou em frente ao tanque, coberto de água turva, transbordando pela forte chuva da noite anterior. Ficou a olhá-lo fixamente durante vários minutos, aproximou-se. Havia algo naquela água que lhe causava arrepios. Não lhe antecipava nenhum perigo, transmitia-lhe a percepção nítida do que se passara na sua barriga... o mesmo silêncio, a mesma estreita imensidão de vida.
Absorta da realidade começou a ouvir o batimento dos três corações, ecoando na água, ainda mais audíveis do que acontecera aquando das suas presenças no consultório médico. Estavam ali dentro os três e chamavam-na como se anos antes pudesse ter entrado em si mesma, assegurando-lhes a vida. Afastou-se, cautelosamente, de chão firme e mergulhou no seu próprio mundo interior.
A empregada caseira ainda a chamou da janela da cozinha, anunciando a chegada do marido para o almoço, mas antes que Camila pudesse responder ouviu-se um baque profundo.
Verdadeiramente nunca pensara suicidar-se, nunca, menos ainda se imaginasse o milagre concebido na última noite de amor a que disponibilizou a sua alma.
Salvador correu a socorrê-la, pendeu-a nos braços: depois de morta tinha uma aparência muito mais meiga e feliz do que costume.
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