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Memória de um sonho de voo

Memória de um sonho de voo

Os corpos caíram com um estampido seco na calçada, um atrás do outro, seguidos.

Ouviu-se um marulhar de gente a levantar os olhos e o queixo em direcção ao cimo do prédio onde já não estavam, só depois em direcção ao chão.

Os membros retorcidos de Pedro e Inês, abraçavam-se em sangue e outros líquidos corporais. Os gritos sucediam-se como aviso da fatalidade aos desprevenidos e os olhos das crianças que até esse momento brincavam, foram tapados com mãos trémulas de dor.

O beiral do telhado alto do prédio tinha os dedos dos transeuntes apontados, sinalizando o local da queda. Teriam caído? e que fariam nesse caso ali? Ter-se-iam suicidado!...?

Pedro e Inês conheciam-se desde sempre, mas foi numa segunda-feira de Março, exactamente dois anos antes daquele dia rubro, que os seus olhos se abraçaram sob a cumplicidade de um sol que cada um trazia a meias dentro de si e que se uniu escaldando a adolescência de ambos.

Quinze anos somavam naquele dia em que o cheiro das plantas se embrenhou com o dos seus corpos juvenis, perto da roda da azenha da velha ponte medieval, confundidos com o ranger das tábuas, cada um sentindo o rio passar dentro de si.

Inês era de uma beleza sem igual. Deus quando a criou, escondeu o molde, não fosse uma qualquer confusão dar azo a uma repetição da criação, estragando a originalidade das suas feições: O fino recorte dos lábios, os olhos rasgados numa pele macia e cândida, os ombros protegendo um busto suave onde dois generosos seios lembravam redondas laranjas.

Aquela deusa caminhava delicada nas suas formas esbeltas. Um rabo que de tão redondo dava novo sentido à circunferência, pernas compridas que começavam nuns pés de dedos meigos e terminavam no estreito delta da sua púbis. Costas direitas, assentes sobre quadris de sonho e uma lagoa ao fundo das mesmas, com uma ilhota a subir das águas; dois dedos abaixo, a linha do desejo dividia aquele corpo em dois gomos sumarentos.

A pele morena de Pedro contrastava com a brancura da sua amada. Os longos cabelos escuros, cada vez que se misturavam com os fios de oiro do de Inês, pareciam ganhar um brilho novo. Alto, porém de formas magras, com os dedos longos das mãos a terem a medida certa do braço da viola, que tocava como ninguém.

A música era só a segunda paixão depois de ter começado a namorar com a filha única de Faustino Arroja, comerciante de bacalhau, homem tão seco quanto o norueguês petisco, de um olhar soturno e tão afiado quanto a lâmina da guilhotina que o punha às postas.

O abastado negociante, logo que soube do namoro dos dois, barafustou e amaldiçoou aquela união, a meio de uma espanholada confeccionada por dona Helena, sua assustada mulher, que um dia arrancou a uma adolescência que não lhe pertencia, mas que dela se apropriou, engravidando-a na flor de uma meninice, a mesma de sua filha Inês, a quem agora negava o direito de amar.

Inês fugiu daquela mesa transformada em tribunal, levou nos pés os gritos do pai, acusadores, que a alma, essa ansiava pelo reencontro dos passos de Pedro, pelos acordes da sua viola, pela voz de veludo nos versos que fazia e a quem emprestava os dedos, acariciando cordas, fios de emoção dedilhados na mestria que se pode ter aos quinze anos.

Encontrou-o no lugar de sempre, caneta riscando o papel. Esboços de poemas acotovelando-se para conseguirem espaço na folha.

A sua musa acariciou-lhe os cabelos, envolveu-se braços nas pernas, cabeça descansada sobre os joelhos, fitando o seu amor, ternamente, sem falar…

Pedro, apesar da breve idade que tinha, era um inspirado e criativo músico, autor de letras já maduras, como que espantosamente sacadas a uma alma que já havia vivido antes, experimentado, numa outra dimensão, numa qualquer outra história de vida.

Não sabia muito bem como é que isso lhe acontecia, o que é certo é que cada vez que escrevia era como se o tempo parasse. Como se escrevesse num espaço em eterno fuso horário.

De todos os temas, o amor, era aquele que mais o entusiasmava, até porque a sua cumplicidade com Inês foi ganhando com o tempo contornos de paixão transbordante, que o trazia em constante inspiração criativa.

O que o poeta não sabia é que, durante quase dois anos, Inês havia sofrido na alma e no corpo as agruras causadas por um pai autoritário, que não poucas vezes havia recorrido à violência física, como punição por aquela paixão proibida, manchando de uma dor maior ainda, o desgosto e frustração que sentia.

Sofreu em silêncio, com uma mãe que com ela chorava, lágrimas de um sal cortante, que ardia na face, lágrimas pelo corpo todo.

Faustino Arroja não gostava de Pedro, pela mesma razão de ódio que tinha à sua mãe, com quem no passado manteve relação amorosa, e que o havia deixado pelas mesmas razões de mau carácter, que a vida aguçou e se evidenciavam no presente, na relação de quase escravatura que mantinha com os seus funcionários, com a família.

