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O Segundo Milagre

I

Caldas da Rainha, 22 De Maio de 2008.

Estou sentado na esplanada de um café-bar na renascida Praça 5 de Outubro passando os olhos pela Gazeta das Caldas como de resto é o meu hábito desde que a rotina se sedentarizou nesse singular acto de desfolhar jornais e ler livros após o meu dia de trabalho estar feito e ganho.
Antes de continuar incluirei imediatamente uma breve descrição da personagem para que possam ou não identificar-se minimamente com ela. Essa personagem sou eu próprio, claro está.
Pergunto-me a mim mesmo se isso é necessário ou não e como não obtenho nenhuma resposta concreta, prossigo.
Julgo sobremaneira relevante centrar o leitor no estereótipo da pessoa que sou eu, Abílio Francisco Caldas. Não consigo bem explicar o porquê dessa importância, mas como uma espécie de força superior orientando a minha mente do mais recôndito e profundo infinito, obedeço sem questionar. Um outro que existe em mim encolhe os ombros numa imagem de subserviência tão natural como um animal doméstico que dá sinais de gratificação antecipados ao acto de receber um mimo em troca de uma ordem bem comprida ou um acto heróico em nossa defesa e recolhe-se de novo ao seu casulo subconsciente para lá deixar as suas preocupações descansar no leito turbulento da sua inconsciência.
- É o melhor que podes fazer. Remato eu que sou afinal o dono do animal que em mim habita e livre para raciocinar, confundo um pouco essa história: - quem é afinal o narrador? Será que é a outra voz que escreve o que é narrado?
- Passo a narração.
Voltando ao que é de facto importante, fiz há pouco trinta e um anos de idade. Sou filho único, órfão de Pai e de Mãe, (seja qual forma a palavra que consiga exprimir verdadeiramente esse facto – órfão de Mãe). Meus pais eram ambos filhos únicos também. Os meus avós faleceram uns anos mais tarde, para mim, há muito pouco tempo.
A minha querida avó foi-se recentemente para o vale sagrado e meu avô ainda antes de eu ter nascido. Além daqueles tios-avós que toda a gente sabe que tem mas que raramente os encontra na vida, nem mesmo no funeral de um ente querido e mesmo que os visse provavelmente não os conheceria, a minha família sou eu próprio. Essa é para mim como a difícil luta-procura-improvável-encontro de uma refeição decente para um cão perdido porque os gatos chegaram antes ao chão e porque ele não consegue saltar para dentro do caixote do lixo; aquele fruto desejado está ali mesmo ao alcance no roçar da impressão digital mas intangível a alguém como eu, destinado a ficar sem ninguém que me possa passar a mão pela cabeça num momento de carência juvenil ou que simplesmente me passe a mão pela cabeça num sentimento de propriedade divina e bestial. Pura e simplesmente não há quase nada genético em mim a que possa chamar meu ou quem possa identificar- me como seu. Estou aqui sozinho. O tempo percorre o seu caminho inexoravelmente sob a forma de um céu azul de primavera cortado aqui e ali por riscos negros das andorinhas cortando e varrendo o céu à cata de insectos. A luz do sol é tão intensa que fere só de olhar em frente como uma chuva ácida incandescente vindo porosa instalar-se violentamente na nossa vista, como um aborrecido e amargo mosquito.
Está um belo dia de Maio e cheira como a imagem de um odor visível que vem por cima de uma janela num episódio de desenhos animados da Walt Disney em que o cão matulão está a dormir nas suas sete quintas na sua barraca fresquinha e instintivamente alertado pelo odor da comida salta na direcção da janela levando a sua barraca às costas.
Sente-se um turbilhão de novas fragrâncias capazes de animar até o mais orfão dos humanos. O que não é o meu caso. Apesar de o destino ou de todas as pequenas coisas que já vivemos, eu sou o que o tempo me vai permitindo ser e às vezes as pequenas coisas são mesmo as mais lindas.
Não deixarei crescer em mim a semente do derrotismo, como quem diz, não criarei desculpas esfarrapadas para isto e para aquilo subjugando-me à tentação fácil do meu infortúnio:
- De não ter apoio social e não sei o quê. Simplesmente aceitei o que me foi dado a beber no copo cheio permanentemente transbordando que é o estar vivo.
