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O incrível homem que tinha medo de bonecas

E viveriam felizes para sempre, parecia ser o destino traçado para Ricardo e Bianca. A festa de seu casamento havia sido até citada em duas colunas sociais, de tão maravilhosa. Ambos tinham bons empregos, Ricardo era funcionário público e Bianca coordenava um curso de graduação em Enfermagem em um Centro Universitário privado. Com as rendas combinadas, já tinham comprado e mobiliado um excelente apartamento, em um bairro semi-nobre de Belo Horizonte. Sem grandes dificuldades materiais, investiam na relação afetiva e um era todo carinho para com o outro. Enfim, eram o epíteto de uma família classe-média acima da média: casa própria, dois carros na garagem, duas televisões LCD, uma de LED: aquelas classificações típicas dos sistemas censitários.
Estavam particularmente contentes, pois comemoravam a gravidez de Bianca. A chegada da primeira herdeira completaria a bela cena familiar. Bianca passava bem, vinha tendo uma gravidez tranqüila e, graças aos recursos que não faltavam, dedicava-se aos preparativos com esmero. Tudo estaria perfeito quando chegasse uma princesinha àquele lar.
Assim iam vivendo, Bianca pelos sete meses, quando, uma noite, Ricardo, entrando no apartamento ao retornar do serviço, soltou um grito de horror. Bianca assustou-se tanto que foi atacada por repentina imobilidade. Ricardo continuou gritando e voltou correndo para a sala. Parcialmente refeita do susto inicial, Bianca conseguiu ir atrás dele.
- O que foi, o que foi, o que foi?, perguntava, a voz alterada, tentando forçar-se a compreender o que estava acontecendo e procurando freneticamente com os olhos algum sinal externo de machucado.
- Gâââârrrrriisst, foi a resposta que teve, um grunhido estranho, como se Ricardo não conseguisse falar. Ele tinha se encostado à parede, com os braços abertos, como se desejasse abraçá-la, o rosto de lado, os olhos revirados. A imagem assustadora relembrava uma mistura tétrica de O Exorcista com o quadro de um ataque epilético. Bianca começava a ficar realmente assustada. Afastando-se pouco, ligou para seu pai, que não morava longe. Em poucos minutos, ele chegou, acompanhado da mãe. Conseguiram colocar Ricardo no carro e partiram para o hospital.
Na metade do caminho, Ricardo já estava sensivelmente diferente. Ainda suava frio, o corpo meio amolecido, mas já não tremia e os olhos retornaram às suas órbitas normais. Falou:
- Não precisa ir para o hospital, já estou bem.
- De jeito nenhum, respondeu Bianca, taxativa. – Nós vamos agora ao hospital.
- Eu já estou me sentindo melhor, não foi nada.
- Isso não está em discussão. Nós já estamos chegando.
Na emergência do hospital, foram atendidos por um pneumologista. Era o único profissional de plantão. Receitou um calmante, disse as obviedades de sempre sobre estresse e trabalho demais, e aconselhou que agendassem consulta com um psiquiatra quando possível. Esse gênero de platitudes sempre irritava Bianca, que gostava de precisão e, sobretudo, receitas compridas. Naquele instante, contudo, o simples fato de Ricardo estar de volta ao normal já a tranquilizara o suficiente.
Voltaram para casa. Os pais de Bianca decidiram acompanhá-los ao apartamento para checar se tudo ficaria bem. Os vestígios da crise ainda estavam presentes: o sofá da sala fora do lugar, um enfeite de mesa tinha se quebrado, marcas na parede. Bianca falando para o pai:
- Deixa isso para lá, amanhã a faxineira dá um jeito, eu ajudo, deixa isso para lá.
Enquanto isso, amparava Ricardo, caminhando em direção ao quarto do casal. Passando pela porta do quarto que estava preparado para a pequena princesa, Ricardo convulsionou novamente, de uma forma tão violenta e repentina quanto da primeira vez. A cena repetir-se-ia exatamente à mesma, não fosse o fato de que o pai de Bianca obstruiu o caminho para a sala, o que fez com que Ricardo corresse para o quarto do casal.
Lá estava ele, todo retorcido, colado à parede, rosto revirado, balbuciando os mesmos grunhidos. Repetiu-se todo o ritual, com a ida ao hospital e mais um encontro inútil com o pneumologista. Que dessa vez sugeriu que ele terminasse a noite internado. Como eram três horas da manhã, Bianca aquiesceu.
Na manhã seguinte, após tomar dois frascos inofensivos de soro, Ricardo estava liberado para voltar para casa. A consulta com o psiquiatra ficou agendada para a tarde do mesmo dia. Os pais de Bianca, que tinham ido dormir em sua casa, estavam de novo no hospital para ajudá-la com a operação retorno.
Novamente em casa. Novamente, ao ir para o quarto, a crise. Dessa vez, o pai de Bianca interveio:
- Temos que descobrir o fator causador da crise. Deve ser algo aqui no apartamento, pois ele fica bom logo que sai daqui.
- É verdade, respondeu uma Bianca exasperada e sentindo-se impotente para lidar com a situação.
- Vamos reconstituir o que aconteceu, prosseguiu o pai. – Nós entramos, estava tudo bem, ele passou pela sala, tudo ainda bem, a crise começa no corredor – levantou-se e foi andando, reconstituindo os acontecimentos - ... exatamente aqui, disse, parando na frente do quarto do bebê: aqui, na frente do quarto de Cristina.
- Que Cristina, pai, pára com isso, já disse que não vai se chamar Cristina, zangou Bianca, irritada com a provocação fora de hora.
- Tudo bem, tudo bem, calma, desculpe. Bom, voltando ao raciocínio, com certeza o fator está aqui, no quarto da nenê. Tem alguma coisa diferente aqui, minha filha?
Bianca se pôs a pensar. Enquanto isso, seu pai fechava a porta do quarto do nenê, o que produziu melhoras visíveis no estado de Ricardo, que já não estava mais grudado à parede e tinha deixado o corpo relaxar.
- Com certeza, o problema está no quarto, continuou o pai, satisfeito com seus poderes dedutivos.
- Bom, de diferente... Bianca falava e pensava, com aquele jeito característico de virar os olhos para cima, como se fizesse um grande esforço mental ... – tem a boneca! A única coisa de diferente de ontem para hoje, eu ganhei uma boneca da Carla, lá do serviço, a primeira boneca de nossa filhinha....
- Então é isso!, exclamou seu pai, - deve ter algo a ver com essa boneca. - Vamos fazer um teste. Dirigiu-se ao quarto, abriu a porta, entrou e pegou a boneca. Quando saiu, Ricardo já estava novamente colado à parede.
- Está vendo? O problema é a boneca! Aproximou-se dois passos do Ricardo. Os grunhidos pioraram e seu corpo tremia violentamente.
- Está bom, pai, pode parar, Bianca falou assustada. Porém, ainda enquanto falava, naqueles átimos de segundo que depois parecem ter durado uma eternidade, seu pai já tinha avançado mais um passo. Ricardo retesou-se e, em um gesto súbito e completamente inesperado, saltou com incrível agilidade em direção à janela aberta e atirou-se, sem que houvesse tempo ou condição para qualquer um impedir.

