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O GRITO DA MANDRÁGORA

O GRITO DA MANDRÁGORA
Depois de muitos anos sem engravidar, nasceu uma menina a quem deu o nome de Circe, a famosa feiticeira da mitologia grega.
Foi um parto estranho, sem uma gota de sangue derramado, nem antes as águas deram sinal da boa nova, uma madrugada de sexta-feira 13 apareceu-lhe entre as pernas a recém-nascida, muda e imaculadamente limpa sem qualquer vestígio do parto, de olhos fechados e mãos cerradas e toda encolhida como se ainda estivesse dentro do útero materno.
Dias antes tinha conseguido adquirir a tal raiz tão cobiçada, pelo seu desejo de ser mãe, apesar da sua idade avançada, percorrera muitos ingremes quilómetros, invocando a feiticeira dos venenos para que a guiasse na sua aventura, qual falcão procurando escarpas e desfiladeiros onde encontrar a misteriosa raiz, na Serra de Monchique, na encosta virada a norte, a grande raiz castanha, um pouco parecida com um corpo humano, dividida em duas ou às vezes três pernas, com grandes folhas verde-escuro e com suas flores variando do branco ao azul esbranquiçado e à sua volta os pêndulos das maças de Satanás, exalando um odor forte e fétido.
O dia começava a amanhecer mas ainda estava preso na penumbra da escuridão noturna sem a presença da lua, algures escondida entre as densas nuvens cor de chumbo, a serra estava fria e quieta, a terra orvalhada e fumegante, a crença de que a mandrágora brilha a noite tem uma base de fato, por alguma razão as suas folhas atraem os pirilampos, e são essas pequenas criaturas, cuja luminescência esverdeada é muito impressionante, que fazem a planta brilhar na escuridão, o que levaria qualquer desavisado certamente a sentir-se assustado com a aparência da planta no escuro e achar que as antigas lendas sobre seus poderes diabólicos eram verdadeiras. Até mesmo o grito temeroso pode ter ao menos um pouco de verdade de onde a lenda foi ganhando mais força. Essas plantas com raízes grandes e encorpadas geralmente crescem em lugares húmidos e quando são arrancadas da terra, soltam um ruído estridente. As lendas de pessoas que endoideciam têm mais a ver com o odor narcótico exalado pelas folhas na hora de arrancá-las do que com o ruído em si. Imaginem a pessoa assustada com o cheiro da planta arrancando uma raiz que lembra um ser humano e que ainda grita. Quem consegue imaginar a cena também pode imaginar o que esta mesma pessoa poderia sair falando dessa situação. E claro que todos sabemos que "quem conta um conto aumenta um ponto". Naturalmente todos os detalhes horrendos da lenda da mandrágora foram mantidos vivos por aqueles que vendiam as mandrágoras. As pessoas pagavam quantias exorbitantes por uma mandrágora em bom estado e com forma humana, e as guardavam como importantes talismãs. Ajoelhou-se diante da planta e começou a escavar com um pequeno punhal feito de madeira, afastando a terra à volta da raiz até lhe descobrir os braços e as pernas do pequeno homem adormecido nas entranhas do solo que ela sabia que ao ser acordado do seu sono, ao ser retirado de seu descanso, dava um grito tão agudo que era capaz de deixar surdo, enlouquecer e até mesmo levar à morte.
Invocando mais uma vez a feiticeira dos venenos, a grega Circe a quem prometeu dar o nome da sua primogénita, num piscar de olhos o cão negro e esfomeado apareceu perto de si, com um corda ao pescoço, alcançou o animal e pegou na extremidade da corda que arrastava solta pelo chão, amarrou-a ao fundo da raiz, lançou a sua mão ao ar e viu ser projetado para longe um pedaço de carne de cheiro intenso, para o qual o animal se precipitou em correria e arrancando a raiz do solo, a planta soltando o seu grito terrível de angustia, e ela soprando fundo e ruidosamente dentro do corno do boi virgem, cobrindo dessa forma o berro agonizante do vegetal arrancado à terra, salvando a sua vida. A seguir aproximou-se do cão moribundo, com as orbitas arrancadas e a sangrar, e a pele do animal tão esticada que se tinha transformado numa peneira que deixava trespassar o sangue semi coagulado e o animal esvaia-se cumprindo o sacrifício exigido pela planta, morrendo o cão para não pagar a prodigiosa aquisição com a própria vida.
A sua cobiça por essa planta vinha da leitura bíblica onde constatara o poder afrodisíaco e que aumentava a fertilidade ou ajudava a mulher a engravidar. Mandrágora é citada na bíblia em Gênesis 30, 14-16: 14 Um dia, por ocasião da ceifa, Ruben saiu ao campo e, tendo encontrado umas mandrágoras, levou-as à sua mãe Lia. Raquel disse a Lia: “Rogo-te que me dês as mandrágoras de teu filho” 15 Lia respondeu: “Já não é bastante o teres tomado meu marido, para que queiras ainda as mandrágoras do meu filho?” - “Pois bem, tornou Raquel, em troca das mandrágoras do teu filho, (permito) que ele durma contigo esta noite” 16 À noite, quando Jacó voltou do campo, Lia saiu ao seu encontro: “Vem comigo, disse-lhe ela, eu te aluguei em troca das mandrágoras do meu filho”. E Jacó dormiu com ela aquela noite. Lia concebeu mais um filho nessa noite, mas Rachel que até então era estéril, depois desse episódio com as mandrágoras também concebeu e deu a luz José, está lá em Gênesis.
