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Detector de Metais

Auge. Tinha chegado.
Foram anos. Mas cheguei. Uma das vice-presidências para a América Latina. Um dos cinco. Sala, antessala, sala de reuniões, recepção, somando tudo, chegava tranquilo aos seus cento e vinte metros quadrados de sala, com privilegiada vista e, privilegiadíssima, secretária. Carro com motorista. Cobertura total de saúde para qualquer hipótese, em qualquer lugar. Salário de seis dígitos.
Trinta e nove anos. Apenas. E cheguei ao auge. Alguém poderia questionar, dizer que ainda existia a Presidência. Mas essa, pelo Estatuto, era exercida por americano nato. Então, meu auge era mesmo o auge. Seis dígitos. Restaurante privativo. Séquito próprio de seguidores.
Um dia, em um dos muitos jantares que oferecia em minha cobertura duplex, em uma daquelas inserções típicas de quando o assunto acaba, seu amigo Ricardo disse: “vocês sabiam que detector de metais dá câncer?”. Intento alcançado, as conversas reiniciaram imediatamente, com as mais variadas especulações metafísicas sobre os efeitos e as condicionantes morais relacionadas ao fato de ter que se submeter ao detector de metais. Outra feita, seria mais uma daquelas conversas a serem completamente ignoradas e automaticamente apagadas, ou melhor, sequer registradas, nas minhas já sobrecarregadas sinapses memoriais. Neste caso, contudo, acendeu-se uma centelha: eu passava todos os dias por um detector de metais, na entrada do prédio da companhia.
Dia seguinte. Seis da manhã (o que não era nada para quem ganhava um salário de seis dígitos, diga-se de passagem). Porta da companhia. O detector de metais. Pela primeira vez prestando atenção, percebi que se podia passar facilmente pelo lado. Decidido, avancei. Logo, o segurança me abordou: - Senhor Fábio, por gentileza, o senhor precisa passar pelo portal.
- Não, não preciso não – respondi, criando ali mesmo a minha própria regra. Não fora assim até aqui? Não criava sempre as minhas próprias regras? Pois naquele exato instante eu criava a regra de que o Sr. Fábio não precisava passar pelo detector de metais não. Avancei um passo.
- Senhor Fábio, por gentileza, a orientação que temos é que todas as pessoas precisam passar pelo portal.
Ignorei o atrevimento. Na verdade, não foi uma provocação, mas uma concessão. Fingindo não ter ouvido o segurança, daria a ele a chance de achar que não ouvira, e assim, o pouparia de um humilhante pedido de desculpas. Tivesse juízo, ficaria tudo por isso mesmo, mas criada a regra de que o Senhor Fábio não precisaria passar pelo portal. Nem precisaria me incomodar com o segurança, pelo contrário, já até imaginava aproveitar o natal, que se aproximava, para rechear sua caixinha com um valor especial, um gesto que valeria como uma afirmação “veja, tudo bem, eu sei que você estava só procurando fazer bem o seu trabalho”. Avancei outro passo.
Então o inacreditável aconteceu. O segurança me tocou. No braço. Com gentileza. Mas tocou. Um segurança. E disse: Senhor Fábio, peço desculpas, mas tenho ordens para não permitir a entrada de qualquer pessoa no prédio sem que passe pelo portal; pondo ênfase no qualquer, o que só serviu para irritar-me ainda mais. Eu não era um qualquer. Definitivamente, não me enquadrava naquela categoria dos quaisquer. Estava acima disso. Muito acima, no vigésimo-nono andar. Nos meus cento e vinte metros quadrados. Aquele pobre coitado nem sala tinha. Ficava em pé, ali mesmo, ele sim um qualquer.
Coitado. Um coitado. Certamente pensava que conseguiria me tirar do sério. A mim. Não. Voltei e passei pelo detector. Não daria a um segurançazinha qualquer a chance de me ver nervoso. Para depois virar aquelas lendas urbanas que circulam na rádio corredor. Não. Iria, isso sim, resolver isso de outra forma, em outro nível. Amanhã esse segurançazinha não estaria mais aí, e eu poderia tranquilamente passar pelo lado do detector.
Subi direto para a sala do Juscelino, que cuidava das questões relacionadas a espaço físico no prédio. Engraçado, sempre encontrava o Juscelino em minha sala, nos corredores, mas nunca tinha ido na sala dele. Nunca tinha precisado, muito menos tido interesse em conhecer sua sala. Era uma salinha, dezesseis metros quadrados, coisa insignificante. Coitado, tinha a impressão de que merecia coisa melhor, afinal era quem cuidava da sala de todos.
