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Desenca(r)ne-se

Ah, finalmente... descanso em paz! E como foi merecido! 72 anos muito bem vividos, tinham sido aproveitados ao máximo. Lógico, poderia ter vivido mais, hoje qualquer um estica até os oitenta... Mas não, estava satisfeito. Tinha vivido o bastante e aproveitado bastante. Agora, era hora de descansar e relaxar, curtir um pouco dessa tal eternidade. Um último compromisso, porém... meu velório.
Claro, não podia deixar de dar uma passadinha, rever os amigos, um último beijo na Ritinha, afinal, tinha sido tão educado a vida inteira que não seria agora que começaria a passar recibo de mal-educado.
Por enquanto, estava por ali, seu corpo nu deitado na mesa do necrotério. Era uma visão estranha vê-lo assim, será que eu estava mesmo tão enrugado? Ah, já deve ser o tal do rigor mortis, esse estado que dizem que dá na gente quando passamos dessa para a melhor. Mas o fato é que não me sentia muito confortável daquele jeito, cadê o pessoal que vem me arrumar?
Afinal, Ritinha, ah, a eterna Ritinha, tinha escolhido meu melhor terno, aquele que comprei para a formatura da Ana Júlia, minha netinha, a única que tinha conseguido terminar o curso superior... Como fiquei emocionado aquele dia, um monte de gente importante, até o reitor da tal faculdade apareceu. Também, se não tivesse aparecido, mereceria levar uns tapas, pois que sacrifício para pagar aquela faculdade...
E eu lá, todo, todo, super empetecado, o terno nos trinques, ninguém precisava saber que tinha sido naquela liquidação de sobras de final de ano. O peito cheio de orgulho, vendo Ana Júlia subindo no palco e recebendo seu diploma – que para minha frustração descobri depois que era apenas um canudo vazio, mas isso é detalhe – eu tenho uma netinha que é bacharel! Fiquei tão emocionado com aquilo tudo que nunca mais usei o terno. Agora, ia usá-lo novamente, pela última vez. Esse sim, era o famoso paletó de defunto...
Mas, opa, o que é isso? Um rato! E não era qualquer rato não, era um daqueles imensos, tão grande que faria qualquer rato fugir de medo. Mas o que ele queria por ali? E por que não aparecia ninguém para afugentá-lo?
Não é que tivesse propriamente medo, tinha matado muitos ratos antes. Mas não podia dizer que era uma sensação agradável ver aquele bicho asqueroso se aproximando de seu corpo tão indefeso. E não é que ele agora estava me cheirando, será que estava achando que eu sou queijo? Será que estou já assim com um cheiro tão ruim? E o pior é que o maldito continuava cheirando, veio fazendo a linha do braço, chegou até os meus dedos e, ai! O que é isso! Estava roendo meu dedo! Com a maior tranqüilidade possível, como se aquilo fosse um espetinho de queijo preparado especialmente para ele! Isso não podia estar acontecendo, eu aqui, sem poder fazer nada, e aquela besta-fera me comendo aos poucos. Ai, ai, ai, se não chegar ninguém, logo não restará muita coisa para ser enterrada...
Então aquele ser horripilante levantou a cabeça, apurou os ouvidos e partiu à toda para debaixo de um armário. Finalmente, vinha chegando alguém, já não era sem tempo, deixar-me assim, tão indefeso, tão sozinho, ora bolas, eu mereço mais respeito!

Dois homens, vestindo roupas normais, o diferente era só umas luvas pretas, devem estar com nojo de pegar em mim, que coisa. Mas, pensando bem, será que eu pegaria em mim mesmo depois de morto? Está aí uma boa pergunta... Agora um deles está abrindo um armário, que engraçado, tem alguns ternos ali, mas não precisa, quis dizer – como se ele pudesse me ouvir – a Ritinha já separou meu paletó. E ele continuou mexendo naquele monte de velharia – puxa, deve ter alguns ternos ali cujo defunto empacotou quando eu estava nascendo. E então ele separou um. Continuo sem entender, meu terno estava ali do lado, reluzindo, Ritinha deve ter dado um jeito de lavá-lo, estava como novo.
