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Gregas Tragédias - 12 - AS FENÍCIAS

Eurípedes – 485/406


Cenário – Palácio Real em Tebas


Data da 1ª Apresentação –


Personagens:

1. Antígona
2. Coro e Corifeu - composto por mulheres fenícias
3. Etéocles
4. Jocasta
5. Polinice
6. Preceptor

 

Eurípedes apresenta Jocasta como a única que consegue manter certa racionalidade, após a revelação do parricídio e do incesto. Nessa condição, ela tenta organizar o Mundo de seus transtornados filhos, gerados com o incestuoso marido. É sua função de mãe; e para melhor desempenhá-la busca descobrir e corrigir a causa dos inúmeros infortúnios que assolam a Casa dos descendentes de Cadmo.


A peça tem inicio com Jocasta que lamentosamente invoca o Sol e recapitula com a calma possível – talvez surpreendente em face dos acontecimentos – o Destino dos descendentes do herói. Em seu monólogo diz:


Ó Sol, que traças as rotas no Céu com teu Carro de Ouro, puxado pelos fogosos corcéis, com que raio tu fulminastes a gloriosa Tebas no dia em Cadmo1 aqui pisou, vindo da distante Fenícia?


1 – Cadmo era filho do rei da Fenícia, chamado Agenor. A mando do pai saiu à procura de sua irmã, Europa, raptada por Zeus. Depois de várias e infrutíferas buscas, consultou o Oráculo de Delfos que o aconselhou a desistir da busca e fundar uma cidade onde uma vaca lhe indicasse ser o local correto. Após algumas aventuras, fundou Tebas e nela reinou até o fim da vida.


Cadmo que se casou com Harmonia, de Chipre, e com ela gerou Polidoro, pai de LÁBDACO, de quem Laios é filho e meu primeiro marido. Eu, que sou filha de Meneceu e irmã de Creonte não podia dar-lhe filhos e ele procurou uma solução no Templo de Febo (Apolo), mas o deus vaticinou que a semente que ele plantasse geraria um filho que o mataria e causaria a ruína de sua Casa. Porém, um dia, ébrio de desejo, plantou-me sua semente sem se importar com a profecia de Apolo. Contudo, quando dei à luz um menino, ele se lembrou da advertência e ordenou que os pastores o matassem. O menino, devido às amarras com que lhe aprisionaram, teve os pés inchados e disso resultou seu nome: Édipo, dos pés inchados (Édipo = pés inchados, em tradução literal). Porém os pastores não o mataram por pena e os cavaleiros do rei Pólibo o resgataram e entregaram-no ao rei e à rainha, que também era estéril. Édipo foi criado como um filho genuíno e como príncipe de tornou homem. Mas desde a adolescência boatos sobre sua verdadeira descendência inquietavam-lhe o coração e quando a tais boatos foram acrescentados a profecia de que ele mataria o pai e se deitaria com a mãe, ele deixou Corinto para que o vaticínio nãos se concretizasse. Angustiado, procurou uma resposta no Templo de Apolo e por coincidência, ou por ordem do Destino, Laios seguia para o Oráculo de Delfos para assegurar-se que o filho estava morto realmente, como lhe disseram os pastores. O caminho de ambos se cruzou e uma tola divergência sobre a precedência num entroncamento resultou em briga e na morte de meu marido.


Nesse tempo, a Esfinge assolava Tebas e Creonte, que sucedeu Laios no trono, anunciou que daria minha mão ao primeiro que vencesse o monstro. O Destino quis que Édipo a derrotasse, decifrando o enigma que ela lhe propôs. Surpresa com a resposta correta, a serpente-dragão desequilibrou-se e caiu no fundo precipício próximo. Foi o fim das mazelas em Tebas. Édipo se tornou meu segundo marido e comigo gerou quatro filhos: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene. Reinou com sabedoria e a cidade floresceu. Mas a paz do que parecia ser uma família perfeita ruiu, quando veio à tona o horror do parricídio e do incesto, cometido por meu filho e marido1.


1-Maiores detalhes no capitulo “Édipo Rei”, nessa obra.


Édipo vazou os olhos com os alfinetes das túnicas, dizendo que seus olhos nunca mais veriam tanto horror e desde então é possuído por triste insânia que o leva a maldizer os filhos, frutos do seu amor espúrio. Os filhos adultos mantêm-no aprisionado, escondido do escárnio público. Querem que se esqueçam do terrível Destino que nos aterrou. Trancado a “sete chaves”, Édipo urrou tantos impropérios e maldições contra todos e especialmente contra Etéocles e Polinice, que disputavam com voracidade o Poder vago, com o afastamento do pai, que eles se assustaram com a possível fúria dos deuses e acordaram que Polinice, o mais novo, partiria em exílio voluntário, enquanto Etéocles governaria. Combinaram que após um ano as posições se inverteriam, mas Etéocles não honrou o compromisso e baniu o irmão para sempre. Polinice foi viver em Argos e ali se tornou genro do rei Adrasto e comandante do exército. Agora, nessa condição, marcha contra a “Tebas das Sete Portas”.


Para evitar o conflito eu os persuadi a conversarem como irmãos antes de recorrerem às lanças. Agora vejo que retorna o mensageiro que enviei, trazendo a noticia da vinda de meu filho caçula. Rogo-te Zeus luminoso que nos socorra. Faça que meus filhos cheguem a um acordo e não permita que os homens incorram no erro da violência.


Nestes trechos, observa-se a fria racionalidade de Jocasta. Pouco lhe importou que o filho recém nascido fosse destinado à morte e nem lhe pesa na consciência a parte do erro que cometeu ao se deitar incestuosamente com Édipo. Alguns dirão que se trata de uma mulher prática e objetiva; outros, que se trata de uma mulher sem caráter, egoísta e materialista. Eurípedes permite que seus leitores escolham a visão que melhor lhes convir.


Após o longo monólogo de Jocasta, a cena muda para o Preceptor que desempenhara a função de mensageiro junto a Polinice. Já com a princesa Antígona, ele diz: nobre alteza, como tua mãe permitiu que tu deixasses os aposentos das donzelas e satisfizesse o desejo de ver o exército argivo (de Argos), que marcha sob o comando de teu irmão, deixe-me sondar o caminho para que não cometamos o erro de ensejar que alguém fale contra a tua e a minha honra. Por ora fique aqui, a salvo dos olhares dos servos, e deixe que eu te reporte o que acontece. Terás informações precisas, pois serei teu olho e teu ouvido, e te contarei tudo que ouvi e vi enquanto estive no acampamento argivo para deixar a mensagem de tua mãe ao príncipe Polinice. Pronto, agora estamos seguros, venha e observe o que quiseres, pois estamos a salvo de olhares indiscretos. Ninguém se aproxima do Palácio.