Minha mãe era uma senhora simples (pelo que me contou a minha avózinha) que não tendo a vida lhe permitido estudar para que um dia uma qualquer porta promissora se abrisse numa espécie de truque de magia e lhe oferecesse um emprego mais bem pago, significando com isto que constituísse ser mais digno ou sei lá o quê, trabalhava como mulher-a-dias nas casas das senhoras que ostentavam os seus sobranceiros olhares de bem, no mundo das falsas riquezas de carácter e das presunções retóricas que é o que mais se pode encontrar por aqui. Parecem pavões inchando o peito e dançando com os seus excêntricos trajes para agradar a corte. Um dia todas as penas lhes cairão uma por uma tornando-se no fim, nada menos nada mais que um par de parvos de frangos para churrasco. Melhor dizendo, parvalhões.
- Ostentacionola é o melhor termo para caracterizar esta sociedade onde eu habito. O que há mais se vê por aí são ostentacionalistas! Como é bom podermos usar uma máscara.
- Gritam eles enquanto esperam o esvair as proporções q.b. para o seu sarrabulho de segregação.
- Sim eu sei. Acabei de dizer isso mesmo agora. Posso continuar?
<< … Interferência; problemas de narração…>>
Uns, fingindo-se ricos, ostentam os degradados e antiquíssimos brasões nascidos da mais pura ralé que a esta terra veio parar no seu presente triste através das suas deterioradas boas maneiras. Não tem na realidade onde cair mortos sempre à espera que alguém morra para lhes saquearem como abutres os despojos que sustentarão por mais um tempo a sua triste ilusão de serem ainda notados.
Os outros, coitados, podres de ricos, até que o crédito acabe, exploradores do boom da construção civil, entre outras oportunidades deste capitalismo desmesurado sem roques e com muitos reis, sentam-se aos grupos nos mais finos restaurantes estalando cascas de lagosta, usando emprestadas as mãos ásperas e gretadas dos mal pagos empregados, não conhecendo outro termo para “ Pré do”, esfregam as mãos de contentes porque está outro em fase final de construção e tem por isso que ir à “ Cambra” falar com o Costa para que ele defira esta e aquela licença e ainda uma nova para a Urbanização do “Sol-posto”.
Não sei é claro se isto é verdade mas não acredito que a máfia tenho dado tréguas à vida e por isso é mais credível por vezes acreditar em certos boatos porque por o serem adquiriram já o estatuto de dúvida razoável e assim sendo e até provas em contrário tanto é verdade a mentira como falsa a verdade.
A tudo isto um outro qualquer novo-rico diria, jocosamente, já com a bela da roseta na face, um cacho em vez de um grande grão na asa, depois não sei quantos copos do melhor néctar da casa e um par de whiskies no bucho:
– Tens que lhe dar aquele lotezito melhor do loteamento.
Como se tratasse de ter que ir a Fátima a pé pagar uma promessa, caso contrário o aladino não concretizará o seu desejo.
E por momentos todos se calariam como tivessem a falar de algum assunto proibido pela censura para depois logo de seguida se soltar uma gargalhada geral, em forma de cumplicidade de acto criminoso. Todo o cuidado é pouco no seu silêncio abafado e gorduroso não vá andar por ali algum espião da oposição a cata da intriga necessária á sua ascensão. Também em abono da verdade parece que o grande trunfo da oposição não é tanto encontrar soluções para os males do seu povo e é antes dizer mal de quem ocupa presentemente o poleiro. É triste pensar que tudo isto não passa de um enorme galinheiro mas a realidade é que o parlamento me parece isso mesmo, um galinheiro cheio de ávidas galinhas procurando grãos de milho e trigo controladas apenas pelo galo dominante que se senta num poleiro mais elevado ao centro do bando alvoraçado num propósito ordenador.
Mas isso não interessa nada além de enquadrar determinado tipo de perfil social das classes para quem a minha imaginária mãe trabalhara até à sua morte. Pobre alma. Efeito colateral de uma sociedade desequilibrada onde o capital reina acima de tudo e todos.
Limpava o desleixo e soberba dos outros, varria, limpava o pó, esfregava as paredes encardidas dos lavadinhos, passava a ferro a sua roupa num movimento ágil de quem com o tempo dominava a tarefa que as senhoras rejeitavam logo à nascença. Mudava-lhes as roupas de cama e fazias de seguida como nunca as conseguiriam fazer as sombrias senhoras e tudo o mais que lhe fosse ordenado numa subserviência de escrava-faça-o-que-eu-lhe-mando-porque-o-que-não-falta-por-aí-é-gente-com-vontade-de- trabalhar.
Nada como elas que apenas faziam o papel final de engenheiro que chega montado no seu maquinão com ares de gente muito importante para fazer vistoria a uma obra, apontando este e aquele desrespeito a esta ou aquela especialidade aprovado pelo indivíduo X que muito provavelmente nunca pisou na prática de estar onde tudo acontece fora do plano teórico.