Então começaram a conversar:
- Será que vai servir? Parece que o embrulho é menor que o presunto...
- Cabe sim, você vai ver. No final das contas, se precisar, eu corto atrás e deixo a frente ajeitada, ninguém vai ver as costas desse aí mesmo.
- Quanto você acha que a gente consegue no outro?
- Isso aí é coisa fina, de bacana. Sabe, nem parece, pela estampa do presunto, que tinha dinheiro para um terno desses...
- É, o povo gasta muito dinheiro com besteira hoje em dia, vê, um velinho pé rapado desses metido a andar no maior estica...
- Vai dar para faturar um ...
E continuaram, mas eu já não estava mais prestando atenção. É que tinha começado a cair minha ficha! Santo Deus, esses canalhas querem me colocar em um paletó qualquer, mais antigo que a múmia do Egito, quase esfarrapado, e vender meu terno para qualquer um, faturando um dinheiro em cima ainda! Como é que pode! Não se respeitam mais nem os mortos nesse país! Canalhas, isso não vai ficar assim, vocês acham que Ritinha não vai perceber? Vocês acham que isso vai ficar por isso mesmo? De jeito nenhum!
E eles começaram a me colocar naquela coisa medonha, posso até imaginar o cheiro de mofo daquilo, fosse eu vivo e já estaria com o nariz todo trancado por conta dessa porcaria. Que absurdo! Vou processar o dono dessa funerária! Pois, afinal de contas, paguei meu plano direitinho, todo mês depositava aquele dinheirinho, não que me imaginasse morrendo, coisa que nunca parei para pensar, mas justamente para não dar dor de cabeça para Ritinha, minha Ritinha querida. Mas eles vão ver, deixa Ritinha chegar, vai dar na cara na hora...
E o jeito como mexiam em meu corpo – ei, isso aí ainda é meu! Mais cuidado camarada! Parece até que vão me deixar cair da mesa. Haja mal jeito! Ei, cuidado aí! Foi só pensar e lá ia meu pobre corpo direto ao chão, caindo que nem melancia podre, estatelando o nariz no chão – e não é que deram um jeito para que eu caísse de cara para o chão?! Algumas horas atrás e ali teria feito uma grande poça de sangue. Só que o sangue já deve ter acabado, pois por ali não escorreu nada. O nariz ficou meio amassado, deve ter quebrado, coitado.
-Mas que coisa, João, toma mais cuidado. Se estragar muito o povo pode começar a reparar!
- Foi mal, Ricardo, mas escorregou. Você consegue dar um jeito nesse nariz?
- Isso a gente faz assim, oh –e com um rápido movimento de mãos, que fez um horrendo estalido, torceu o nariz, na direção original...
- Ficou meio torto ainda...
- Calma, a gente dá um jeito. Você acha que isso nunca aconteceu antes? Olha bem, tenho aqui esses pinos de metal, enfio aí dentro, nada mais tira do lugar. Depois, é só colocar aquele algodãozinho e pronto. Não vai dar para ninguém perceber...
Pois é, mais uma decepção para levar desse mundinho... será que nem na morte vou conseguir um serviço decente. Vivo, era aquela coisa, fila para isso, fila para aquilo, informações erradas, mais filas, uma roda viva de mal atendimento em todos os lugares. Padrão cinco estrelas, para mim, só no céu mesmo. Lá embaixo, no dia a dia, tratamento VIP era só para grã-fino mesmo, aqueles que eu cansei de levar para cá e para lá no meu táxi.
É, não vai ter jeito – aqui estou de mãos atadas, ou melhor, nem mãos tenho! Agora é contar com a Ritinha, que vai dar um ralho nesses cumpadres, que eles não perdem por esperar... E foi assim que vi meu terno novinho sumindo, na hora que eles acabaram e foram embora, me deixando mais uma vez sozinho, só que desta vez, já devidamente acomodado no caixão. Pelo menos esse foi mesmo o que eu tinha escolhido.

