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O inferno em alto mar
O navio balançava ao sabor dos vagalhões cada vez mais violentos. Eu estava idiotamente vigiando, do cesto da gávea, o mar encrespado. Era uma tarefa inútil, a noite estava escura por demais, chovia bastante, o que tornava ainda mais difícil enxergar qualquer coisa perdida no oceano imenso. Confesso que estava meio amedrontado, tinha medo de despencar do cesto caso uma rajada mais forte de vento me pegasse de surpresa. Contudo, tarefa é tarefa, e eu precisava vigiar, e era só.
Meu nome é Scot, assim mesmo, um t apenas, bastante simples. Nasci numa ilha do Caribe, e meu pai foi enforcado, acusado de pirataria. Minha mãe morreu quando eu tinha apenas cinco anos, um ano após a morte de meu pai. Fui criado por meu tio Adam, que acabou sendo enforcado — também acusado de pirataria — quando eu contava doze anos. Fiquei só. Comecei a roubar para não passar fome, e aos quatorze anos acabei indo parar no navio do capitão Henry Stuart, um dos piratas mais cruéis que atuavam naquela época no mar do Caribe. O começo foi muito difícil. As piores tarefas ficam sempre a cargo dos novatos e, à noite, é difícil dormir sem ser atacado por um ou outro marujo bêbado louco por um pouco de divertimento. Confesso que passei por maus bocados, contudo, a vida errante pelos mares acabou conquistando meu espírito sonhador, e, sem perceber, tornei-me um pirata, digamos... eficiente.
Mas como me tornei um pirata não é importante. O que importa é porque abandonei a pirataria, e como descobri que no mundo existem coisas que não são explicáveis.
Naquela noite, como já mencionei, eu estava no cesto da gávea vigiando o mar escuro. Navegávamos num clipper, um navio bastante rápido e sólido. Contudo, enfrentar tempestades dentro de um navio desse tipo não é lá uma das coisas mais atrativas. O nosso barco possuía nove mastros, era alto, mas numa tempestade como aquela os vagalhões ultrapassavam facilmente a amurada, enchendo o convés de água. Mas o barco agüentava firme, e a tripulação era experiente, sabia manejar o velame com habilidade, e o nosso timoneiro era bastante habilidoso e forte. Enfim, estávamos bem, e venceríamos aquela tempestade como já havíamos vencido outras. Tempestades não representavam problema, éramos acostumados a beber rum no convés encharcado enquanto o vento fazia vergar os mastros. Enfrentávamos tempestades ao mesmo tempo em que zombávamos de Deus. Éramos piratas: homens sem fé e piedade. Vivíamos para saquear e beber. Essa era a nossa vida.
Mas naquela noite tudo mudou para sempre — pelo menos para aqueles que sobreviveram.
Lá embaixo o contramestre cuspia ordens:
— Vamos seus vermes de uma figa! Seus bastardos miseráveis! Força nesses braços! Não vamos perder uma só vela para essa tormenta do inferno!
Os marujos berravam toda sorte de xingamentos, ao mesmo tempo em que riam de suas próprias criações obscenas. Eu queria descer do cesto, sentia o mastro vergando, era difícil ficar lá em cima, suportando a ventania e a chuva forte. O contramestre gritou lá de baixo:
— Scot, seu maldito grumete imprestável! Olho à frente da proa, não quero que passe algum miserável despercebido, precisamos alimentar nossos corpos imprestáveis com o lucro daqueles miseráveis espanhóis filhos de puta!
Navegávamos sob falsa bandeira espanhola, só hasteávamos a temida bandeira negra quando era impossível aos navios mercantes a fuga.
— Estou de olho senhor! — gritei para o irritante contramestre.
O tempo parecia passar devagar, e meus dedos já estavam meio entorpecidos por causa do frio, e o vento e a tempestade pareciam piorar a cada minuto.
Correram minutos e horas, a tormenta surrando o barco, o frio aumentando, e eu entorpecido lá no cesto.
Estava mergulhado em meus pensamentos quando um raio medonho cruzou o céu escuro, proporcionando uma rápida — mas excelente — visão do mar agitado. Graças ao clarão vi outra coisa, algo grande, e estava logo à nossa frente, há mais ou menos uma milha. Esperei um novo raio para confirmar minha visão. Não demorou muito e outro cortou o céu, revelando claramente os contornos de um enorme navio logo adiante.
