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Eu sei que foi você - capítulo 16
Narciso era especialista em matar aula e, por esse motivo, não voltou à sala após o fim da aula de Inglês, resolvendo perambular pelo pátio. Sabia que sua ausência seria um alívio para muitos professores, que o viam como um verdadeiro estorvo. Ele sempre dera um jeito de pagar para alguns colegas fazerem suas lições e colava nas provas, o que o livrava de enfrentar uma recuperação e provocava olhares suspeitos dos professores.
Perambulando pelo pátio e esperando a hora do intervalo, Narciso planejava como encurralaria Cassandra de forma a aterrorizá-la irremediavelmente.
-Vou apavorá-la, sua bostinha esquisita! Você vai se arrepender de ter metido o nariz onde não foi chamada!
O sinal do intervalo tocou e ele ficou vigiando discretamente. Sua turma não teria mais aula naquele dia e ele não precisaria se preocupar com nenhum professor notando a ausência dele e a de Cassandra.
-Será ótimo pegá-la, Cassandra!
Viu Cassandra sair com Marcelo ao seu lado. Ele parecia convidá-la a ir a algum lugar, mas ela balançou negativamente a cabeça e seguiu o caminho rumo à biblioteca.
Narciso riu e esperou Marcelo se afastar para seguir Cassandra.
-Sem seu namoradinho, você não tem como escapar de mim, sua bostinha!
Seguiu Cassandra, arquitetando as piores maneiras de amedrontá-la.
Porém, Narciso não viu que Marcelo havia mudado de ideia e resolvido ir atrás de Cassandra, vendo que ele a seguia, o que o preocupou.
-O que esse imbecil quer fazer? Por que ele está perseguindo a Cassandra?
Sem ver que Marcelo o seguia, Narciso foi seguindo Cassandra, que tentou na biblioteca e, quase no fim do intervalo, foi ao banheiro feminino. As meninas entravam e saíam, mas ela não. Ao tocar o fim do intervalo, Narciso esperou que não houvesse mais ninguém circulando pelos arredores e, cerrando os punhos, entrou.Marcelo piscou os olhos, incrédulo:
-O que deu nele?
Narciso invadiu o banheiro feminino e...deu de cara com Cassandra, olhando-o como se o esperasse há muito tempo.
-Já estou cheia disso, Narciso!
-Eu que estou cheio de você, sua cadela!
-O que você quer, Narciso? O que acha que vai conseguir? Você é tão idiota!
-Eu queria saber como nunca pego você de surpresa!
-Você devia era sair daqui antes que alguma moça entrasse aqui e o visse! Já pensou na confusão? Você seria suspenso! E não seria a primeira vez, não é?
Aproximando-se de Cassandra, Narciso rugiu:
-Seja o que você for, não vai acabar com minha vida, Cassandra! Eu que vou infernizar a sua!
-Você não vai fazer comigo o que fez com a Virgínia, Naciso!
-Eu não a matei, Cassandra! Ela que deu um tiro no peito! Devo pagar por isso?
-Ora, eu sei que foi você que...
Com fúria, Narciso apertou os maxilares de Cassandra com toda a força, vociferando:
-Cale-se! Você me paga!
De repente, Narciso sentiu um violento puxão.
-Deixa a moça em paz, covarde!
-Marcelo?!Cassandra esfregou os maxilares doloridos.
Jogado no chão, Narciso protestou:
-Seu bosta, eu vou lhe cobrir de pancada!
-Vai o que, seu merda? Vem, se for homem! Pode até me acertar, mas também vai levar!
Vendo que Marcelo faria o que diria, Narciso saiu, ameaçando-os:
-Vocês me pagam!
Marcelo foi até Cassandra e perguntou:
-Você está bem?
-S-sim.tremia um pouco.
Ela tentou se controlar, mas não aguentou e chorou. Marcelo a abraçou, tranquilizando-a:
-Calma, está tudo bem. Não precisa ter medo. Mas há algo que preciso saber.