Finalmente, cheguei na capela em que serei velado. Um lugar sóbrio, na medida certa, do tamanho de um velório certinho, nada muito suntuoso, mas também bem enfeitado. Mas, e as coroas de flores? Sempre que ia nos velórios alheios, elas estavam lá, pelo menos umas duas, ladeando o caixão, compondo um cenário mais agradável, apesar das circunstâncias. Tinha certeza que aquele baixinho que vendeu o plano falou que estavam incluídas pelo menos duas coroas... E agora? Quem poderia reclamar? Ritinha, ah, lá vinha minha doce Ritinha, logo ela tomaria conta da situação, veria que esse paletó de defunto não é meu, pediria para trocar, providenciaria que as flores viessem... ah, minha doce Ritinha...
Venha cá, Ritinha, dê uma última olhada nesse corpo velho, quem sabe um último beijo – será que vou senti-lo? Não sei... Venha, Ritinha, como fomos felizes juntos... ei, Ritinha, por que você está sentando? Venha cá? Dê uma olhada! Preciso de você! Ritinha! E agora? Não entendi nada. Minha querida Ritinha sentou, sem na primeira fileira de cadeiras, sem nem ao menos vir dar uma olhada no meu pobre figurino! Ah, coitada, deve estar muito abalada, não vai suportar me ver aqui, quer guardar com ela a imagem de quando eu estava vivo... Só pode ser isso... Ou será que não? Será que minha Ritinha é uma Capitu? Tipo aquela do romance mesmo, que todo mundo sabe que traiu, mas que ninguém quer colocar o sino no gato. Ritinha... mas com quem? Quem poderia ser esse infeliz que seduziu minha pobre Ritinha?
Ih, lá vem aquela chata da Patrícia, uma cunhada ardida daquele tipo que toda família tem. Quanta paciência tive nos churrascos, que se tornavam intermináveis com aquela presença que empesteava o ambiente. Para variar, trazia a reboque o Nilo, aquele abespinhado irmão da Ritinha, que só sabia balançar a cabeça concordando com a megera. Veio direto para o caixão, olhou bem nos meus olhos, levantou o rosto e foi logo cochichando com o pamonha do Nilo:
- Nem para morrer esse Zé Ninguém conseguiu por uma roupa decente... E lá já ia o Nilo balançando a cabeça, concordando. Mas que danada! Sua idiota, será que não percebe que essa roupa não é minha? Vá lá chamar Ritinha e essa situação se resolve rapidinho... Ah, mas essa aí não moveria uma palha por mim, nem quando estava vivo. Espera aí, esse barulho eu conheço, é meu Astra 2003... Esse sim, só me trouxe alegrias. Ainda lembro o dia em que sai da loja com ele. Carrão. Depois dele, só levei madame e doutor, me dava ao luxo de recusar corridas de pé-rapado. Não ia desgastar meu garanhão de aço com qualquer um. Era coisa de aeroporto e cinco estrelas para cima. Mas, quem será que estaria dirigindo? Nem me lembro onde deixei a chave pela última vez. Melhor dar uma olhada.
Saiu o motorista, nunca vi mais gordo. Do lado do passageiro, saiu Ana Júlia, minha doce Ana Júlia, doutora Ana Júlia, mais respeito que ela é formada! Deve ser um amigo dela, que veio trazê-la. Esticando um pouco o pescoço – se é que tenho pescoço – consigo escutar o que eles estão conversando...
- Aninha, já te disse, esse carango vale uma nota, vamos aproveitar agora que ninguém ainda se deu conta e vendê-lo rápido. Com a grana, vamos fazer uns passeios diferentes, meu amor, vou te levar para Natal, que sempre foi o seu sonho...
- Sei não, minha mãe não vai gostar muito disso...
- Você sabe que sua mãe não precisa desse carro, nem do dinheiro. Vamos, minha princesinha, o que eu quero é te agradar, você sabe... é só fazer a assinatura igual à do seu avô, daquele jeito que você sabe, e pronto, eu cuido de tudo.
- Você vai me levar mesmo para Natal?