A mãe de Pedro ficou viúva anos mais tarde, do casamento que viu nascer o jovem, tinha este, onze anos de idade.
Regressando à terra de origem, procurou levar uma vida tranquila, trabalhando e educando o rapaz numa ternura de cumplicidade, de verdadeira compreensão. Eram como irmãos, mãe e filho.

Arroja estava decidido a não desistir daquele amor doentio; despeitado, nunca desistiu de reconquistar Maria Augusta, a quem as constantes investidas do comerciante causavam irritação e constrangimento.

Pedro teve noção daquilo que se passava, quando as manhãs deixaram de trazer o sorriso angelical de Inês, quando uns olhos belos se substituíram por outros, encovados, tristes.

O tirano e perturbado pai, chegou ao ridículo de vigiar cada passo da filha, de a encerrar no cárcere da sua própria casa, impedindo que esta se encontrasse com o seu amor, que trocasse uma só palavra que fosse e, chegou mesmo ao ponto extremo da agressão, quando socou violentamente Pedro, num dos cada vez mais raros encontros entre os dois apaixonados.

Nunca mais Pedro sorriu nos olhos de Inês, nunca mais aquela sereia se deu desprendida aos seus braços longos, nunca mais os dias foram iguais aos dias felizes, em que libertos se misturavam com a natureza, com as águas do rio que os viu nascer, numa melodia sempre nova, que Pedro retirava, mordendo o lábio, à viola que tinha dentro de si.

Sentiu que perdia a cada dia a sua amada, que esta anoitecia antes da hora e que o seu tempo, já não era o tempo fora do tempo, eterno fuso a fiar a sua escrita, a sua vontade de cantar o mundo, o amor, livre de tudo, de todas as barreiras.

A tristeza tomou conta de ambos, remeteu-os a uma solidão forçada. Já não se encontravam, trocavam mensagens escondidas no bolso salgado de Miguel, empregado do pai, fiel amigo e companheiro dos tempos da escola e da inocência, que ia e voltava com lágrimas em forma de carta e promessas de amor eterno.

Uma noite, em que o malévolo cangalheiro se deslocou ao Porto em negócios, encontraram-se furtivamente. Inês deslizou suavemente por uma janela sempre aberta na sua alma, deslizou delicada, vestido branco comprido que desprendia um corpo que parecia acontecer nas estrelas daquela noite, transparecendo solto no luar, anunciando um dia novo, um novo dia.

Fizeram amor, intensamente, como pode e deve ser o amor aos dezassete.
Fizeram-no livres, de tudo, de todos.
Fizeram-no!

Num último olhar, num beijo molhado que nunca foi de sal, antes mel, do mais doce mel. Olhos nos olhos, confiantes no dealbar de um novo poema, de uma canção a duas vozes, dueto de emoções partilhadas.

A manhã daquele dia de Março acordou com os dois amantes abraçados no topo do prédio, um pouco mais perto do céu, como dizia a canção de que gostavam.

A um passo só da libertação, como se a imortalidade lhes tivesse sido prometida à distância de um só passo.

E deram-no!

Confiantes e seguros. Mão na mão, olhos nos olhos, felizes.

…………………………………………………………………………………………………………………………………
Os sinos, pesarosos tocaram dentro de toda a gente, a história de Pedro e Inês chegou mais longe que os chorosos sinos.

Na capela mortuária duas urnas, duas, que assim o impuseram Maria Augusta e dona Helena, as mães numa dor sem fim na morte dos seus filhos, mas renascidas contra tudo, contra todos…

O serviço fúnebre foi longo e emocionado, o pároco, também ele moço novo ainda, lembrou aos presentes o quão efémera pode ser a vida e grande e imortal o amor, que Deus não deixaria por certo de acolher quem tão apaixonadamente se deu ao outro.

Quase no final, o amigo Miguel, companheiro muitas vezes da música e das palavras, aproximou-se do altar, fitou os presentes nos olhos, pelos olhos do seu amigo, cujo bolso ensanguentado das calças continha uma nota póstuma, para ser lida no dia do funeral, último desejo de Pedro.

Era um poema e Miguel disse-o assim:

Memória de um sonho de voo

Voamos sobre todas as casas
Eu e tu, naquela suave manhã
Não precisamos de bater asas
Nem amor foi palavra triste e vã

Os meus olhos eram teus
no último segundo de mim
E eram nossos os olhos meus
Na eternidade do doce fim

Os meus lábios nos teus colados
Traziam-te nos meus beijos dada
E eram nossos os poemas falados
Na suave ternura da boca beijada

Digo-te até já minha flor de lótus
Encontramo-nos onde tu sabes
Na distância sublime dos corpos
Para que te não fines nem acabes

A brisa levou-nos para nós
Na serenidade do voo breve
Já ninguém mais cala a voz
De quem arrisca e se atreve

Pedro, 21 de Março de 2007

in "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos - CorposEditora - Junho de 2007

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terça-feira, janeiro 6, 2009 - 11:12

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