Antígona pede ajuda para galgar à janela e passa a assistir as manobras das tropas. Um grito de assombro lhe escapa e o Preceptor comenta o imponente avanço do inimigo. Antígona teme a invasão e aflita questiona o servo acerca das medidas de defesa da cidade. Se as sete portas estão trancadas e se as muralhas que Cadmo construiu estão firmes. O servo a acalma e insiste para que ela observe as tropas para bem conhecê-las. Antígona admira-se com um dos homens que encabeçam o exército e o Preceptor lhe diz que é o rei Hipomedon, aliado de Argos. Sem se conter, Antígona fala de seu encantamento pela imponência majestosa do guerreiro, pelo brilho de suas armas e pelo seu porte de cavaleiro, que se compara ao de um deus. O servo aponta-lhe outro e diz que é Tideu, filho de Eneu, um grande guerreiro, mas o fascínio da princesa não se repete.


- E aquele outro, mestre? Não é o concunhado de Polinice?


- Sim alteza. É etólio, como seu escudo indica.


- Mestre, como tu sabes tanto?


- É que conheci os emblemas, alteza, quando estive no acampamento argivo.


-E aquele?


- É Partenopeu, filho de Atalanta.


-Oh, que o arco de Ártemis o mate, vocifera a princesa. Que ele morra! Não veio para destruir a nossa cidade?


- Sim, alteza, concorda subserviente o Preceptor. Contudo, minha doce criança real, eles marcham cobertos pela justiça, pois vosso irmão Etéocles não foi justo com Polinice e ele tem o direito de reclamar o que é seu. Por isso, Antígona, oxalá os deuses não escutem tuas imprecações injustas.


- E onde, mestre, está aquele que foi gerado por minha mãe? Onde está Polinice?


- Ali, princesa. Próximo ao túmulo das Sete Filhas de Níobe. Veja que ele acompanha o rei Adrasto.


- Não vejo muito Preceptor. Só distingo sua silhueta. Mas se eu pudesse voaria ao seu encontro e o envolveria em carinhoso abraço. Pobre exilado. Ó sim, agora vejo como sua armadura resplandece ao Sol.


- Logo, alteza, ele virá a essa Casa para tua alegria. Virá seguro, pois a trégua o protege.


- Quem é aquele de aspecto tão venerável, mestre?


- É o vidente ANFIARAU, alteza. Veja que ele leva consigo os animais que sacrificará para saciar a sede de sangue das Entidades Infernais.


- Ó deusa Artemis, veja com que graça ele incita os potros. Mas onde está o terrível CAPANEU que brande tantas ameaças contra nós?


- Logo ali, princesa. Observe como ele já estuda a melhor maneira de escalar as muralhas.


- Deusa Nêmeses, sábio Zeus abrandem sua violência e nos protejam de sua bruta selvageria.


- E aquele mestre, não é quem ameaça arrastar as tebanas cativas para Micenas e para Lerna? Ó Artemis, divina filha de Zeus, não permita que eu chore nas redes de tal cativeiro.


- Agora, filha, entre. Recolhe-te aos teus aposentos de donzela. Tu já satisfizeste teu desejo de ver as tropas. Muitas mulheres, atraídas pelo tumulto geral, aproximam-se do Palácio e se elas a virem, logo farão intrigas sobre tua “honra”.


Colocamos a palavra “Honra” entre parênteses, na frase anterior, para caracterizar a união desse conceito com a virgindade da mulher. Da donzela. Vê-se, pois, que essa união de conceitos (honra = virgindade) precede as Escrituras judaico-cristãs; e embora seja um padrão quase extinto no Ocidente, ainda vigora com força em grande parte do Oriente. Também se pode observar que se na Antiguidade seu valor se prendia diretamente ao “valor (comercial, de troca) da moça” para eventuais trocas políticas e/ou comerciais, hoje seu apelo se vincula mais às questões religiosas e machistas.


Nesse momento, o Coro reassume a Palavra a canta a Estrofe I, onde se relata a vinda das mesmas, na condição de oferendas ao deus Apolo, para que o deus ajude Tebas a vencer seus inimigos, pois a dor e a derrota tebana serão idênticas na Fenícia, haja vista ser esta última a origem dos tebanos. Logo após, inicia o canto da Antístrofe I (de métrica similar a da estrofe): fomos eleitas, na nossa Fenícia natal, as oferendas mais preciosas a serem ofertadas a Lóxias (Apolo). Enviaram-nos para a Cidade de Cadmo, para a terra do rei Laios, aparentado com a estirpe do ilustre ancestral Agenor. Mandaram-nos como jóias de ouro para servir ao grande deus. As águas da Fonte Castália já nos aguardam para lavarem nossos cabelos virginais. Oh, pedra de cumes de fogo, vinha que destila os fartos cachos, quisera pudéssemos formar o Coro Sagrado de Apolo. Na seqüência iniciam a Estrofe II: agora, porém, o deus da guerra, Ares glorioso, ameaça-nos com o ferro e com o fogo. Que a sorte nos seja benigna. Comuns e iguais são as dores. Se padecerem estas Sete Torres (as sete portas da muralha que circunscrevia Tebas), a Fenícia ancestral também padecerá, pois o sangue dos tebanos e dos fenícios é igual, tal qual a ascendência. Somos todos filhos da venerada ÍO e, por isso, os males que doem em vós, doem em nós. A Antístrofe II diz: ó, uma nuvem de escudos envolvem os muros. A densa imagem da batalha já se pressente. Os golpes de Ares sobre os filhos de Édipo serão terríveis. Oh, muito perto está o golpe fatal das Erínias (as Fúrias). Eu tremo ante tua força Argos, pois Polinice marcha junto em busca da justiça que lhe foi negada.


No trecho acima, o (a) leitor (a) notou a inclusão das “Estrofes e Antístrofes” cantadas pelo Coro. É um recurso teatral que se mostra em várias “Tragédias”, mas que aqui foram pouco citados por colidirem com o escopo dessa obra.


Na seqüência a ação passa para Polinice que verbaliza sua inquietação e sua desconfiança ao adentrar a sua Tebas. Diz para si: as Portas se abriram deixando-me entrar, mas temo que mãos traiçoeiras me ataquem. Pressinto olhares que me espreitam. Tenho que ter atenção redobrada e nunca desligar-me da poderosa espada. Nem em minha mãe eu confio totalmente, ainda que tenha sido dela a iniciativa de propor uma trégua. Só me sinto protegido por estar perto dos altares domésticos que conheço desde a infância. Mas, que vejo? Um grupo de mulheres estrangeiras à porta do Palácio? Falarei com elas.