- É claro, meu anjinho, meu doce de coco, vamos juntos para aquela praia maravilhosa, hotel do bom, comida que você quiser, o dinheiro vai dar e sobrar ainda para a gente dar entrada no nosso apê...
Não acredito! Meu Deus! Um malandro do morro com minha neta doutora! Ana Júlia, quê que é isso, não te formei para isso, minha netinha! Abre o olho, olha a pinta desse sujeito, esse aí é 171 na certa, já deve ter dado o cano em um monte de gente, sai dessa, minha netinha! Ainda mais, vender meu Astra, quanto tempo lutei para conseguir isso, minha filha, não faz isso... Ei, para onde vocês estão indo, o velório é aqui dentro... Ah, Ana Júlia foi no banheiro. Mas, que estranho, o alcagüete foi atrás, entrou junto, e o banheiro é feminino...Cheguei mais perto, já ia entrar, quando ouvi uns gemidos.... mas, que coisa é essa! Ana Júlia, meu Deus, Ana Júlia, isso aqui é o velório do seu avô, você nem entrou lá para dar um último adeus, foi para o banheiro fazer sei lá o que com esse canalha! Ai, ai,ai, já estou sentindo que a coisa aqui não vai funcionar muito bem não... já começo a pensar que seria melhor acabar tudo rápido, cortar o cordão e ir logo caçar meu rumo...

O tempo passando, e nada de Ritinha vir me olhar. Que curioso. Ana Júlia, com a roupa descaradamente amassada, veio, deu uma olhada, um segundo só, sentou lá no fundo e ficou trocando risadinhas e chamegos com aquele troglodita... Veio o Paulo, a Maria, o Bené. O Toni, o Igor, o José. Sara, Denise e Flávia. Aquela madame do táxi, D. Clô, não é que ela veio. Também, toda tarde quase eu a levava para passear no Shopping, e tinha que ficar cuidando da Lulu, sua cachorrinha, porque no shopping ela não podia entrar. Veio o Beto, o Duda e o Mateus. Até que foi formando um grupinho considerável, também, afinal, eu não era assim um qualquer, meu carango era o melhor do ponto da João Pinheiro...
Mas que povo barulhento! Não paravam de falar. Não se respeita mais ninguém nessa vida, nem os mortos! E contam piadas, falam sobre tudo, menos de mim. Tudo bem, não precisa elogiar, mas, pelo menos comentar alguma coisa. Bem que gostaria de saber o que vocês pensam de mim, agora que posso ouvir tudo sem que vocês saibam. Mas nem uma palavra ou outra. Como se tivessem se encontrando para um churrasco ou se trombassem na rua por acidente. Estórias, piadas, comentários sobre o tempo, preços das coisas... Bom, pensando bem, eu também nunca fui de ir muito a velório e, quando ia, fazia mesmo era as mesmas coisas. Mas bem que no meu podia ser diferente!
E lá veio vindo aquele fofoqueira da Salete. Como aquela mulher conseguia sempre saber de tudo e de todos! Impressionante. Com certeza, essa era o tipo que ia a todos os velórios, só para poder comentar sobre as roupas de quem também tinha ido. Quantas vezes tinha que agüentar seu interrogatório sobre os passageiros que levava, bastava passar com alguém diferente e, pimba, lá vinha a Salete querendo saber detalhes.
Veio até o caixão, me olhou, se benzeu, e, na mesma hora, vinha chegando a Samira, eterna companheira das fofocas da Salete. Nem bem se viram, e as duas já estavam conversando a toda a velocidade, fazendo comentários maldosos sobre minha roupa – mas nem levei muito em consideração porque sabia que logo estariam falando da roupa de todas.
Foi então que Salete fez algo completamente inusitado. Estava carregando uma sacola cheia de frutas e verduras, veja que coisa, passar em um velório vindo de um sacolão! Acho que aquilo começou a pesar e não é que ela colocou a sacola em cima de mim! Ai, ai, ai, bem em cima de mim, cadê o respeito, meu Deus! E o pior é que ninguém pareceu se importar, deixaram eu ficar com aquilo ali em cima, como se fosse uma estante, um criado mudo, um móvel qualquer para apoiarem as coisas. Que deselegante!