— Navio à frente! Gritei a plenos pulmões.
Ouvi o contramestre:
— O que seu infeliz imprestável?! Você está vendo um navio?! Ouvi direito?!
— Sim senhor — gritei.
— A que distância?
— Uma milha senhor... logo à frente.
— Seus malditos ratos, mecham-se, vamos em frente, mostrem a esses vagalhões de merda que não podem conosco, adiante! — berrou o contramestre para os marujos.
Os marujos começaram a cantar, corriam de um lado para outro, lutando para não caírem no mar revolto. Eu, lá de cima, tentava divisar a bandeira do navio — intuito impossível, naquele momento, a escuridão era completa.
— Ô do cesto... ô do cesto! — gritou o timoneiro. — Vai olhando, quando chegar perto você avisa, não quero arrebentar o casco no outro.
Meu sangue subiu para a cabeça, odiava quando me davam ordens impossíveis. Não obstante, tentei firmar a vista para tentar divisar o contorno do navio naquela escuridão absurda.
O clipper avançava rápido, balançava loucamente, jogando os homens contra a amurada. Lá de cima eu ouvia os xingamentos e as risadas insanas, pensava comigo que éramos realmente piores que o demônio.
O contramestre certamente havia pedido alguém para chamar o capitão, pois ele apareceu de repente no convés já gritando ordens com sua voz trovejante.
— Vamos seus cretinos! Querem ouro, querem mulheres?!
— Queremos senhor! — gritaram os marujos em coro.
— Então imprestáveis, mecham-se, vamos abordar esse infeliz! Ô paspalho do cesto — ele gritou me chamando. —, que navio é?
— Não sei senhor, está muito escuro — respondi já sabendo que seria xingado.
— Então trate de descobrir seu verme, como vamos abordar um navio sem saber seu porte e poderio?!
— Estou olhando senhor, estou esperando um raio...
Nesse momento um raio monstruoso rasgou o céu, clareando várias milhas adiante.
— Parece ser um galeão senhor!
— Um galeão?! — rosnou o capitão — Homens, vocês sabem muito bem o que isso significa... Ouro, prata... riquezas para o rei de Espanha! — soltou uma gargalhada sinistra. — Vamos pilhar o tesouro de Potosi! — brincou.
— Urra!! — gritaram os marujos como se estivessem possuídos por loucos demônios arruaceiros.
O clipper seguiu vencendo as ondas ferozes, lutando para não ir a pique. Estávamos muito próximos do galeão; avisei ao contramestre, ele então pediu silêncio. Em poucos minutos já era possível, do convés, divisar os contornos do outro navio. O timoneiro manobrou de forma magistral, colocando nosso costado bem junto do outro barco. Não houve nenhuma reação por parte de sua tripulação; na verdade, não havia ninguém no convés, não havia claridade, não havia sons. Não obstante, isso não preocupava o capitão e os marujos, todos estavam sedentos pelos tesouros que poderiam estar nos porões enormes. Ninguém estava pensando no destino da tripulação daquele barco, éramos piratas, homens acostumados com morte e perigos, era nossa vida, era nosso jeito de ser.
O capitão deu a ordem, os homens lançaram os ganchos munidos de cordas, e em poucos minutos estavam no convés do enorme galeão. Eu desci do cesto com dificuldade, o vento estava muito forte, e me jogava de um lado para o outro. Já no convés, corri, e, como os outros, fui para bordo do outro navio. Logo que pisei no convés do galeão ouvi o capitão gritar:
— Vasculhem tudo seus piratas do inferno! Cadê a tripulação desse navio? Encontrem o capitão, o contramestre, ou qualquer marujo imbecil que possa nos dizer o que estão transportando para a majestade!
Os homens corriam de um lado para o outro no escuro, já que haviam levado apenas algumas poucas lanternas, e estas seriam usadas para vasculhar os porões. Alguém de repente gritou:
— Ô capitão... ô capitão!
— O que foi marujo?!
— O navio não está fundeado!
— O que?! — gritou o capitão com sua voz de trovão.
— Não lançaram âncora senhor!
— Seu rato imundo! — vociferou o capitão Henry Stuart com ódio. — O navio está parado, não está se movendo... está parado como um maldito rochedo!