Fui logo contando tudo o que tinha passado. Ele disse: - pois é, Fábio, de fato essas coisas não podem acontecer não. Fique tranquilo que agora mesmo vou providenciar para esse segurança não estar mais lá amanhã.
Ele me chamou de Fábio, lógico, eu já tinha dado essa liberdade há algum tempo. Meu avô sempre me ensinou que é importante criar laços com pessoas como o Juscelino, que, pela natureza de suas funções, podem fazer de sua vida um inferno de pequenos detalhes insatisfatórios. Coloquei as mãos sobre os braços da cadeira, como se estivesse prestes a levantar - e estaria, no instante seguinte – e disse: - Obrigado, Juscelino, mas lembre de avisar ao próximo que eu não preciso passar pelo portal do detector de metais não.
- Bem, Fábio, veja bem, isso não vai ser possível.
Tirei as mãos dos braços da cadeira. Tive a súbita compreensão de que aquela conversa demoraria mais do que eu tinha previsto.
- Por que não?
- Porque todos têm que passar pelo detector, é uma norma sem exceções.
- Mas eu estou autorizando a criação de uma exceção.
- Pois é, Fábio, veja bem, você entende, eu também tenho meus limites, posso fazer e resolver muitas coisas, outras, dependo de autorização superior, então, você entende, não tem como resolver outras coisas.
Aquela fala enrolada já começava a me exasperar. - Juscelino, fique tranquilo, estou criando a exceção a partir de hoje, sou eu pessoalmente quem está criando essa exceção, você não precisa se preocupar.
- Fábio - maldita a hora em que deixei que me chamasse de Fábio, agora estava usando isso contra mim...-, isso não será possível. Essa regra não tem exceção mesmo.
- Puxa, será que vou ter que incomodar o Richard com uma coisa dessas? Falei meio rindo, em tom de brincadeira, tentando deliberadamente dar um tom ameno à minha apelação, pois imagina se eu ia colocar o Presidente da empresa envolvido em uma questiúncula dessa. Terminei a frase com aquele som característico, meio suspiro, meio desabafo, meio um ora essa condensado em uma expiração rápida e concentrada.
Juscelino alteou as sobrancelhas. Algo rápido. Discreto. Uma escapadela, para alguém que tinha desenvolvido durante anos técnicas de controle da linguagem corporal. Afinal de contas, Juscelino era um dos sobreviventes, com mais de dez anos de empresa. Mas não passaria desapercebido. Não para mim. Que era mais sobrevivente do que ele. Mais esperto do que ele. E, sobretudo, muitos metros quadrados de sala na frente dele. Aquilo me incomodou. Profundamente. Foi quando percebi que teria que dar o assunto encerrado naquele nível também. Despedi-me. Não tinha mais como tratar do assunto naquela hora. Subi para minha sala.
Mas aquilo ficou me incomodando o dia inteiro. Enquanto fazia outras coisas, ficou lá, rondando. O fato é que era um assunto daqueles extraordinários, do tipo que normalmente enquadram nos casos omissos e duvidosos. Ou seja, era um assunto que envolvia uma decisão não prevista nos manuais e, uma vez que o Juscelino não tinha resolvido, não tinha mais ninguém a acionar. A natureza do serviço do Juscelino o tornava peculiar, ele não estava subordinado a ninguém! Reportava-se diretamente ao Presidente. Como eu! E eu que achava que só os vices tinham esses privilégios. O fato é que se o Juscelino não tinha resolvido, tinha que resolver aquela questão com o Richard.
Não que isso fosse algo de muito excepcional, resolvia todos os seus assuntos com o Richard. Mas é que esse era diferente, era quase que um assunto pessoal, embora estivesse relacionado ao trabalho. Nunca tinha incomodado o Richard com essas coisas. Férias, salário, ausências, viagens, resolvia tudo sozinho, e o próprio Richard tinha pedido isso, logo que assumiu a vice-presidência. E agora surgia essa coisa.
Tentei. Um dia. Dois dias. Uma semana. Três semanas. Queria ignorar o detector de metais, como queria poder voltar aqueles tempos em que entrava no prédio sem nem perceber que tinha algo diferente ali. Mas não conseguia. Sentia-me mal. Aquilo não era coisa para gente saudável. Uma injustiça. Eu, um vice-presidente, um serial killer? Será que achavam que eu traria um revólver e sairia dando tiros nos outros, como aqueles que de vez em quando aparecem lá nos Estados Unidos? Um absurdo. A coisa foi crescendo e então pensei em como abordar o assunto com o Richard. No cafezinho, no intervalo de uma reunião, como se fosse algo casual, falar como se não fosse nada. Com certeza, Richard ia rir, dizer uma piada qualquer e autorizar o meu pedido.