Os feiticeiros da Idade Média acreditavam que as mandrágoras eram um tipo de meia-criatura entre o ser humano e o vegetal. Suas folhas reluziam à noite (por isso também eram conhecidas como velas do demônio) com um brilho estranho. Seus frutos e folhas exalavam um odor narcótico e sem igual. Sua raiz possuía a forma de uma pequena figura humana, com uma vida própria e esquisita, pronta para tornar-se o auxiliar de um mortal que tivesse coragem suficiente de tomar posse dela.
Porém tomar posse de uma mandrágora era uma ousadia repleta de perigos, porque ao ser arrancada da terra, ela soltava um grito tão assustador que aquele que o ouvia ficava insano ou caia morto no mesmo lugar. Assim, a feiticeira que desejava possuir uma mandrágora tinha que seguir um ritual no mínimo curioso: Ao encontrar a planta, que geralmente crescia aos pés de um local sobre o qual estavam os restos mortais de um criminoso condenado a forca (debaixo de uma árvore ou cadafalso por ex.), a feiticeira teria que seguir os trâmites que ela estava seguindo agora, deixando-se levar nesse torpor anestesiante e ser copulada pelo espírito da mandrágora que tinha como semente o sêmen do homem enforcado.
Com a raiz nas mãos e de olhos fechados, exalou para cima dela o seu hálito transformado em vinho novo que a lavou da terra que ainda tinha ficado agarrada às raízes, envolveu-a num pano de seda vermelha e guardou-a numa bolsa de couro bem fechada.
Chegou a casa já muito tarde, cansada de tanto caminhar, deitou-se na cama e adormeceu. Acordou deparando-se com a recém-nascida sentindo-lhe o calor da sua pele nas suas pernas, levantou-se e pegou nela, sentindo-se ser puxada para o leito tal era o peso da menina, com muito esforço lá conseguiu ficar um pouco com ela nos braços, mas logo a deitou porque pesava mesmo muito.
Lembrou-se da raiz que guardara na bolsa de couro e foi busca-la. Abriu-a mas não encontrou nada mais lá dentro a não ser o pedaço de seda vermelha com cheiro a vinho. Olhava confusa para a recém-nascida e tentava compreender o que correra mal naquele seu desejo de conceber um filho pela raiz da mandrágora.
A criança abriu os olhos e sorriu. Os seus olhos eram de um vermelho lume, iguais ao centro de um vulcão a borbulhar de lava incandescente, saíram do rosto de bebé e ficaram a pairar no ar olhando a feiticeira, de boca aberta de pasmo e completamente assustada, entraram-lhe pela boca adentro e fizeram-lhe crescer o ventre que em poucos segundos assumiu o tamanho de uma barriga de nove meses, começando a sentir dores do parto e algo a mexer-se dentro dela, o sangue escorria-lhe pelas pernas, sentia todos os seus ossos da bacia a alargarem-se até saírem do lugar e se partirem provocando-lhe dores horríveis, o seu próprio grito estourava-lhe os tímpanos e esmagava-lhe a massa encefálica, escorrendo pelos ouvidos, via-se derreter no chão transformando-se numa amalgama disforme esverdeada, peganhenta e fétida, e ainda que sem olhos não parava de ver e ouvir a criança a rir, num riso acutilante que lhe provocava náuseas vertiginosas e vómitos em jorro escaldante fazendo-a sentir a garganta a queimar e a ser sufocada pelo riso que lhe torcia a língua dentro da boca, aturdida pelas contrações diabólicas e nauseantes que aumentavam mais e mais.
O sangue não parava de correr de dentro de si, via-se com o quarto completamente alagado até aos joelhos, o seu próprio sangue que agora alimentava os terrenos circundantes à sua casa e onde cresciam milhares de raízes de mandrágoras, escorria pelas portas fechadas e fazia crescer as plantas no jardim.
As dores do parto não paravam e repetiam-se em milhares de sequências de jorros de sangue, dores que quebravam ossos, umas vezes suores frios outras vezes o corpo encharcado e quente, por nove vezes o rosto de bebé abriu os olhos ensanguentados e feitos em chamas acesas, verteu lava a ferver que a queimava por dentro e fazia o seu sangue mais vermelho vivo, uivando e gritando ainda mais do que o grito alucinante da mandrágora.