Era esse o seu desígnio, o dos pobres e humildes que sempre houve e felizmente sempre haverá; fazer sem resmungar o que lhes era ordenado sem mostrar o mínimo sinal de desagrado quanto mais ousar resmungar. Acho que é aqui na simplicidade humana dos humildes que reside o futuro da humanidade.
A soberba e a prepotência têm os seus dias marcados. Tão certo como me chamar Abílio.
Teria sido uma mãe boa, meiga e extremosa. Era honesta, simples e trabalhadora. Herdei dos seus genes a sua simpatia, honestidade e simplicidade e também os seus grandes olhos verdes emoldurados com simétricas e grandes pestanas negras fazendo lembrar perfeitos e enormes leques como aqueles que os escravos oscilavam de forma ritmada e constante aos seus amos bárbaros.
Deixemos a triste a tristeza de lado e continuemos porque há coisas que me dão a volta ao estômago e esta história gira em mim como um tornado de escala 20.
Voltando ao que é verdadeiramente importante, a minha santa mãe morreria no dia do meu nascimento.
Não morava muito longe da cidade e há 30 anos atrás os nascimentos já se faziam no Hospital de Caldas contudo, o táxi que seu pai chamara para levar ambos ao Hospital chegou tarde demais nesse dia.
Naquele tempo nem toda a gente se podia dar ao luxo de ter transporte próprio- com a excepção dos outros- o comum mortal arranjava-se de motorizada, bicicleta, carroças puxadas a burro ou a junta de bois, ou o mais normal, a penantes. Além disto os táxis.
Eu vinha atravessado e apenas cheguei cá fora com a ajuda da minha avó que e puxou para fora da cavernosa, aconchegante e húmida quentura do meu milagroso habitat. Saíram primeiro as minhas costas e depois as minhas pernas, por fim a cabeça e os braços de uma vez só. Rebentaria de tal forma com as entranhas da minha mãe que quando ela chegou ao Hospital não era mais que um bife de soja. Uma textura perdendo pouco a pouco o seu calor e cor humana.
Todo o afecto que me segredava mentalmente ou através do toque carinhoso da sua trabalhadora mão no seu ventre; aquelas palavras que só uma mãe, só uma mulher grávida pode ter com o que cresce misteriosa e maravilhosamente dentro de si, essas palavras tornar-se-iam gritos desesperados de quem está sendo cortada viva à machadada com cuidado de não cortar veias ou artérias principais para que morte chegue lenta e dolorosamente como quem quer deixar o moribundo esvair-se em sangue pouco a pouco, tal brinquedo insuflável perdendo a essência que lhe dá forma e o seu bem mais precioso, o ar, para a minha mãe o seu sangue e a sua vida.
Assim morria minha mãe no calar de um grito horrível, um eco perdido num infinito e longínquo vale que seria a inconsciência de seu único e amado filho, Abílio. Eu.
Olhar-nos-íamos uma única vez antes de ela desmaiar para a morte e esse momento indescritível que é o olhar de um ser racional para a sua cria acabada de vir ao mundo bastaria forçosamente para uma vida inteira. Tinha que bastar e a mim também. Algo ou alguém precisava desesperadamente dela num outro qualquer lugar transcendente.
A momentânea antecipação da morte cultivada num silêncio profundo e angustiante que se instalara no quarto de meus pais daria lugar momentos depois a um ansiado e triste berreiro infantil que quem quer o conforto quente e húmido do seu anti-gravítico lar, ou melhor ainda a quentura terna de um abraço e carinho de mãe. Eu quero a minha mãe! Devo ter gritado isto vezes sem conta mas ninguém me percebeu. Com o passar das horas também me esqueceria daquilo que mais queria.
Em vez disso, todo a atmosfera esfriaria subitamente como se um vento do norte absorvesse todo a quentura de um do sul sem criar chuva, apenas frio. Nada a fazer, o que está feito está feito e não há volta a dar-lhe e se com muitas coisas podemos de uma qualquer forma tentar remediar a trapalhada mas com a morte não podemos brincar. Nada e vazio é tudo o que nos deixa. É preciso então levantar a cabeça e olhar bem além daquilo que vemos pois só a pureza, a honestidade, inocência, a dignidade e a esperança na alma podem trazer ao futuro um novo ânimo e felicidade à raça humana.