-Está certo, mas não aqui.
-Vamos sair daqui, então.
Saíram do banheiro e foram à sala de aula, onde pegaram suas mochilas. Marcelo propôs:
-Podemos conversar na lanchonete que fica perto da escola?
-Sim.
Ao irem à lanchonete, Marcelo falou:
-Cassandra, eu ouvi você dizer ao Narciso que ele não faria com você o que fez com a Virgínia. E eu sei que ele anda estranho desde a morte dela.
-Sim, ele tem culpa no cartório.
Sentaram. Marcelo pediu dois sucos e continuou:
-Você não pode mais negar, Cassandra. Eu já vi demais.
-De fato, não posso. Você saberia que eu estaria mentindo se eu desse uma desculpa.
-O que o Narciso fez e como você sabe que foi ele?
-Ele inventou aquelas coisas sobre a Virgínia e espalhou na Internet.
Marcelo baixou os olhos e comentou:
-Eu nunca pensei que ele chegaria a tanto! Ele destruiu a vida dela!
-Foi.
-Mas como você sabe, Cassandra? E por que não contou a ninguém?
-Iriam querer saber como eu soube e não acreditariam se eu explicasse.
-Mas por quê?
Um rapaz veio com os sucos e os colocou na mesa. Cassandra olhou firme para Marcelo e respondeu:
-Porque eu escuto o que as pessoas pensam.
Embasbacado, Marcelo a encarou, boquiaberto.
-Co-como é?
-Eu ouço pensamentos, Marcelo.
-Não, isso é impossível, Cassandra! Isso só acontece em filme!
-Antes só acontecesse em filme. E pode ter certeza de que não é como nesses filmes dos X-men ou qualquer outro filme de terror com gente paranormal. É um inferno!
Era óbvio que Marcelo não acreditara, o que não a surpreendeu nem a chateou.
-Eu não esperava que você acreditasse mesmo. Estranho, não é? Todos dizem que "há mais mistérios entre o céu e a terra" mas, ao mesmo tempo, não querem acreditar quando veem o mistério diante dos seus olhos e dizem que é impossível, que tem que haver uma explicação científcia, ou então, que é um truque do demônio.
Marcelo enterrou o rosto nas mãos por um momento e Cassandra prosseguiu:
-Que prova você quer de que não estou mentindo nem imaginando?
Ele tirou o rosto das mãos, olhos arregalados e disse:
-Isso...
-É o que você ia dizer. Você pensou:"Como ela pode me provar que não inventou nem de que não está delirando?"
-Cassandra, eu não consigo acreditar. Isso tudo é... fantástico demais para engolir!
-Posso lhe dar uma prova, mas previno de que é desagradável. Para você e para mim.
-Dê.
Respirando fundo, Cassandra pensou um pouco e falou com cautela:
-Você não gosta do seu padrasto. Só o tolera por causa da sua mãe.
De repente, Marcelo se sentiu nu.
-Co-como você...?
-Várias vezes, eu ouvi você pensando no seu padrasto e no quanto sente falta do seu pai. O seu padrasto e você não se entendem.
-É verdade - admitiu Marcelo - eu não gosto dele. Quando meu pai morreu, eu me senti muito sozinho. Nós jogávamos futebol, fazíamos tudo juntos. Meu padrasto só vive implicando comigo e o meu meio-irmão me provoca o tempo todo.
Ele a olhou com tristeza. Estava vulnerável e perplexo. Nunca falara com ninguém o quanto a morte do pai ainda lhe doía.
Cassandra sabia que a revelação fora um choque para ele e revelou:
-Eu não controlo isso, Marcelo. Ouço o que as pessoas dizem o tempo todo e odeio isso. É como se eu fosse uma intrusa, que entrasse em suas vidas e descobrisse seus segredos mais escondidos.