As plantas alargavam as suas folhas e floriam as pequenas flores azuis cobrindo todo o monte à volta da casa que se ia enterrando e ficando debaixo da terra e sendo invadida pelas raízes, elas se multiplicavam e inundavam os compartimentos sentindo-se um odor putrefacto e pestilento, o sangue escurecia e ficava negro tomando a forma de um cão com dentes muito afiados rosnando e dando dentadas no seu corpo arrancando-lhe pedaços caídos para o chão os quais as raízes tentavam agarrar digladiando-se entre elas, sentia-se bastante sufocada pelo peso e pela falta de espaço e pelas dores que cada vez eram mais fortes.
Na penumbra do quarto do hospital cintilava uma nuvem poeirenta carregada de odores etílicos e o cheiro da ferida aberta cosida grosseiramente deixando o dreno livre para escorrer o hálito pútrido do seu ventre que custava a fechar, palpitava debaixo da roupa da cama como se fosse um pequeno coração em arritmia.
Nos cuidados intensivos do serviço neonatal, a sua filha recém-nascida lutava para sobreviver. Era um corpo bastante disforme, mãos com seis e nove dedos, os pés igualmente com mais do que cinco dedos, e a cabeça anomalamente pequena era coberta de pelos negros e só com um olho sempre aberto sem pálpebra nem pestanas, mantinha-se viva aparentemente com todos os órgãos vitais a funcionar, o cérebro mesmo mais pequeno do que o normal, estava em funcionamento, e as analises feitas ao sangue demonstravam estar tudo dentro do habitual.
Seria sempre um ser vegetal se sobrevivesse. Tanto que lutara para conseguir engravidar, recorrera a tudo, o convencional e o tradicional, e fora ainda tentada a entrar nos meandros obscuros da magia e da feitiçaria e das mezinhas caseiras, tendo tido conhecimento das propriedades da raiz da mandrágora para esse efeito, reproduzir-se.
Aventurara-se ela mesmo, até à serra, para a procurar e conseguira encontrá-la e trazê-la para casa sem problema algum, nem esses efeitos, que a lenda diz que acontecem, ela não viu nem sentiu nada.
Arrancou-a da terra normalmente como qualquer planta e sacudiu-a do excesso de terra na raiz, e viu que era realmente uma raiz curiosa semelhante à forma humana, parecendo um pequeno boneco, com dois braços e duas pernas e uma cabeça pequena. Aparou-lhe as extensões de raiz nas pontas, tirou-lhe as folhas e levou consigo o pequeno rizoma vegetal em forma de pequeno homem.
Fez todo o ritual como lera e como estava previsto, quatro meses mais tarde soube-se gravida aos cinquenta e sete anos, pela primeira vez na sua vida.
Era uma mulher saudável e cheia de energia mas começou a adoecer rapidamente e não houve tempo de tomar providências acerca da gravidez, mesmo ela nunca admitiu por fim a essa situação. Com o tempo foi definhando de dia para dia.
Teve uma gravidez de risco bastante difícil e passou os restantes cinco meses sempre deitada na cama. Um dia pediu que abrissem uma gaveta e lhe dessem um pano vermelho que estava lá no fundo da gaveta, mas nada disso que ela pedia encontraram.
Contara o seu segredo apenas a uma amiga e mostrara-lhe a raiz escondida na gaveta.
A raiz ganhara vida própria e encontrava-se agora nas mãos dessa amiga, tornando-a uma pessoa cheia de poderes mágicos, poderosa mas muito maléfica que enriquecia empobrecendo os outros e fazendo-lhes mal. Todos os que a rodeavam adoeciam e acabavam por morrer deixando-lhe todos os seus bens patrimoniais.
A bebé disforme esperava ser levada para casa. Sobrevivera e tinha alta da maternidade.
Ela continuava martirizada de dores e rodeada de frascos, tubos, agulhas, máscaras, máquinas a apitar, adesivos, compressas de gaze, tudo isso porque a ferida aberta pela cesariana não fechava e a sua carne apodrecia tendo o cheiro das maças da mandrágora.
Levaram a menina monstro da maternidade e ninguém se importou com isso. Ela esta agora deitada numa cama escorrendo sangue entre as pernas e alimentando assim a raiz da mandrágora maquiavélica, dando-lhe cada vez mais poder e tornando-a imortal bem como à pessoa que a possui.
Alimenta-se do sofrimento da moribunda que jaz na cama do hospital e do sangue que escorre da menina virgem que não se mexe, não cresce, e não vê nem ouve nem chora, mas os gritos dilacerantes da mandrágora arrancada na serra continuam a ecoar nos ouvidos da doente que tenta gemer mas fica com a dor sufocada na garganta entupida pela língua enrolada num nó de raiz de mandrágora.
Foi depois de ter comido um pequeno bolo que a sua amiga lhe ofereceu com um chá, que tudo se desencadeou, sentiu-se possuída por esse pequeno tubérculo que lhe tirou a saúde e se apoderou do feto que crescia dentro dela.
A mandrágora possuía e era possuída num só grito.
Ana Barbara Santo António

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sábado, junho 1, 2013 - 15:12

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