— Venha ver o senhor mesmo — falou timidamente o marujo.
O capitão seguiu a voz do marujo... e eu o segui. Chegamos, e, graças a luz da lanterna que o marujo segurava, vimos claramente que a âncora não havia sido lançada ao mar.
— Com os diabos do inferno! — disse o capitão exasperado. — O que segura esse navio?
Um grito terrível ecoou acima do barulho do vento. No mesmo instante um vulto enorme passou com uma rapidez incrível a dois centímetros do meu rosto. O vulto deixou para trás uma carniça terrível, que fez meu estômago revirar. A lanterna foi arrancada da mão do marujo e arremessada por cima da amurada, indo cair no mar revolto. O marujo começou a gritar:
— Meu braço! Alguém quebrou meu braço! O desgraçado quebrou meu braço...
— Cale-se marujo! — berrou o capitão — Contramestre... contramestre! — chamou. — Traga aqui uma lanterna!
— Capitão — respondeu o contramestre. —, não temos mais lanternas, esses marujos imprestáveis deixaram as lanternas caírem no mar, não são homens para superar a força desse ventinho de merda!
— Encontre uma lanterna seu paspalho de uma figa, eu quero uma lanterna aqui agora mesmo! — rosnou Henry Stuart.
— Tudo bem capitão, vou...
O navio estremeceu!
Um clarão transformou, por um instante, a noite em dia. Ouvimos em seguida, a barlavento, uma confusão de gritos e rangidos e, segundos depois, um estrondo seguido de novo clarão, dessa vez, bem mais impressionante que o primeiro. Confesso que minhas pernas fraquejaram.
— Desgraça! — gritou o capitão, ao mesmo tempo em que corria para a amurada do lado oposto para ver seu navio ardendo em chamas.
Antes mesmo de chegar a amurada percebi que havia um rombo enorme no costado do clipper, e as chamas já haviam invadido o convés. Subitamente uma série de estrondos varou a noite, e nosso navio foi atingido por — sei lá — dezenas de projéteis fumegantes. As balas atingiram os barris de pólvora que havíamos pilhado de outro galeão há alguns meses...
A explosão foi colossal!
O clipper dividiu-se em dois, e estilhaços foram lançados em nossa direção, varando os corpos de três dos marujos que assistiam conosco o terrível espetáculo.
Ouvíamos atônitos os gritos dos homens que haviam ficado no nosso navio, eles agora eram bolas de fogo pulando para o mar. Jogavam-se de qualquer jeito, buscando apagar nas águas revoltas o fogo que consumia seus corpos. Olhei para o capitão, seu rosto era uma máscara de ódio, e a claridade das chamas dava a ele um aspecto sinistro.
— Demônio! — berrrou Henry Stuart com toda a força de sua garganta. Virou-se em nossa direção, seu rosto estava desfigurado pelo ódio e frustração. — Marujos! Vamos trucidar os desgraçados que fizeram isso, quero eu mesmo arrancar os olhos de cada um desses filhos do inferno! Eles estão operando os canhões, os malditos, vamos pegá-los!
Disparamos como loucos pelo convés, os rostos sujos iluminados pelo clarão de nosso navio em chamas. Em segundos estávamos no porão. Agora, a escuridão era completa.
Não encontraríamos nada naquela escuridão, éramos alvos fáceis, eles nos pegariam brincando, já que conheciam bem o navio, e estavam posicionados nos esperando. Voltamos para o convés, vários pedaços fumegantes do clipper estavam espalhados pelo piso amadeirado, pegamos alguns e retornamos ao porão.
A claridade proporcionada pelos pedaços de madeira fumegantes pouco ajudaram, mas pelo menos agora era possível encontrar as entradas com mais facilidade. Seguimos para o local onde estavam instalados os canhões. Subitamente um cheiro terrível empesteou o ar, começamos a tossir, ao mesmo tempo em que, cada um, tentava livrar-se do incômodo cobrindo o nariz com a camisa suja.
Seguíamos cautelosamente pelos corredores escuros do navio, esperando a qualquer momento o ataque.
— Apareçam seus malditos desgraçados! — o capitão gritou.