*

O pai de Bianca conversando (na verdade monologando, pois a mãe de Bianca era de pouco falar):
- Eu me sinto completamente inocente. Não tenho nem um pouquinho de consciência pesada, sabe? Onde já se viu, homem com medo de boneca? Como eu poderia saber?
- Além do mais, eu continuo achando que o problema não foi a boneca. Aquilo tudo foi muito estranho. No fundo, acho que Ricardo enganou a nós todos. Ele estava consumindo drogas, isso sim!
- Você lembra que logo nas primeiras saídas Bianca contou que ele tinha fumado maconha, com uns amigos. Foi isso, as drogas deixam qualquer um transtornado, ele devia estar usando coisa muito mais pesada, então deu esse piripaque.
- Eu, sou inocente. Ele é que causou seu próprio fim. Sabe, no fundo, que ninguém nos ouça, pelamordeDeus não vai comentar isso com Bianca jamais, mas, no fundo, foi até melhor! Imagina nossa netinha! Com um pai drogado!

*

O policial que registrou o boletim de ocorrência, chegando em casa, comentou com a esposa:
- Puxa, a maior coisa estranha hoje no serviço, registrei um suicídio de um cara que apanhou de uma boneca. Mas uma boneca mesmo, de verdade, não é uma mulher que tinha o apelido de boneca não...

*

A sessão sempre começava na hora.
- Oi Bianca.
- Oi.
- Como você está hoje?
- Como sempre.
- Então estamos progredindo. Pelo menos não está pior.
- Não.
- E sobre o que vamos falar hoje?
- Estava pensando. Acho que a reação dele foi uma transposição metafórica. Ele viu aquela boneca, aquela coisa sem vida, os olhos vidrados, sabe? A boneca não tem vida, mas pretende ter vida, é como uma imitação, sabe? Mas não tem vida. Então ele deve ter visto aquilo e deve ter pensado, ou melhor, seu inconsciente processou que nossa filha ia nascer morta. Então ele teve aquela reação toda, sabe?
- Então vamos falar de novo sobre o que aconteceu com o Ricardo, é isso?
- É meio estranha essa nossa relação com bonecas, você não acha? Fazemos delas um substituto para pessoas reais, nos afeiçoamos a elas porque, de um certo modo, nos relacionamos com elas, então criamos todo um universo no qual as bonecas são reais, sabe? Vivemos isso com intensidade, mas, quando estamos normais, uma parte de nós sempre sabe que aquilo não é real, entendeu, que é imaginação. Mas, se por algum motivo perdemos essa capacidade, então aquilo será real!
- Entendo.
- Também essas bonecas estão cada vez mais perfeitas, cada vez mais parecidas com crianças de verdade! Esses fabricantes ficam nos empurrando essas coisas, a gente acaba comprando, não tem como resistir. Todo mundo tem, então só a nossa filha é que não vai ter?
- Sei.
- Então, comprei. Como poderia imaginar que ele iria ter uma reação daquela? Nunca! Ele nunca comentou nada. Fico tentando me lembrar se algum dia nós tivemos contato com alguma boneca. Como eu poderia saber? Como?
- Bianca, vamos recomeçar. Vamos partir para o novo. Vamos pensar em coisas diferentes...

*

Yemaye, príncipe das américas, um demônio de terceiro grau, riu-se por dentro e foi esperar a alma de Ricardo, para conduzi-la ao sheol.

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segunda-feira, fevereiro 1, 2010 - 16:00

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Re: O incrível homem que tinha medo de bonecas

Parabéns pelo belo texto.

Um abraço,
Roberto

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