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Lembranças de uma outra vida
Nós sabemos quando sabemos. Pode parecer confuso, mas somos assim, confusas na nossa claridade de entender um momento. E é o telemóvel que não toca, a música errada que toca no momento errado, são pequenos cliques numa fracção de segundo que nos fazem despertar.
Voltando ao que interessa, eu sabia que algo se passava. Demorei uma boa meia hora a acordar devidamente e quando o fiz, vesti uma camisola, fui à casa de banho, ignorei a luz do sol que disparou rapidamente janela a dentro, abri a torneira de água fria metendo rapidamente as minhas mãos ao seu alcance e olhei-me ao espelho. Não pude conter uma onda fortíssima de enjoo ao ver uma garota desalinhadíssima, um olhar forte e borrado de maquilhagem que milagrosamente esta se esqueceu de remover, como tantas e outras vezes, esta é uma rotina que se repete sempre que todas nós não estamos a 100%. Um abrigo, é quando a certeza se torna em insónia, e a puta da desconfiança nos faz tremer os nervos e os restos do jantar de ontem à noite nos saem disparados da boca pra fora e tudo o que podemos fazer é rezar entre dentes para que aquela maldita onda de enjoo se vá embora e nos deixe pensar. Onde e quando é que estes nervos ressurgiram?
Será que foi ao te ver com a outra? Não sei. São tantas as Marias, os Alexandres, as Cátias, as Mónicas, são tantas as pessoas na minha cabeça que penso que enlouqueço. As ideias borbulham com uma intensidade surpreendente, tenho a ligeira impressão que algo se rompe lá por dentro. Toda a mulher quando se sente traída e tem provas de uma pré traição sabe bem onde é que deve procurar e eu, não sendo nenhuma burra, sabia o que devia fazer sem dó nem pena de um santinho. A tremer, dirigi-me ao portátil, liguei-o e assim que consegui conexão à internet, fiz o que já tinha feito há uns anos. Investiguei. E diz o ditado que quem procura sempre acha. Eu não sou nenhuma desconhecida a este facto e sempre procurei o que queria achar. E lá estava, os comentários à outra, os gostos, as mensagens secretas que ele não pensava ser fácil de eu vir a descobrir.
É assim, nenhum segredo está suficientemente bem guardado se tu sabes que falhas e mostras publicamente o que andas a fazer. Não há santo nem padre que lhe perdoe o que eu não posso perdoar, as mentiras. A indiferença. O ser apático que ele se tornou perante a minha presença. Mecanicamente, reuni as provas que eu precisava e guardei-as escondidas numa pen-drive que eu pretendia lhe entregar mais tarde. E foi o que fiz, sem nunca mais voltar as minhas costas, olhei-o nos olhos e terminei o que nunca deveria ter começado e recomeçado. Uma e outra vez para minha desgraça. O meu vício, o meu ex-amante. O meu ex-amor.
Há pessoas que não podem ser nossas amigas. Nem devem. Talvez nem querem ser nossas amigas. Para quê? Ao te verem lembram-se da merda que fizeram, mais vale evitar os espelhos para não encarar a causa da nossa desgraça, não é? E quando eu te ver de novo, em ruas paralelas, espero te olhar como um desconhecido que eu enxergo no escuro e verei a luz no teu olhar perdido.
Sempre pensei que era uma pena termos que jogar estes joguinhos, como se não me conhecesses e não soubesses o que sempre quis de ti. Não existem amores inalcançáveis, existem pois, pessoas amargas e indiferentes, que te querem e desejam de ocasião em ocasião. Quiseste me fazer crer que eras uma ilusão da minha mais recente autoria, mais uma personagem para um livro que ajudaste a escrever durante uns poucos de anos, o futuro que, quando estávamos juntos, tornou-se uma ilusão. E o uso obtuso da desculpa que eu queria algo inalcançável cansou-me, essa treta era tudo o que dizias quando já andavas com o olho nas outras e nos outros. Não que vás admitir o que fizeste. Não faz mal, eu sei o que sei. Eu apercebi-me dos meus erros e, sempre que me parecer certo, voltarei a estar com alguém, não abertamente como contigo. Não.
E nem todas as cartas são de desgosto e de amargura, gostava de te ter escrito outras palavras, sem ser diversos bilhetes espalhados pela tua casa a dizer o quanto eu te amava.
Porque as ondas de enjoo já me bastaram, já me encherem de bílis, congelaram uma parte do meu ser que reservei para quem eu amei.
E hoje, acordei sozinha numa cama conhecida, mas tão desconhecida, amargamente errada, pensando que tudo poderia ter sido tão diferente se tu tivesses lutado, se tu tivesses … falado, respirado, me olhado, perdido o controlo, passado uma noite a olhar para mim e eu para ti. E se me tivesses visto, eu continuaria ao teu lado. E enquanto for necessário, continuarei a repensar no que não foi e no que poderia ter sido, até que as palavras sejam desconhecidas e eu não necessite de mais nenhuma lista de deveres para dormir exausta, noite após noite.
Joana Silva 14/01/2013
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Comentários
Não é apenas talento para a
Não é apenas talento para a escrita;
é também emoção vivida e sentida
através das palavras, partilhada!
Muito bem!
1 abraç0o!
Abilio
esperança
Abilio,
Muito obrigada pelas tuas generosas palavras!
Vamos escrevendo o que sentimos com a esperança que mais alguém nos entenda.
Beijinho,
Joana.
Lembranças
Carta salpicada de venenos, às vezes parece, mas outras vezes parece uma melodia de saudosas recordações, Poeta. Em qualquer caso três bons R! O título está puramente místico. Gostei! O teu talento para sugerires o contraste entre a violência da dor e a intensidade de viver é apreciável. Foi uma boa surpresa pois há já algum tempo que não lia coisas tuas. "Quero mais!" LOL Ah, felicitações pelo novo visual!!
Beijos, Joana.
Nuno
O Passado
O passado deveria ser lindo como uma saudosa carta de lembranças! :)
Obrigada pelo teu amável comentário, limitei-me somente a escrever o que me ia na alma. Quanto ao "mais", fico feliz por gostarem do que escrevo e eu também anseio pelo que escreverei de seguida. Muito obrigada, Nuno, por teres reparado na mudança!
Beijinhos,
Joana.