Meu pai, homem honrado e trabalhador, trolha de profissão, traumatizado dessa guerra inconsequente e demonstrativa do mal desejado que existe neste mundo e exemplo do mau governo que existe há muito neste país em particular, desse precipitado e mal planeado plano colonial que até podia respeitosamente ter dado origem a uma menos má imagem governativa podendo terem-se tornado regiões territoriais como são a Madeira e os Açores todos as outras colónias além mundo mas, autonomamente – A bestialidade é algo irreversível. – Um joguete nas mãos da ditadura perdido num mar de dúvidas que por mais que tentasse não conseguia encontrar na beleza radiante de seu rebento lindo e resmungão, eu, chorão e permanentemente ávido de atenção e cuidados próprios da sua indefesa condição. A sua esperança e a força de viver mais um dia confrontava-se com a imagem da sua amada esposa morrendo a seus braços sem que este sequer o percebesse e assim, ainda antes de eu completar dez meses de idade, enforcar-se-ia, pondo fim ao seu sofrimento e na sua fé, indo de encontro quem sabe á sua companheira apanhando a tempo um transcendente táxi que talvez desta vez não se atrasasse.
Coitado. Meu querido e meigo pai. Não conseguia disfarçar o seu olhar perdido e quem sabe levado pelo um hábito cultural de deixar cair por terra a esperança, também ele se abandonou a si próprio e se foi. O hábito faz o monge tal como a dúvida a sua fé.
- Estou farto desta merda toda! Para que é que eu vim ao mundo? Porque é que existe mundo, porque é que eu existo? Dá-me força para acabar com isto tudo, já! – E gritando do fundo da sua alma, se é que se pode inventar um fundamento para uma vontade suicida, e depois de namorar prolongadamente os seus cúmplices, a corda, a trave de cimento, um pequeno banco de madeira e principalmente o seu perdido raciocínio e desespero, fez tombar debaixo de si o apoio que o sustinha preso tenuemente à vida. O pescoço não partiu. Nos dois minutos seguintes sentiria a vida ser-lhe sugada num baloiçar triste de boneco surpresa suspenso no ar em festa de aniversário de criança à espera da estocada final. Aqui, contudo, a sua surpresa não seria uma chuva de guloseimas ou uma precipitação exagerada de água, antes, uma desejada e silenciosa morte que o abraçou num baloiçar cada vez menos visível, quente e forte até ao último suspiro anunciando os espasmos finais o fim de tudo.
A tudo isto assistiria eu impávido e com toda a serenidade que uma criança de dez meses pode ter. Para mim não foi naquele momento mais que uma brincadeira engraçada de se ver.
Meu pai morria diante de mim e eu sorria de felicidade. O que pode haver na vida de mais irónico, perturbador e irracional nisto? Provavelmente nada.
Ainda não andava, começara há pouco a experimentar os primeiros equilíbrios em cima das minhas perninhas como os passaritos que experimentam os primeiros voos certeiros ao chão ficando indefesos à mercê dos predadores e por isso a maior parte do tempo passava-o a gatinhar, ora para a frente, ora para trás ou então e mais natural preso na minha cadeira de balouço, bem preso pelo cinto que me afagava suavemente desde as virilhas roçando o meu peito no limite entre a protecção e o esmagamento torácico, passando por fim por cima dos seus ombros numa imagem de louco preso em colete-de-forças sem o ser ou como estando preparado para enfrentar a adrenalina inerente a um passeio de montanha russa.
À minha frente, a pouco mais de cinco metros a cena macabra desenrolava-se, o corpo de meu pai era já um peso morto perdendo pouco a pouco o movimento natural lateral para se estacar ao sabor da gravidade do núcleo terrestre e voltar a movimentar-se de novo ao sabor de uma brisa sinistra e aterradoramente calada lembrando uma peça de caça oscilando presa numa anilha num cinto de caçador até parar instantes antes de um novo tiro certeiro agouro de futura companheira natureza morta.
Como uma marioneta ali estava aquela figura indiferentemente paternal, ao entardecer, pendurada numa viga apoiada entre dois pilares de cimento entre os vários outros alinhados paralelamente formando um frondoso, refrescante e verde tecto debaixo do qual era impossível resistir a languidez de um Verão cada vez mais próximo. Era cedo ainda para haver cachos de uvas notados e o único cacho pendurado nas parreiras era infelizmente o meu pai. Apenas uma mancha na estranha e incompreendida mensagem pintada.
Permaneceria ali até o sono tomar conta de mim e levar-me para o mundo dos sonhos, ou talvez até para o mundo dos pesadelos. Não há forma de o saber.