-Você sabe os segredos de todo mundo na sala?
-Sei. Sei os segredos sujos de muita gente. Às vezes, não aguento ficar perto das pessoas porque todos os seus pensamentos entram na minha cabeça ao mesmo tempo. É como se houvesse um rádio ligado dentro dela. Eu acho horrível saber o que muitos escondem.
-Então, é por isso que você se isola.
-Porque ouvir os pensamentos de tanta gente me deixa exausta. Tenho sentido direto a raiva do Narciso contra mim, sabe? Chega quase a doer.
-Desde o começo, você soube o que todos pensavam de você.
-Sempre. As pessoas me acham estranha e não gostam do fato de eu sempre dar a entender que sei que não simpatizam comigo. Sabe o que é entrar na sala de aula e ouvir todos pensarem: "estranha" , "feia"?
-Você não é feia, Cassandra. E você pode saber que não estou mentindo.
-Sei que não está. Mas não é isso o que me incomoda.
Pôde ver que ela tinha lágrimas nos olhos. As lágrimas dele lhe disseram mais do que todas as palavras, mostrando-lhe sua solidão e o peso que era viver com aquilo sem ter com quem dividir.
-Meus pais sabem, Marcelo.
-Eu...eu...
-Tudo bem, por que eu ficaria com raiva de você por pensar que não tenho com quem falar sobre o meu poder? Eles sabem e eu converso com eles sobre isso.
-Quando isso...
Ela ficou calada e ele entendeu que ela não queria dizer antes dele o que ele desejava perguntar.
-Quando isso começou?
-Quando eu era bem pequena.
-E...os...
Mais uma vez, Cassandra esperou.
-E os seus pais? Eles...?
-Fazem o melhor que podem. Aprenderam a viver com isso, mas sei que não é fácil para eles.
-Para você, sei que é muito mais difícil.
-É sim. Outra coisa muito ruim é que eu não esqueço nada.
-Meu Deus!
-Isso é tão chato. Há coisas que eu adoraria esquecer. Às vezes, penso que minha cabeça é um computador, sempre guardando mais e mais informações.
-Eu sinto muito, Cassandra.
Cassandra terminou o suco e Marcelo chamou o rapaz, pagou a conta e se ofereceu para acompanhá-la até sua casa.
-Obrigada, mas eu estou bem.
-Eu... só quero ajudar.
-Sei. Vamos.
Foram andando e conversando. Marcelo falou:
-Eu não consigo imaginar como é viver desse jeito, Cassandra.
-Eu lhe digo uma coisa: há um lado bom em ser ignorante sobre certos assuntos, principalmente os ligados ao coração das pessoas. Pergunto se Deus não acha chato ser onisciente.
-Isso deve ser um peso e tanto para Ele, não?
-É um peso para mim ter contato com os segredos íntimos das pessoas sem ser íntima delas, ainda mais porque eu, como todo mundo, tenho meus segredos.
-Não é culpa sua.
-Sei que não é, mas não me sinto menos intrusa.
Chegaram e ele perguntou:
-Você vai ficar bem?
-Vou.
-Quanto ao Narciso...
-Eu não tenho medo dele.
-Mas ele quase lhe agrediu, Cassandra. Ele...
-Ele não tem a menor ideia de como eu soube.
-Temos que dar um jeito nele. Eu conheço o Narciso e sei que ele não vai deixá-la em paz fácil. Meu Deus, eu não acredito que ele foi capaz disso! Por causa dele, todo mundo ficou contra a Virgínia e ela fez aquilo!
Cassandra se entristeceu e disse:
-Eu senti toda a dor e a solidão dela, Marcelo. Ela estava perdida, encurralada, achando que ninguém gostava dela ou se incomodava com o fato dela ser perseguida e acusada de tantas coisas que não fizera.
-Cassandra - colocou a mão no seu ombro - você pode contar comigo.
-Sei disso, Marcelo. Muito obrigada.
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