- Senhoras estrangeiras o que fazem à porta de um Palácio grego? De onde são?


- Responde o Corifeu: na Fenícia fomos geradas e nascidas. Os descendentes de Agenor para cá nos enviaram como ofertas ao deus Apolo para que ele proteja Tebas de seus inimigos. Etéocles iria nos enviar ao Sagrado Templo de Loxias (Apolo) quando as tropas argivas e seus aliados chegaram. Mas, agora, diz-me quem és tu, senhor?


- Sou Polinice, filho de Édipo, o filho de Laios. E de Jocasta, a filha de Meneceu.


- Ó sangue do nosso sangue fenício. Descendente como nós do ilustre Agenor. Dobro reverente meus joelhos ante de ti, como é costume em minha terra. Mas, ó Senhora Jocasta, por que demoras em vir abraçar teu filho?


Jocasta, no interior do Palácio, escuta as mulheres fenícias e responde: ó amigas, paciência. Sou uma velha que tem dificuldade para arrastar os pés. Mas, ó filho amado! Já te vejo. Ao fim de tantos dias amargos, vejo teu rosto querido. Venha, deixe-me abraçar-te. Como, minha linda criança, eu posso exprimir a felicidade que sinto? Tudo renasce. A alegria revive e esqueço por momentos que tu, amado filho, fostes arrancado com violência do lar que te criou. Banido injustamente pelo próprio irmão. Tebas, filho, chora tua ausência. Veja minha branca e tosquiada cabeça de tantas preocupações e dores. Só de luto é que me visto, pois já não acho correto usar as roupas brancas dos dias felizes. Teu velho pai, ó pobre Édipo, com os olhos vazados, foi separado de todos e trancafiado em alguns aposentos do Palácio que foi dele. Atormentado pelas tantas mazelas, busca a todo instante matar-se com a espada e com a forca e chora, pragueja e urra sua dor, enquanto amaldiçoa os filhos. Ó filho, são tantos os nossos males. Mas e tu? Fale-me, amado, de teu casamento. Da casa em que vives. És feliz? É para essa nova família que tu dedicas toda tua energia? Oh, deuses! Como isso é cruel para mim, para o velho Édipo. Oh, tu contraiu núpcias e eu nem pude organizar os preparativos, os festejos, os rituais. A pátria que te viu nascer não pode cumprir os ritos devidos. Que arda no Inferno o culpado por todas as desgraças que arrebentam em minha cabeça e coração.


Polinice, na seqüência, diz: mãezinha, eu fiz bem ou mal em atender teu convite para vir à casa de meu inimigo? Eu amo minha pátria, porém vim aqui com muito medo de que meu irmão tivesse armado uma cilada. Atravessei a praça com a espada na mão e atento a tudo. Só a confiança que ainda tenho em ti é que me animava a prosseguir. A entrar na cidade dos meus ancestrais. Chorando, eu revi o Palácio, os altares dos meus deuses, a minha escola e a águas do rio Dirce. Com violência, eu daqui fui arrancado para viver em terra estranha. Rios de lágrimas vertem de meus olhos e vejo com muita dor os teus cabelos tosquiados e o luto de tuas roupas. Os males nos esmagam. O ódio é cruel, mãezinha. Ataca até as pessoas do mesmo sangue e separa o que deveria ser inseparável. Mas, diga-me, o que é feito de meu velho pai? E minhas irmãs? Sentem minha falta?


Oh filho, responde Jocasta, algum deus devasta sem dó a família de Édipo. Tudo começou quando indevidamente eu tive um filho. Depois, na sórdida união, nasceste tu e teus irmãos. E agora o que fazer? É um decreto divino que devo suportar. Mas, filho, eu tenho que te fazer algumas perguntas que talvez firam teu coração. É necessário filho e não consigo ficar calada. Primeiro, diz-me como te sentes banido? É muito ruim?


- Sim, mãe, é péssimo.


- Por que filho?


- O pior é que não se pode falar abertamente e ser obrigado a suportar as asneiras dos Governantes.


- Sim. Calar-se é coisa para escravos. E comportar-se como um ignorante deve doer muito.


- E servir de capacho para se obter alguma vantagem, mãe? Só eu sei o quanto me machuca.


- Aos exilados, filho, diz-se que sempre lhes sobra alguma esperança.


- Sim, mas ela está sempre muito longe.


- Do que tu vivias, antes do casamento com a princesa, filho?


- Comia um dia e noutro não. E dos favores que os amigos me davam.


- E os amigos e ex-hóspedes do teu pai não te ajudaram?


- Nada, o necessitado deixa de ter amigos.


- Mesmo para tu que nasceu na nobreza?


- A nobreza em nada me ajudou.


- Pelo que tu me dizes, a pátria é o bem mais precioso.


- Sim. A gente só percebe quando a perde.


- Por que fostes para Argos?


- Não sei. Não tinha intenção. Acho que um deus protetor para lá me chamou.


- Sim, deus e sábio. E teu casamento como foi?


- Loxias (Apolo) enviou um Oráculo a Adrasto dizendo metaforicamente que conviria que suas filhas casassem com um “leão” e com um “javali”. Naquela noite aproximei-me do rei para pedir abrigo e logo depois apareceu outro banido, chamado de Tideu, filho de Eneu. Adrasto nos comparou aos animais enquanto brigávamos como feras por um leito e por uma ceia. E por nos comparar ao leão e ao javali, deu-nos as filhas em casamento.


- E tu és feliz no casamento?


- Sim, não posso me queixar.


- E o exército, por que te seguiu?


- Adrasto prometeu devolver-nos às pátrias. Eu seria o primeiro. Muitos “dânaos” e “micênios” me apóiam. Não me agrada a ajuda deles, mas não posso dispensá-la. Por isso, movo um exército contra minha própria cidade. Juro pelos deuses que não queria recorrer à força contra quem mais quero bem. Mãe, os meus e os vossos tormentos dependem de ti. Reconcilia-me com meu inimigo. Põe fim às nossas divergências. Sem justiça nada poderá prosperar, pois “para os homens não há Bem maior que o dinheiro”. E eu não sou diferente. Também quero o dinheiro que me pertence, pois sem dinheiro não se é nada.


Com sincera simplicidade, Polinice resume e expõe o motivo real de todos os conflitos: a ganância. O desejo por riquezas, mesmo quando alguns outros motivos são citados; pois estes, só disfarçam o motivo real.


Interrompendo o diálogo de mãe e filho, o Corifeu anuncia que Etéocles se aproxima.