Ouvimos então o som de algo sendo arrastado e, juro: passados não mais que dois segundos, um clarão iluminou os corredores, seguido de um estrondo. Éramos bons marinheiros, sabíamos muito bem o que aquilo significava. Jogamo-nos no chão um segundo antes da enorme bola de fogo passar zunindo sobre nossas cabeças, destroçando tudo o que estava no seu caminho. Os miseráveis estavam atirando em nós, mas estavam atirando com os canhões, iriam acabar com o próprio navio! Estávamos lidando com marinheiros escandalosamente insanos e suicidas!
— Filhos da puta! — gritou o capitão, levantando-se possesso.
Todos se levantaram rapidamente. Com a confusão havíamos perdido os pedaços de madeira que estávamos utilizando para iluminar o ambiente. Estava novamente muito escuro. A fumaça havia tomado conta do porão, meus olhos lacrimejavam, meu nariz e garganta ardiam horrivelmente. Estávamos todos possessos, e queríamos destroçar os miseráveis covardes que não apareciam.
— Apareçam mise... — o capitão ficou mundo de repente.
Subitamente surgiu logo a nossa frente uma luminosidade esverdeada, flutuava. Foi crescendo rapidamente, assumindo uma forma esférica. O cheiro ficou absurdamente intenso, era impossível respirar.
— Com mil demônios! — exclamou o contramestre — Isso não é, seguramente, fogo-de-santelmo... Parece ser a luz do inferno capitão! Minha mãe dizia que era algo assim!
— Não seja estúpido — disse o capitão sem muita segurança. Confesso que isso me surpreendeu. O capitão sempre dizia tudo com muita convicção, mas agora...
A bola fosforescente crescia sem parar, quando seu corpo tocou o piso de madeira... queimou-o instantaneamente. Era um brilho bonito, e estávamos hipnotizados. Subitamente, algo em especial naquela esfera luminosa me chamou a atenção. Quando compreendi o que estava surgindo de dentro daquilo meu sangue de pirata gelou pela primeira vez na vida.
Naquela época eu já havia presenciado vários tipos de atrocidades, já havia matado mais de uma dezena de pessoas e, confesso: sentia prazer em ver o sangue escorrer dos corpos perfurados pelo metal de minha espada. Contudo, meu espírito — nem sei se tenho um — não estava preparado para aquela visão.
Meu pai estava saindo daquela bola verde! A corda ainda estava em seu pescoço! Sua língua inchada pendia frouxa de sua boca arroxeada. Algo havia arrancado seus olhos, talvez um abutre, como comumente acontece com os corpos dos pobres enforcados que ficam expostos ao ar livre — prática comum em alguns lugares. As autoridades imaginam que isso intimidará aqueles que pensam em infringir as estúpidas leis provinciais. São uns tolos, nós somos a prova da falha desse tipo de punição.
Sua pele podre havia estourado aqui e ali, revelando uma carne esverdeada. Ele tentava falar alguma coisa, mas não conseguia, pois sua língua estava muito inchada e fora da boca, e a corda apertava fortemente seu pescoço, tornando impossível a articulação de qualquer palavra. Ele conseguiu sair da bola fosforescente, veio trôpego em minha direção. Confesso que tentei sair correndo dali, mas estava estranhamente preso ao chão do navio. Ele veio se arrastando, seus pés fazendo um barulho desagradável no piso de madeira. Chegou bem perto do meu ouvido, o cheiro que ele exalava era insuportável. Senti seu hálito frio e morto, seus cabelos compridos tocaram meu rosto, queimando minha barba e pele.
Meu pai emitiu apenas um grunhido, mas eu entendi. Não sei como, mas entendi perfeitamente:
— Todos vão morrer agora.
Olhei seu rosto, ele estava se contorcendo e inchando, soltando um liquido amarelado e caindo pedaços de carne. Meu pai estava se decompondo ali, na minha frente, e seu cheiro era terrível demais para ser descrito. Tentei desviar o olhar daquilo, olhei para a direita e me deparei com o capitão, seu rosto estava lívido de pavor. Ele resmungava alguma coisa, um fio de baba escorrendo preguiçosamente de sua boca. Os outros marujos estavam igualmente terrificados, todos olhando abestalhados para algo especialmente produzido para a subjetividade de cada um. Cada um via seu próprio fantasma, e isso era o mais terrível.