Subitamente, então, um grito assustou todo mundo. Era Ana Julia, que vinha correndo do banheiro, exaltada:
- Um rato, um rato enorme, lá no banheiro!
Atrás dela, esbaforido e ainda arrumando as calças, vinha o malandro, com uma baita cara de espanto. Ana Júlia correu para o lado de Ritinha, que tinha se colocado em pé, ainda não conseguindo se controlar...
- Tem um rato enorme, lá no banheiro, alguém tem que fazer alguma coisa. Foi então que Ritinha, pela primeira vez desde que tinha chegado, falou alguma coisa.
- E esse aí, não serve para nada?, disse, lançando seus olhos para o alcagüete.
-Esse negócio de rato não é comigo não, vovó, tenho alergia a pulga de rato e uma vez quase passei desta para melhor por causa da picada de uma... sua cara medrosa traindo a mentira deslavada...
Então veio lá de dentro um faxineiro do cemitério, acalmando todo mundo:
- Calma, gente, calma. O bicho já é conhecido nosso. Vive rodando por essas bandas e não faz mal a ninguém. Já fui no banheiro e ele não está mais lá. Podem ficar tranqüilos.
“Não faz mal a ninguém!” Quero ver no dia que for você a ter seu dedo devorado por essa pequena besta-fera. Como é que pode deixarem uma coisa dessas. Nessas horas, onde está a vigilância sanitária?

Bom, as coisas voltaram à normalidade. Com o episódio do rato, Salete e Samira resolveram assentar e fiquei livre daquela horrenda sacola de compras. Então reparei em um fulaninho que ia entrando, um tipo esquisito que nunca tinha visto antes. Tipo desconfiado, veio de fininho, olhando para todos os lados. E logo quem acenou de leve para ele? O malandro que estava com Ana Júlia. Deixando Aninha sentada do lado da mãe, o alcagüete veio andando e logo estava trocando cochichos com aquela figura esquisita.
- E aí? Tudo certo?
- Tudo certo, ela já topou. É só pegar a assinatura no recibo e o carango é nosso. Então é só vender e te dou o dinheiro todinho.
- Você já teve tempo demais, quero ver se isso vai dar certo mesmo...
- Mas Jorjão, você sabe como eu sou, não dou ponto sem nó, estou te falando que vou te dar o dinheiro... a mina está completamente na minha, vender um carango desses não vai ser nada difícil...
Não é possível, bem nas minhas barbas, esse malandro vinha para o meu velório, se atarracha com minha querida Ana Júlia no banheiro, sem um pingo de respeito, e agora ainda vinha negociar com seu comparsa.
Então, de repente, entrou um senhor, todo elegante, terno bem cortado, porte imponente, este sim sabia respeitar uma cerimônia solene como meu velório! Ainda bem que continuam existindo pessoas assim, pessoas que sabem manter as tradições, pessoas que não abrem mão de seus valores... Mas, quem será esse senhor? E não é que não consigo me lembrar? Será um dos passageiros antigos? Puxa vida. Veio caminhando, sorriu para algumas pessoas, acenou para outras, e bem confiante se dirigiu para a frente das fileiras de bancos, sem voltar os olhos para mim (mas eu já estou me acostumando com isso).
Ei, que coisa estranha, parece que esse senhor quer dizer algumas palavras, ficou ali, em pé, como que esperando o silêncio dos outros. Logo, uns foram cutucando os outros, foram fazendo silêncio, todos olhando curiosos para o elegante senhor, que continuava na sua posição de orador. E não é que ele começou a falar mesmo...
- Minhas irmãs, meus irmãos, é com grande pesar que nos reunimos hoje aqui para chorar a perda de uma pessoa tão querida. Uma pessoa que trouxe grandes alegrias a todos nós enquanto esteve conosco, mas que agora se parte para uma outra etapa. O importante é que nos lembremos de seu exemplo...
Puxa vida, nem me lembro quem é esse fulano, mas já gostei dele. Finalmente, alguém pensou em dizer alguma coisa de bom sobre mim, ao invés de matar o tempo contando piadas.