Chegado, Etéocles dirige-se à mãe: aqui estou. Em consideração a ti e só a ti, é que vim. Interrompi as manobras de defesa para ouvir tua arbitragem. Depois, dirigindo-se a Polinice, pergunta rudemente: para fazer a paz é que trouxestes quatrocentos e cinqüenta guerreiros para dentro das muralhas sem minha participação?


Jocasta intervém e pede calma a ambos. Nada de fúria, pede aos filhos. Vocês não têm um inimigo ante os olhos. Veja Etéocles, é o teu irmão que chegou. E tu, Polinice, olhe teu irmão. Olhem-se nos olhos e será mais fácil falar e escutar. Fales tu primeiro, Polinice, por ter sido injustiçado, como diz. Que um deus seja o juízo e nos conceda a vossa reconciliação.


Polinice toma a palavra e diz: a verdade dispensa longos arrazoados. O argumento mentiroso é que precisa de longos e capciosos discursos. Exilado, eu penso, afastei-nos das maldições de nosso pai Édipo e, conforme o combinado com Etéocles, eu pensei estar dividindo a herança e o trono de maneira justa; mas ele, após jurar por todos os deuses que aceitaria tal trato, não honrou a palavra empenhada. Por isso, mãe, pela falta da palavra empenhada, é que eu estou aqui para reivindicar os meus direitos. Basta que ele honre sua palavra e me deixe governar em anos intercalados e devolva a minha metade da herança. Se isso for feito, prometo-te que afastarei de imediato o exército que trouxe. Mas se ele recusar, eu agirei. Os deuses sabem que ajo dentro da Justiça, a qual, aliás, foi-me negada na época em que fui banido com insolência.


Retruca Etéocles dizendo: se tudo fosse correto não haveria amargura entre os homens. Não, não quero entregar o Poder a quem vem armado reivindicá-lo. Seria um insulto a Tebas curvar-se ante as lanças micênicas. A palavra conseguiria bem mais que a espada, mas ao invés de vir tratar da trégua com o espírito desarmado, eis que ele está aqui nos ameaçando. Se ele quiser a luta que a faça, não recuarei. Se for preciso ferir a Justiça, melhor que seja agora, comigo na posição de Tirano. A decência que fique com os outros.


“Às favas os escrúpulos de consciência...” disse o Coronel Jarbas Passarinho, Ministro à época, para concordar com o AI5 (Ato Institucional n.5), em 1968, que consolidou e endureceu a Tirania Militar no Brasil. Vê-se que milênios antes, Eurípedes colocou na boca de uma de suas personagens fala de teor semelhante. Tal como o brasileiro, Etéocles tenta justificar a Ditadura, a usurpação do Poder, a indecência política e moral, a falta de honorabilidade, com um discurso que prima pelo cinismo e pela falta de caráter, típicos dos Ditadores.


O Corifeu antecipa-se à Jocasta para dizer do erro que comete Etéocles ao elogiar fatos que são indefensáveis. Ao elogiar a iniqüidade.


A mãe Jocasta tenta chamar os filhos à racionalidade dizendo: Etéocles por que te entrega à Ambição, a mais nefasta das deusas? Vem dela, a tua loucura. Pensa filho, a Igualdade é que distribui o Sol e a Lua, sem que um inveje o outro. Quanto à Tirania, doce e amargo mel, por que tanto a preza? Empunhando o cetro tu te achas maior? Mais poderoso? Na verdade, filho, tu só abraça o vazio. Os mortais não possuem bens, valores, riquezas. Só os administram, pois os deuses os tomam sem qualquer aviso. O que tu queres? O Bem de Tebas, ou só o Poder? Se for o último, veja que uma guerra pode tirá-lo de ti em definitivo. Se for o Bem da Cidade, eu te pergunto: que Bem pode vir da morte, da destruição, da escravidão? Mas tu podes dizer que nenhuma dessas desgraças acontecerá se vencer a guerra. Porém, eu te pergunto, de novo: para qual deus tu dedicarás à vitória? Qual deles aceitará tua devoção? Qual deles perdoará o fato de ter matado o próprio irmão? Veja meu filho, não há vitória. Em todas as hipóteses tu perdes.


Esse último trecho da fala de Jocasta fica mais bem compreendido se trocarmos o vocativo e a idéia de deuses, pela idéia de remorso, de culpa. Não é raro que ladrões bem sucedidos, com o tempo, vivam o amargor da culpa, do arrependimento. São os chamados “tristes milionários”.


E tu, Polinice, tire da cabeça as más idéias que Adrasto inspirou. O que disse a Etéocles também te serve e com mais um agravante: se perderes a guerra como vais voltar a Argos? Tu suportarás as censuras? Ouvir que por causa de uma celeuma pessoal, toda uma pátria foi aniquilada?


Filhos, não há virtude na violência!


Irredutível, Etéocles diz à mãe: chega! Não há volta. Eu mando na cidade. Polinice, saia daqui, já!


Polinice rebate: quem tu pensas ser? Tente encostar-me a espada que logo eu te mando para o Hades.


Nesse clima, os irmãos continuam a trocar insultos e ameaças enquanto Jocasta afunda-se na depressão por nada ter conseguido.


Na seqüência, o Coro assume a cena e entoa a seguinte estrofe: Cadmo veio da distante Fenícia e aqui viu repousar uma novilha selvagem, conforme lhe predisse um Oráculo. Viu que aqui deveria semear o rico solo, junto às correntezas do rio Dirce, cujas águas irrigam a relva e as lavouras. Aqui Sêmele gerou o deus Brômio (Dionísio), filho de Zeus. Coroas de heras cobriram o menino, bendizendo o deus celebrado pelas mulheres tebanas que gritam “Evoé1”.


1 – Evoé – grito ritualístico sem tradução possível. Por aproximação no sentido, pode-se entender como “salve”.


A antístrofe inicia-se logo em seguida: aqui vivia o Dragão do deus Ares, que Cadmo matou com potente golpe na cabeça. Depois, por conselho da divina “Palas (Atená)”, semeou os dentes da fera abatida e deles nasceram homens guerreiros que, sorrateiramente, Cadmo induziu a lutarem entre si, não restando um só em pé. O sangue que deles jorrou empapou a terra que hoje resplandece.


O Epodo (a última parte de uma Ode) inicia-se logo após e diz: invoco-te Epafo, filho da nossa ancestral “ÍO” e de Zeus onividente. Clamo por tua prece na nossa bárbara língua (bárbara por não ser grega e sim fenícia). Vem a esta terra que teus descendentes fundaram. Nela reina a Divindade de duplo nome: Perséfone ou Deméter (a esposa do deus Hades e, por isso, a rainha do Inferno). Defende esta terra, pois aos Imortais tudo é possível.