Subitamente ouvi um grito horripiltante! Foi como sair de um transe, olhei para a bola fosforescente, ela havia pegado um dos marujos, estava derretendo a carne do pobre infeliz, ele estava se desmanchando como queijo no fogo. Seus olhos estouraram como pipoca, e um líquido esbranquiçado começou a escorrer por sua face. O capitão se levantou e começou a caminhar em direção a bola que, agora, estava mudando a cor, assumindo, gradualmente, um tom escarlate.
O calor estava insuportável, e rajadas quentes de um vento fétido começaram subitamente. A bola estava crescendo num ritmo vertiginoso. Meu pai estava se arrastando no chão, e não passava de uma pasta fedida coberta por cabelos e vermes. Alguns marujos tentavam reagir, vencer seus próprios fantasmas; outros... enlouqueceram — gritavam e batiam a cabeça no chão até estourarem os miolos. O restante corria em direção a luz mortal e se jogavam dentro dela, sendo derretidos logo em seguida.
Comecei a procurar pela saída, precisava sair daquela loucura! Para meu azar, a pasta fétida que antes se parecia com meu pai morto grudou no meu tornozelo, tentando me segurar naquele pandemônio. Chutei, cai e esperneei. Consegui me desprender daquela monstruosidade e corri em direção ao convés. Fui seguido por mais quatro marujos que gritavam como uns possuídos. Logo atrás vinha o fantasma que cabia a cada um, e a bola — agora completamente vermelha — havia crescido a tal ponto que estava despontando no convés.
Chegamos ao convés e corremos desorientados de um lado para o outro, tal era nosso estado de terror. A imensa bola vermelha estava consumindo o navio rapidamente, e seu brilho terrível clareava o oceano revolto, dando aos vagalhões agressivos um tom avermelhado ameaçador. Estávamos encurralados e, para piorar a situação, as aberrações que nos perseguiam estavam agora no convés, e se arrastavam em nossa direção. Tentei pensar, mas era difícil, o que estava acontecendo era insano demais. Perscrutei desesperadamente o convés em busca de algo que, pelo menos, oferecesse uma esperança de fuga.... Meus olhos se depararam com um escaler.
Corri em direção ao escaler, os outros marinheiros perceberam que eu havia encontrado alguma coisa, seguiram-me. A bola, agora incandescente, já havia tomado quase todo o navio, e ele já estava dando sinais de que iria a pique muito em breve. Cheguei até onde estava a pequena embarcação, ela estava presa à amurada por uma corda grossa, tentei afrouxar o nó, contudo, não tinha forças: o desespero havia levado embora a força de minhas potentes mãos.
A massa pútrida que antes assumira a forma de meu pai estava a poucos passos de mim, um dos marinheiros começou a gritar:
— Saí! Saí... Ajudem-me seus miseráveis...
Seus gritos cessaram quando um enorme caranguejo surgiu do nada e, com pinças enormes, arrancou a cabeça do corpo do pobre infeliz. O sangue jorrou do corpo decapitado, lembrei-me então de uma fonte que havia visto na cidade do Porto. Sacudi a cabeça, tentando não me ocupar com coisas estúpidas. Voltei aos esforços de desamarrar a corda que prendia o escaler.
Os outros marinheiros se juntaram a mim, unimos nossas forças. Ouvíamos o crepitar da madeira do navio, e o chiado que a imensa bola vermelha produzia. O ar estava quente, e o cheiro de podridão estava tão forte que tentávamos prender a respiração com medo de respirar aquele ar pestilento. O navio estava afundando, e nosso desespero era tamanho que começamos — tenho vergonha de contar isso, mas, tendo em vista as circunstâncias, creio que é justificado — a chorar. Jean — um francês depravado que gostava de torturar os tripulantes dos navios que pilhávamos — lembrou-se que sempre carregava uma faca amarrada à canela direita. Apanhou a faca e, desesperadamente, começou a cortar a corda. O chiado da bola incandescente era tão alto que nossos tímpanos ameaçavam estourar.
Jean cortava a corda sem olhar o que estava fazendo, seus olhos estavam grudados numa velha que vinha trôpega em nossa direção. Ele sabia que aquilo não era a sua avó, a velha havia morrido há mais de vinte anos. Ela estava sorrindo, mostrando uma gengiva podre, vermes enormes passeavam freneticamente por seu rosto medonho. Na mão direita a aparição trazia uma tenaz ensangüentada e, pelo desespero de Jean, eu imaginei o que poderia estar passando por sua mente — o podre diabo certamente havia assassinado a avó com aquilo, e ela estava de volta para vingar-se do neto assassino.