... sempre disposta a ajudar. Com certeza, Jurema era uma irmã querida...
Jurema!? Que Jurema? Do que se trata? Não entendi nada... será que é algum doido? Jurema? De onde ele tirou isso? E não é que continuou falando na tal Jurema...
- Jurema foi uma grande mãe...
Foi então que vi João Vitor, esse sim um sobrinho querido, aproximando-se, chamando a atenção do desconhecido e chegando bem perto de seu ouvido para cochichar:
- Olha, acho que o senhor está enganado. Nós estamos no velório do Nélio.
- Nélio? Que Nélio?
- Nélio, aquele que está logo ali, ex-motorista de táxi...
- Mas, e a Jurema?
- Jurema eu não sei quem é não senhor, mas quem está ali é o Nélio...
Então ele se virou, caminhou até o caixão e, ao me ver, ali todo furibundo, não conseguiu conter um grande enrubescimento. Voltando-se para João Vitor, falou baixo:
- Rapaz, me desculpe. Puxa vida! Ando tão corrido, de um lado para o outro... Sou pastor evangélico, vim para celebrar o velório de Jurema, uma mulher de minha igreja. Acho que entrei no velório errado...
- É, essas coisas acontecem.
- Mil desculpas, já vou embora. E, perdão, meus pêsames, era parente seu?
- Sim, era meu tio.
- Desculpas novamente.
E se virou e foi saindo de fininho, olhando para o chão, tentando fingir que não via ninguém. Mas era só o que faltava! Um pastor evangélico! Logo comigo, que fui católico, ortodoxo, romano minha vida inteira. Minha Nossa Senhora estava sempre pendurada no espelho retrovisor, minha santa protetora. Como é que pode, acontecer isso logo comigo? Onde já se viu, entrar no velório errado para celebrar? Ainda se fosse por engano mesmo, alguém que veio em um mas ia em outro, mas, para celebrar? Bem que eu sempre concordei com o povo que falava que esses pastores evangélicos não tinham muita consideração pelo seu trabalho não, que encaravam a coisa como uma profissão, um velório era apenas mais um compromisso antes de bater o cartão de ponto e ir embora para casa.
Mal sabia ele que quem faria meu velório seria ninguém menos que Padre Jacó, de quem sou paroquiano há pelo menos 20 anos. Padre Jacó, esse sim uma autoridade respeitável da nossa Santa Amada Igreja.
E por falar nele, lá vinha ele entrando. Padre Jacó, que figura abençoada. Benzeu-me e lá foi começar a cerimônia...

Parece que agora ia tudo bem. Finalmente, teria a tão merecida celebração de despedida. Padre Jacó já ia pela terça parte do serviço, mas, que barulho forte era aquele? Estava cada vez mais perto. As pessoas se entreolhavam assustadas. De repente, uma grande explosão! E então reinou o caos.
As pessoas corriam desesperadas, tropeçando umas nas outras, procurando sair da capela de qualquer jeito. Padre Jacó trombou com o caixão e, pronto, lá fui eu de novo me estatelar todo no chão, o caixão partido em pedaços, o paletó chinfrim rasgou-se nas costas, ficou parecendo aqueles aventais que a gente veste quando vai para o hospital, só tem frente. Todo mundo fugiu correndo. Não sobrou ninguém.
Mas, o que teria acontecido? Foi então que vi, olhando pela janela, a fumaça e o fogo e as entranhas retorcidas de um helicóptero! Não é que foi cair um helicóptero justo no meu enterro, minha gente! Bem que eu sempre disse que esses malditos poluíam nosso céu (além de me roubarem alguns de meus melhores clientes, é claro). Caiu, com hélice, motor e tudo. Não teve jeito. O barulho, a explosão, o fogo, ninguém voltaria mais. O jeito agora era esperar a missa do sétimo dia. Por hora, vou ali ajudar o piloto que já vem chegando e deve estar tão perdido quanto eu, há algumas horas atrás...

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segunda-feira, dezembro 14, 2009 - 16:28

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