Após a fala do Coro, o cenário da peça se modifica e se vê Etéocles convocando seu tio Creonte para aconselhar-se sobre a guerra. Diz-lhe o irmão de Jocasta: Etéocles preciso muito falar contigo. Procurei-te por toda parte, mas não te encontrava.


- O mesmo aconteceu comigo, tio. Quero teus conselhos, pois a reconciliação com Polinice não aconteceu.


Creonte indaga ao sobrinho que providências ele tomará, pois segundo soube Polinice confia no sogro e no exército.


- Que providências, tio? Não entendi.


- Os argivos enviaram um espião que prendemos e, segundo ele, o ataque não demorará. Seremos completamente cercados. Por isso te fiz a pergunta. Quais as providências que tu pensa tomar para evitar essa situação?


- É importante, tio, que nossas forças tomem posição fora das muralhas, além do fosso, para o combate imediato.


- Etéocles parece-me que tu não vês o que importa realmente. Temos poucos homens e o exército deles é muito superior ao nosso.


- Mas tio, eu acho que são covardes.


- Não sei não. A fama de Argos é boa em toda Grécia.


E entre a prudência do velho e a impetuosidade do jovem, os dois estudam a melhor tática de defesa até que concordam em deixar sete generais e seus batalhões defendendo cada qual uma das sete portas de Tebas. Eles enfrentarão assim, os sete generais inimigos que assaltarão cada uma das mesmas. Isto resolvido, Etéocles sai para tomar as providencias práticas, dentre as quais a escolha dos generais. Antes, porém, diz que se morrer em combate o tio deverá cuidar do casamento de Antígona e Hermon; ela, sua irmã e ele, filho de Creonte. Também lhe confia os cuidados com a mãe e com os negócios de Governo e deixa a ordem taxativa de que, se morrer, o corpo de Polinice não seja sepultado em Tebas, sob pena de castigo extremo a quem o fizer, mesmo que seja de seu circulo de íntimos. Depois, pede que o adivinho Tirésias seja chamado por Meneceu, também filho de Creonte, pois ele quer se consultar sobre o que é melhor para a guerra. Sobre o pai Édipo não emite qualquer ordem a ser cumprida, apenas diz que o reprova, mas que ele já está pagando pelos seus erros.


Nesse momento o Coro assume a cena e entoa a seguinte estrofe: por que, Ares guerreiro, teu canto abafa o alegre hino de Brômio (o deus Dionísio)? Por que tu não danças com a bela juventude? Por que lanças carros e cavalos espartanos contra os argivos e, destes, contra os tebanos? A inflamada Éris (Erínias, Fúrias) já arquiteta as duras calamidades contra os Reis de Tebas. Contra a raça dos descendentes de LÁBDACO (dentre os quais Laios). Na Antístrofe diz: oh, por que o rebento de Jocasta e Laios não foi morto? Quem nos dera que a Esfinge nunca tivesse atormentado Tebas e, com isso, trazido Édipo para esse Reino. Agora Éris espalha desventura entre os filhos de Édipo, pois os “não limpos”, jamais serão limpos, haja vista que vieram de ventre impuro. Do imundo ventre de Jocasta que se deitou com o próprio filho. No Epodo, diz: tu, Gaia, deusa primeira, gerastes outrora um dragão que se tornou a desgraça e a fama de Tebas. Para as núpcias de “Harmonia” os filhos de Urano vieram e “ÍO” gerou os primeiros Reis cadmeus, mas agora tudo isso se perde nos dias distantes.


A cena muda e agora surge o adivinho Tirésias que diz: filha ande com cuidado, guia-me nessa estrada, pois tu és meus olhos. Segure com firmeza as tábuas em que registrei os vaticínios que fiz e não os deixe sofrer avarias. Ao jovem Meneceu indaga se falta muito para chegarem, pois já lhes doem os joelhos. Mas Creonte lhe diz: calma, amigo. Tu já chegaste. Já estás em porto seguro. Que bom, diz Tirésias. Mas por que tu me chamaste com tanta urgência? Primeiro, homem, recobra o fôlego e relaxe, diz-lhe Creonte.


Sim, retruca o profeta. Estou deveras cansado. Estava com os filhos de Erecteu (os atenienses), para quem consegui importante vitória em sua guerra contra EUMOPO, da Trácia. Trouxeram-me ontem e me deram essa linda coroa de ouro, por gratidão. Foi o seu primeiro despojo de guerra.


Essa coroa, diz Creonte, simboliza a nossa doce vitória sobre os inimigos. Enfrentamos mar revolto, como tu percebes. Os “dânaos” nos ameaçam e sentimos enorme aflição por essa situação. Nosso rei Etéocles já partiu para enfrentar as tropas micênicas e deixou-me a tarefa de saber de ti como deveremos proceder para bem defender a Cidade.


Nota-se na fala de Tirésias certa prepotência ao tomar para si os méritos da vitória de Atenas. Essa pretensão pode ser compreendida pelo enorme respeito que Tebas lhe outorgava resultante do acerto de suas previsões anteriores. Outro fato que contribui para o auto elogio está ligado à influência que ainda hoje os ditos “sensitivos”, “médiuns”, “videntes” e afins exercem sobre o homem comum.


Bom Creonte, diz Tirésias, se eu estivesse conversando com Etéocles eu nada revelaria sobre os vaticínios, mas a ti eu falarei: Tebas padece desde que Laios teve um filho contra a vontade dos deuses, o qual, depois, tornou-se marido da própria mãe. Em seus olhos arruinados, ele viu o Saber divino. Os filhos de Édipo, desejosos de soterrar essa mácula, caíram no erro de esconderem o pai e essa sórdida história. Por desonrar-lhe, esconder-lhe e maltratar, eles atraíram a ira das Erínias. E ninguém, como se sabe, pode reverter tal maldição. Agora, a morte mútua chegou para ambos. O choque das lanças cobrirá a terra de cadáveres e a Cidade será arrasada, se meus conselhos não forem ouvidos. Por tudo isso só lhes restaria uma providência, mas eu suponho que tu não a aceitarás. Por isso, amigo Creonte, eu me vou, pois se ficar terei o mesmo destino trágico de vós outros.


Creonte pede ao sábio que fique e lhe responda do quê foge? Pede-lhe, também, que diga aos cidadãos que ele poderá salvá-los, para lhes dar alguma esperança. Tirésias, após alguma relutância, diz que concordará se ele, Creonte, estiver disposto a lhe ouvir. Ante o assentimento deste, o sábio começa a relatar suas terríveis previsões e pergunta por Meneceu. Creonte responde que o filho está próximo deles e, então, Tirésias pede que ele se retire.


- Mestre, deixe-o ficar. Ele sabe guardar segredo.


- Que fique, mas a responsabilidade será só tua, ó Creonte.