Subitamente o infeliz soltou um grito terrível, e olhou para a mão que segurava a corda quase completamente cortada. Havia cortado um dos dedos, o sangue jorrava generosamente do ferimento. Mas o medo era maior que a dor, Jean recomeçou o que estava fazendo e, segundos depois, a corda arrebentou, soltando o escaler, que caiu no mar encrespado.
Os fantasmas estavam a poucos centímetros, desesperados, saltamos para o mar! Contudo, antes do meu corpo ultrapassar completamente a amurada, a aberração que encarnara meu pai agarrou meus pés e me puxou para dentro do que restava de navio. Berrei como um maldito possuído por uma legião de demônios insanos! Chutei com todas as forças aquela coisa terrível, meus pés estavam mergulhados naquela gosma fétida. Segurei a amurada com as duas mãos e, não sei de onde, arranjei forças para me desprender daquela coisa hedionda, caindo desajeitadamente no mar. Contudo, no desespero de me livrar daquilo, acabei quebrando a perna esquerda. Tentei nadar, mas senti que não conseguiria: pensei que estava tudo acabado, iria afundar e morrer.
Os marujos já estavam no escaler e, num lampejo de humanidade, resgataram-me. Já na embarcação, pus-me a remar freneticamente com as duas mãos, queria me afastar daquilo o mais rápido que pudesse. Os outros três piratas estavam munidos de remos, remavam tão frenéticos que era quase impossível perceber-lhes os braços!
A bola medonha consumiu num instante o que restava do grande galeão. Cresceu até atingir as nuvens, os fantasmas que nos perseguiam haviam crescido também, e estavam de pé sobre aquele corpo incandescente. Subitamente o rosto do capitão Henry Stuart apareceu bem no meio daquela esfera dos infernos... sorria. Ouvimos sua voz, mas sabíamos que não era ele:
— Marujos imprestáveis, não abandonem o barco, voltem seu putos filhos da mãe...
Tentamos não ouvir aquilo, remamos com mais frenesi ainda, nem respirávamos, tal era o pavor que havia tomado conta de nossas pobres almas condenadas! Subitamente, a bola explodiu!
A força da explosão fez nosso escaler voar, agarramo-nos à embarcação com as forças que nos restavam. A explosão produziu uma onda colossal, e seríamos engolidos por ela. Quando o escaler novamente tocou a água... veio a onda. Tudo ficou negro...
Acordei, abri os olhos e os fechei no mesmo instante, a claridade estava muito forte. Fui abrindo-os devagar, tentando acostumá-los ao novo ambiente. Sentei-me. Percebi que estava numa praia, haviam pequenos barcos ancorados há poucos metros de distância. Ouvi vozes, vários homens caminhavam em minha direção. Falavam uma língua que eu não entendia. Chegaram até mim, pegaram-me nos braços e rumaram para o casario próximo. Falavam muito rápido, ao mesmo tempo em que faziam gestos exagerados; mesmo assim, eu nada compreendia. Perguntei, em inglês, onde estava. Percebi um lampejo de compreensão no semblante de um deles.
Levaram-me até um senhor, ele sabia falar inglês. Fiquei sabendo que estava no Brasil, no Rio de Janeiro. Estava há mais de três mil quilômetros do ponto onde havíamos encontrado o galeão.
Nunca fiquei sabendo como fui parar no Rio, e também nada soube dos outros piratas que escaparam comigo. Hoje vivo em Londres. Com o que consegui com a pirataria investi em alguns negócios, e agora vivo num pequeno chalé numa rua tranqüila. Nunca me casei, e preciso do auxílio de uma cadeira de rodas para me locomover. Minhas pernas foram amputadas ainda no Brasil, a gosma horrenda naquela noite fez alguma coisa com elas, apodreceram dias após meu despertar na praia.
Nunca tentei compreender o que aconteceu naquela noite no mar e, para meu próprio bem, desejo nunca compreender.
Anderson Cristiano da Costa
www.temasanderson.blogspot.com
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