Chegou a hora. Uma reunião light, sem assuntos desgastantes na pauta. Intervalo. Falando sobre generalidades – Pois é, Richard, outro dia não é que fui passar no detector de metais com o celular no bolso e ele apitou, tomei o maior susto, foi até engraçado... - Ah é? Isso também já aconteceu comigo...
Ótimo! Muito melhor do que poderia pensar! Se ele também tinha passado por uma experiência desagradável com aquele maldito detector, então haveria de me entender.
- É, uma coisa engraçada, não é? Mas o segurança me parou e me obrigou a voltar e passar novamente... Voilá! Perfeito! Consegui, de modo sutil, introduzir o problema... Aquele “mas” no início da frase foi o máximo. Concentrou toda a minha insatisfação com a questão, sem ser rude, ao mesmo tempo em que dava um ar de despreocupação, como se aquilo não fosse nada demais.
- Pois é, respondeu Richard. Que hora para ser monossilábico! Como se a genialidade do meu avanço anterior tivesse sido bloqueada por um peão qualquer, naquele intrincado tabuleiro das relações sociais entre homens de poder. Rainha ameaça Rei e um peão no meio do caminho quer por tudo a perder? Faria, então, uma jogada mais direta, menos refinada, aqueles xeques dados por cavalos malandros e seus saltos ligeiros.
- Pois é – dizem que melhor maneira de responder a um monossílabo é com outro monossílabo – eu até pensei – é sempre bom deixar a porta aberta para uma escapada rápida – em conversar com o Juscelino para ver se ele orientava os guardas a me liberarem de passar pelo detector. Aí essa chateação não aconteceria mais.
- Não perca seu tempo, Fábio, essa norma vem da matriz. Todos têm que passar, inclusive eu. Deixe isso para lá.
Inferno. Comecei a compreender o verdadeiro sentido do termo. Aquela conversa tinha me jogado no inferno. Horas e horas revendo os lances daquela partida maldita. A vitória esteve em minhas mãos. Do nada, um xeque mate. Como não consegui vê-lo chegando? Eu, um mestre no xadrez das relações? Como? Horas e horas pensando em como pedir a revanche. Tinha que pedir a revanche sem deixar transparecer o quão ardentemente a desejava. Não poderia se expor perante o Richard. Tocar no assunto novamente seria questionar sua autoridade. Impensável.
Inferno. Todos os dias, o portal estava lá. Com seus raios malignos. Câncer certeiro. Rindo de mim com sua boca invertida escancarada. Suas laterais metálicas reluziam como dentes de um grande tubarão branco. Cada vez que passava, sentida a aguilhoada do veneno, inoculado em minha pele, mortífero.
Inferno. Tinha tudo o que queria. Mas não podia ter o que não queria. Inaceitável.
Comprou uma arma.
Richard foi transferido. Para a matriz. Finalmente. Assumiu a presidência Frasier. Um novo jogo. Teria sua revanche, afinal, que importa se contra um novo jogador? O importante era vencer. Mas não poderia esperar mais, teria que ser agora.
Primeira reunião com Frasier. Depois daqueles lenga-lengas coletivos, ele tinha agendado um encontro individual com cada Vice-Presidente. Cumprimentos formais, sentei-me, conversamos. Fiz uma das minhas melhores apresentações, cada detalhe perfeitamente estudado para causar impacto. A área estava sob meu total controle. Sabia de cabeça todos os indicadores. A reunião foi excelente. Caminhava para o seu final. Hora de começar a partida. - Sabe, Frasier, aproveitando que você está começando, se você me permite dar uma sugestão – interpretei seu menear de cabeça como sinal positivo para continuar – acho que você deveria marcar a mudança de gestão de alguma forma, algo simbólico. Símbolos são importantes, transmitem e reforçam valores. Estava pensando, por exemplo, talvez você pudesse retirar o detector de metais na portaria, seria um símbolo forte de que a nova gestão recebe os colaboradores sem qualquer desconfiança. O que você acha?, concluí a frase, sem qualquer sinal que pudesse trair minha tormenta interior, exercendo o máximo que conseguiria de auto-controle.
- Sabe, Fábio, é uma boa ideia. Pena que não é possível, pois o detector de metais é exigência da matriz.
Inferno. Desolação total.
No outro dia, cheguei com um martelo. Não um martelo comum, aquele martelo gigante que usam em demolições. Fui rápido. Desfechei quatro golpes. A lateral esquerda cedeu. Quebrei os dentes do tubarão. Os seguranças, passado o susto, começaram a vir em minha direção.
Saquei a arma. Apontei para a cabeça. Auge.

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segunda-feira, dezembro 14, 2009 - 16:31

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