- Direi em primeiro lugar que ele, teu filho, deverá se sacrificar pela pátria. Que deverá morrer para que Tebas resista aos invasores.


- Não velho. Isto não! Não posso consentir com essa atrocidade


- É uma atrocidade para ti, Creonte. Para a cidade será a salvação.


- Vá para o Inferno, adivinho dos demônios. Dispenso teus oráculos, Tirésias.


- Tu esmagas a verdade quando ela te dói, Creonte?


- Ó Tirésias, eu te suplico. Não conte a ninguém esse teu vaticínio, pois se dele souberem não tardarão em vir sacrificar meu filho.


- Tu queres que eu me cale só para te favorecer?


- Sim mestre. Eu lhe imploro que não mates o meu Meneceu.


- Não, eu não o matarei. Outros o farão. Meu oficio é só falar.


- Oh deuses, donde vem essa calamidade que se abate sobre mim?


- Tua pergunta é sensata. Creonte imola teu filho no mesmo lugar em que o Dragão de Ares foi morto. A razão dessa exigência é o antigo ódio que o Deus da Guerra tem pelos Cadmeus (Tebanos). Se tu pagar essa divida com o sangue de teu filho, Ares será teu aliado e gloriosa será a tua vitória sobre Adrasto. Da antiga raça dos guerreiros que nasceram dos dentes do Dragão, só resta tu e tua descendência. Hermon não se presta ao sacrifício por já estar comprometido ao matrimonio com Antígona, destarte, sobra apenas Meneceu. Escolhe, pois, entre o sacrifício de teu filho, ou o da tua Cidade.


Logo em seguida Tirésias pede que a filha o leve de volta para casa. No caminho pragueja contra seu dom profético, pois quando fala a verdade desagrada o consulente e, quando mente, desagrada aos deuses.


O Coro assoma à cena e pergunta a Creonte a razão de seu mórbido silêncio. Responde-lhe Creonte: o quê lhes dizer. Só lhes digo que não oferecerei a vida de meu filho à Cidade. Eu já vivi o suficiente e estou pronto a morrer por Tebas, mas não estou para lhe entregar a carne que eu gerei. Por isso, dirigindo-se à Meneceu, foge a toda pressa, filho. Tirésias logo contará seu vaticínio aos outros que breve aqui virão para exigir teu sacrifício. Vá! Foges! Se demorares eles o matarão e nós estaremos liquidados.


Observe-se a genialidade de Eurípedes que ao mudar o prenome (“tu” para “nós”) consegue ilustrar o tamanho da dor que a morte de um filho acarreta aos pais. Ambos morrem juntos.


Mas o menino, aturdido por aquela brusca mudança em sua vida, revela seu horror infantil e questiona o pai sobre como e aonde ir.


- Vá, filho. O mais distante possível. Ultrapasse Delfos e siga para a Etólia. De lá tome o rumo para o “Território Sagrado”, o Santuário de DODONA. Ali tu terás um deus como guia.


- Mas como eu viajarei pai? Com que recursos?


- Eu te darei o ouro necessário filho.


- Já irei pai. Antes, porém, vou me despedir da mulher que me amamentou quando eu era um bebê, a tia Jocasta.


- Vá Meneceu, mas não te demores, pois o tempo urge.


Na frente do Palácio, Meneceu conta às mulheres do Coro o ocorrido e lhes confidencia que não fugirá, como deseja seu pai. Diz que só concordou para acalmar sua angústia senil e para evitar que ele o impedisse de se sacrificar pela amada Tebas. Não posso ir, diz, pois como eu poderia esperar complacência dos Homens e dos deuses? Que acolheria e perdoaria alguém que traiu a família, os amigos, à pátria. Morrerei pela minha terra. Irei ao lugar indicado pelo adivinho Tirésias e ali me ferirei com a espada. Meu sangue banhará a terra e, assim, afastarei o Mal que ameaça a Cidade e salvarei minha honra.


O Coro, na seqüência, canta uma estrofe cujo tema é a Esfinge: tu vieste, filha alada da Terra e da Equidana (monstro do subterrâneo que gerou várias aberrações, dentre as quais o CÉRBERO, A HYDRA DE LERNA, A ESFINGE etc.) para assolar os Cadmeus. Por tua causa derramaram milhares de lágrimas, até que o brilhante Édipo nos salvasse de ti. Primeiro, a alegria da Cidade; depois, o pranto graças às bodas com a própria mãe. Funestas bodas a emporcalhar a cidade. Sangue sobre sangue. Pobre Édipo que lançou os próprios filhos em ruinosa luta ao proferir sobre eles as mais terríveis maldições. Agora, só o menino Meneceu mostra-se admirável. Pleno de coragem, ele marcha resoluto a caminho da morte, para salvar a terra de seu pai e de seu povo. Ao pai Creonte causará grande dor, mas à “Tebas das Sete Portas” dará retumbante vitória. Quisera que todas fôssemos mães de filhos assim, ó deusa Palas Atená.


A cena muda para um mensageiro que bate à porta do palácio e pede para falar com Jocasta. Ao ser atendido diz à rainha que enxugue as lágrimas e pare de sofrer. A matriarca indaga se ele não vem lhe trazer más noticias, como a morte de Etéocles, já que ele era o escudeiro de seu filho. Sossegue mãe, Etéocles vive. Venho para banir qualquer desassossego que lhe perturbe. Na hora decisiva não fraquejamos e o escudo cadmeu foi mais forte que a lança argiva. Teus filhos ainda atuam.


- Então, superamos os argivos? Não penetraram na Cidade? Ó deuses sejam-nos propícios e te sejam favoráveis mensageiro. Eles estão cercados? Oh, vou correndo dar a boa nova ao velho Édipo.


- Espere rainha, pois tenho também uma má noticia. O filho de Creonte, Meneceu, sacrificou-se pela Cidade no alto das torres e seu sangue foi muito apreciado pelos deuses; e sua coragem incitou aos sete batalhões que defenderam as Sete Portas, conforme tinha determinado Etéocles. Carros e ágeis soldados socorreram os pontos vulneráveis. Do alto da fortaleza vimos os argivos avançarem desde o TEUMESO e quando eles estavam perto do fosso atacamos. Os hinos e os gritos dos dois exércitos se confundiram e logo se viu a seguinte disposição bélica dos agressores: contra a Porta Central investiu PARTENOPEU; contra a “Porta de Proteu” veio o vidente ANFIAREU; na “Porta Ogígia”, o imponente HIPOMEDON; contra a “Porta Homoloídica” bateu-se TIDEU; contra a “Porta Creméia” avançou teu filho Polinice; contra a “Porta de Electra” arremessou-se CAPANEU e na Sétima Porta investiu Adrasto. Cada Porta oferecia uma visão diversa enquanto eu levava as mensagens de um a outro chefe. Logo começou o furioso combate. Muitos tombaram e o solo sorveu sangue e dor. Etéocles, infatigável, corria de um lado ao outro, reforçando alguma coragem vacilante e corrigindo alguma falha. O insolente CAPANEU subiu uma longa escada, protegido por duros escudos, e quase alcançou o cume de uma das torres, mas foi alvejado por um providencial raio enviado por Zeus. Sua morte nos inflamou e rechaçamos os inimigos com vigor. Adrasto viu que Zeus lhe era adverso e sem alternativa ordenou a retirada, mas essa não se deu em boa ordem e pareceu mais uma fuga descontrolada. Cadáveres cobrem o solo, mas nossas muralhas estão intactas.


Optamos por alongar o resumo desse trecho para registrar o nome dado a cada uma das “Portas” na muralha que circundava a antiga Tebas. E também para sinalizar o esplêndido painel que Eurípedes faz, no original, dessa batalha. Sua descrição traça com empolgante realismo as características humanas presentes numa situação extrema: a coragem, o medo, o arrojo, a covardia, a sagacidade etc.


Jocasta diz, após ouvir o relato: são fartos os favores dos deuses. Meus filhos vivem e minha pátria ainda respira. Só o pobre Creonte é que padece com a morte do amado filho. É uma vitima do meu funesto enlace com Édipo. Mas continue o relato mensageiro.


- Não, minha rainha. Deixemos o resto, pois já não há nada de bom para lhe contar.


- Tuas palavras amedrontam-me, homem.


- Sossega, pois os teus filhos ainda estão vivos. Que mais tu queres?


- Quero saber se doravante estarei segura?


- Deixe-me ir, rainha. Não me obrigues a falar. Não quero misturar a boa e a má noticia.


- Diga!


- Ó por que não te contentas com a notícia de que teus filhos vivem?


- Fale!


- Eles dispensaram os exércitos, rainha. Teus filhos concordaram em travar um duelo singular. Um contra o outro, até a morte. Etéocles assim falou: amigos e inimigos, por que desperdiçar vossas vidas por mim ou por Polinice? Eu enfrentarei meu irmão e seu eu o matar, ocuparei em definitivo o Palácio real. Se ele me matar, tudo será dele. Encerremos, pois, essa guerra inútil. Polinice, Jocasta, saiu das fileiras e aprovou o trato. Os argivos e os tebanos (cadmeus) aplaudiram o desafio e os comandantes dos dois lados juraram cumprir e fazer cumprir o acordo firmado. Logo em seguida os filhos de Édipo se prepararam para o duelo e teve inicio o pavoroso combate.


Oh, deuses, geme Jocasta. O que eu posso fazer?


- Rainha, se tu tiveres alguma palavra sábia, ou alguma mágica, acompanhe esse humilde mensageiro e separe os teus filhos. Não demores, pois a morte não nos espera. Apressa-te.


Tomada de angústia e aflição, Jocasta chama Antígona e lhe pede que a acompanhe. Que a siga para impedir que os irmãos se matem. A princesa, aturdida com o desespero da mãe, ouve o relato do duelo e a ordem de seguir com ela até o acampamento militar.


- Mãe, eu não posso ir. Lá estão tantos homens. Eu tenho vergonha.


- E agora é hora de se ter vergonha? Ande, venha!


- Mas o que eu vou fazer mãe?


- A briga, filha. Separar a briga.


- Mas como?


- Cairemos de joelhos e imploraremos que parem com tal sandice.


- Sim, mãe. Vamos!


- Já, filha! Se eles morrerem, eu morrerei também.


O Coro fecha a cena com a seguinte Estrofe: ai, ai tremo só de pensar na dor que a lança causou. Dor e mais dor. Dor da mãe infeliz. Quem verterá o sangue do outro? Ó quanto sofrimento. Clamo por Zeus, clamo pela Terra. Ferro contra ferro. Regarei com lágrimas o corpo de quem? Na seqüência inicia uma ácida Antístrofe: feras! Carniceiros por má índole. Os dois. Só cadáveres dilacerados é que produzem. Miseráveis! Fremem pelo duelo, em bárbara língua. Com bárbaro grito anunciarei o prêmio da morte. Está próxima a marcha funesta. Desdita ditada pela ira.


Creonte reabre a cena e o Corifeu comenta seu profundo pesar. Para si próprio diz-se indeciso sobre suas lágrimas. Não sabe se chora por sua perda, ou se pela Cidade ameaçada. Lamenta o filho que ao morrer cobriu-se de glória e só lhe deixou uma dor que nada mitiga. Trouxe-o para lhe prestar os rituais, mas ao procurar a irmã não a encontra para que ela organize os funerais.


- Tu, ancião, sabes de seu paradeiro?


O Corifeu responde que a viu sair seguida por Antígona, após saber que os dois filhos travariam um duelo pela posse do trono.


- Oh, novo infortúnio! Tu sabes onde se dará a luta?


- Não. Sei apenas que ela partiu há algum tempo. Penso mesmo que o duelo já terminou.


- Novas desgraças eu vejo no semblante do mensageiro que se aproxima. Diga-me, homem, o que sucedeu.


- Desgraças, Creonte. Transmitirei péssimas noticias. Teus dois sobrinhos se mataram mutuamente.


Oh, Zeus, suspira o tio de Etéocles e de Polinice. Tu ouviste casa de Édipo? Infortúnio sobre infortúnio. Haverá deuses, males maiores?


Sim, responde consternado o mensageiro. Também tua irmã, a rainha Jocasta, morreu. Ao ver os filhos mortos, matou-se com a espada de um deles.


Pobre irmã chora Creonte. Que destino funesto foi o teu. As maldições de Édipo cobraram seu preço.


Após a morte de tua irmã, prossegue o mensageiro, os dois exércitos começaram a divergir sobre quem venceu o duelo. Os “dânaos” diziam ter sido Polinice, por ter dado o primeiro golpe. Os “cadmeus” diziam ter sido Etéocles, por ter dado o golpe mais forte; e desse impasse, Creonte, para o confronto físico e geral o passo foi pequeno. Nosso exército aproveitou o fato de não ter se desarmado e aplicou dura sova no inimigo que se retirou em desordem, em fuga atropelada. Desse combate, vários tebanos lucraram com ricos despojos, enquanto seus reis choravam as mortes na família. Alguns, contudo, moderaram sua ganância e ajudam Antígona a trazer os corpos sem vida para casa.


O Corifeu toma a palavra para avisar que já se avista Antígona chegando. Com ela, os três corpos. A princesa ao ver o tio Creonte lamenta sua perda irreparável e diz: três cadáveres eu trago. Sou a bacante dos mortos. Choro por mim. Choro por Tebas. A fúria, a matança arrasou a casa de Édipo. Sangue maldito! Que será de mim? Com que prantos, ó casa minha, eu te chamarei? Já choro pela minha futura vida solitária. Mostra meu velho pai, teu sofrimento. Venha pai e sinta o peso da desgraça que nos abateu.


Nesse trecho, no original, Eurípedes torna a mostrar a grandeza de sua pena ao compor um esplêndido painel das dores do Homem. A princesa adolescente, de chofre é arrancada de sua vida fútil para ser arremessada ao horror do mundo adulto. Em seus lamentos ecoam as dores da perda de sua família, de seu Mundo adolescente, e a angústia decorrente do pressentimento das terríveis situações que doravante enfrentará. Sem dúvidas, é um clássico da literatura de todos os tempos.


Vacilante, em cegos passos, Édipo assoma à cena e dirigindo-se à filha, murmura: por que me obrigas, filha, a sair do leito que recebe as minhas lágrimas constantes?


- Pai, eu trago noticias tenebrosas. Seus dois filhos mataram-se mutuamente e tua mãe e mulher, Jocasta, ao vê-los sem vida, tomou da espada de um deles e se suicidou. O que será de nós, pai?


- Filha, como suportar tamanha dor? Oh, meus pobres filhos. Oh, minha doce Jocasta. Zeus, o deus que preside a morte assentou-se em nossa casa neste dia tão funesto.


Creonte, de súbito, diz rispidamente: cessem as lágrimas. É hora de organizarmos os enterros. Quanto a ti Édipo atente no que vou dizer: teu filho Etéocles, antes de ir para guerra, encarregou-me de substituí-lo na chefia do governo em caso de sua morte, bem como nas tarefas atinentes ao casamento de tua filha Antígona com o meu filho Hermon. Ademais, deixou-me a expressa proibição de enterrar Polinice em solo tebano, pois se ele foi capaz de investir contra a própria cidade, essa não poderá servir-lhe de leito eterno. Sendo assim, como o novo rei, meu primeiro decreto será o de te banir. Não creia Édipo, que eu faço isso por ter inimizade contigo, ou por não gostar de ti. Faço-o por ser notório que tu atrais maldições sobre Tebas e só na tua ausência é que poderemos recuperar a grandeza da cidade. Quanto a Polinice, eu ordeno que seu cadáver não receba homenagens e túmulo. Que sirva de pasto para os animais, fora das nossas muralhas. São desejos de Etéocles que eu farei cumprir, mesmo que tenha que ferir os teus sentimentos. Quanto à Jocasta e a Etéocles terão funerais com todas as pompas e glórias pertinentes à grandeza de ambos.


Como já se observou noutros trechos aqui se nota que os erros cometidos por Jocasta – ter permitido que seu filho recém nascido recebesse uma sentença de morte e ter sido conivente com o incesto – são relevados. São considerados menores que o erro cometido por Polinice que teria investido contra a cidade natal, ainda que amparado pela Justiça de requerer um direito legitimo. É certo que não se deve julgar atitudes e conceitos da Antiguidade com os olhos de hoje, entretanto é importante salientar que no campo da Ética a humanidade talvez tenha avançado, não obstante todos os desmandos que ainda são cometidos. Crimes e injustiças continuam acontecendo, mas já não contam com o beneplácito da Lei e, menos ainda, com o das pessoas de bem.


Édipo, antes de responder a Creonte, queixa-se da sorte adversa que sempre lhe acompanhou e relembra os percalços que lhe atingiram antes mesmo de nascer quando foi assinalado pelos deuses como parricida e incestuoso, o que levou Laios a decretar sua morte. Ao fim de suas amargas recordações, pergunta-se o quê será de si? Cego, velho, sem os filhos e a esposa-mãe. E, agora, sem casa e sem pátria. Sem respostas, dirige-se ao cunhado Creonte e lhe pergunta o porquê de não matá-lo simplesmente? Depois, com um resto de altivez, diz a ele que não se humilhará pedindo para ficar em Tebas. Prefere morrer à míngua, no exílio, a ter que se rebaixar.


Creonte reafirma suas ordens e a Antígona ordena que cesse as lamúrias e se recolha no aposento das donzelas até que seja esposada por Hermon. Porém, a princesa não se curva às suas determinações e pergunta-lhe como ele ousa expulsar Édipo e deixar seu irmão Polinice insepulto. Creonte retruca e Antígona replica, sempre defendendo a justiça de se dar sepultura aos mortos, pois essa é a Lei dos deuses. E o embate prossegue até que a jovem o desafia dizendo que enterrará seu irmão, ainda que isto lhe custe à vida. Creonte aferra-se à suposta traição de Polinice, mas Antígona adianta-se na discussão e se recusa a casar-se com Hermon, dizendo que seguirá o pai Édipo em seu exílio. Sem alternativa, Creonte lhe diz que se vá. Que acompanhe Édipo e que morra com ele. Édipo, nesse ponto, interrompe a altercação e diz à filha que ela deveria cuidar antes de sua felicidade do que segui-lo, pois ele, de um modo ou outro, arranjar-se-á. Que em breve entrará no Hades. Que ela o deixe, já que seria vergonhoso para uma jovem acompanhar um velho e decadente pai.


- Não, paizinho. Irei contigo. E creia que isto só me enobrecerá.


- Guia-me, então, filha amada. É tempo de que se cumpra o Oráculo de Loxias (Apolo). Aquele, que determina que eu morra em Atenas, na sagrada região de “COLONO (nos subúrbios da capital)”.


- Às amarguras do exílio pai, caminhemos. Serei tua brisa no caminho do mar.


- Partamos filha. Tu me ensinarás a andar na amargura. Afastemo-nos desse maldito homem que não se envergonha de expulsar um homem velho e cego. Desse ímpio que não se envergonha de não cumprir a Lei dos deuses. Aqui vai quem decifrou o enigma da Esfinge e atingiu os píncaros da glória.


- Esqueça pai, dos sucessos passados. Só te causaram padecimento. Caminhemos. Ao Passado, só deixo minhas lágrimas saudosas. Estar unida ao meu pai será a minha glória. Feriram-me os ultrajes contra ti e contra meu irmão. Mas eu te juro pai, ainda que eu morra, eu o sepultarei.


As cortinas se fecham. Talvez mais pesadas.


Complementando o sentido desta “Tragédia”, publicaremos na seqüência “Antígona” e “Édipo em Colono”. Ambas serão resumidas com mais brevidade, dado suas características de complementação.


Rio, 04/06/2011

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