O dia e os seus raios de sol reconfortantes foram gradualmente sendo substituídos por uma densa treva nocturna e momentos antes de adormecer e mais tempo ainda antes da minha avó chegar a casa, talvez já sonhando vi um enorme, estranho e indescritível pássaro ou bicho como nunca antes tinha visto. Ali estava ele espreitando toda aquela assombrosa cena por cima do portão ao fundo do quintal logo ali ao pé do corpo de meu pai. Provavelmente estava já a sonhar. Mesmo que não estivesse a quem importaria isso? A mim nada. Ao outro ainda menos. Ao estranho bicho para além do portão talvez menos ainda. Só uma mãe poderia dar o verdadeiro sentido àquele drama. Só uma mãe como a minha, mas viva.
Quando a minha avó chegou entrado pela frente da sua casa que ficava no sentido oposto e mais distante do portão do quintal foi dar comigo, o seu querido netinho dormindo sereno como um anjo à porta da cozinha escancarada para um páteo de horrores.
- Não!
- Quantos nãos e quantos ahs foram por ela gritados naquele instante duradouro feito de fracção de segundos. Enquanto eu desatava a chorar com tão funesta alvorada, minha avó corria desalmada na direcção de seu único filho. Como um bicho protegendo a sua mais que moribunda cria numa imagem de incompreensão e irracionalidade sustendo o corpo de seu filho de encontro ao céu na esperança de o trazer de novo à vida. Não havia nada a fazer.Talvez o soubesse e quem sabe quisesse apenas entrega-lo directamente nas mãos de um Senhor cada vez mais esquecido e incompreendido. Pouco a pouco foi perdendo as forças e as suas já cansadas pernas começaram a tremelicar não de frio mas de exaustão e não tardaria muito até cair por terra também ela aparentando estar mais morta que viva. Desmaiou. Voltava de seguida a si impelida por uma qualquer força superior a todos os deuses imagináveis com a força sublime de ser mãe. Levantava-o de novo aliviando o garrote natural da corda e de novo desmaiava por terra. Eu chorava agora desalmadamente, não que percebe patavina o que se estava a passar mas, talvez porque aquela imagem não era do meu agrado infantil. Talvez tivesse fome ou tivesse feito alguma necessidade. Como não tinha outra forma de me expressar, simplesmente berrava.
A cena desenrolar-se-ia até o manto denso da noite cobrir aquele palco de horrores e no decorrer do espectáculo tal fora a energia que minha avó usara na sua personagem alguns vizinhos mais próximos acabariam por chegar até lá e o horror ganha súbitos clímaxes que acabariam surdos num triste funeral anunciado.
Eu continuei a chorar por muito tempo. Tinha fome, sede e sentia-me sujo mas isso não era nada comparado com tudo o que se estava a passar.
Anos mais tarde teria pesadelos num cenário parecido com aquele onde todo o funesto drama da morte de meu pai se desenrolara mas nunca até hoje conseguira interpretar verdadeiramente o significado deles. Hoje sei que não foram pesadelos, antes imagem que recalquei toda uma vida. Imagens que não queria ver porque me magoariam e contudo actualmente quando penso nisso não sinto nada. Não consigo simplesmente emocionar-me com o facto de não ter pai ou mãe porque na realidade nunca cheguei a tê-los. Tão simples quanto isso. Se não inventassem a primeira bicicleta, o primeiro carro, comboio, avião e tudo e mais alguma coisa o mais certo era não sentirmos a sua falta. Como se pode precisar de uma coisa que não se conhece? Como sentir saudades de alguém que é apenas um relato esbatido na tela indiferente do tempo?
Até aos 18 anos mais, mais ano menos ano, menos dias mais dia, porque a inexorabilidade do tempo é isso mesmo, algo de tão superiormente assustador que nos transforma em partículas insignificantes de amostras de gente presas ao mundo como suspensas numa corda bamba de circo infinitamente alta e sem qualquer tipo de protecção por baixo; como dizia até mais ao menos a esse ponto todo uma passado não passou de um pretérito imperfeito e ainda por cima distorcido pela boa alma da minha avó que preferiu esconder-me a verdade durante muito tempo talvez também porque a torturasse demais essa surda e angustiante memória de seu filho balançando morto ao sabor da espessura leve de um vento frio cheirando a morte. Assim até esta altura meus pais foram os meus heróis imaginários. Se bem que os meus verdadeiros heróis estavam nos livros de banda desenhada e apenas o enorme esforço de minha avó ia semeando em mim a recordação indiferente do passado que não choro porque o não senti.
Certo dia a minha mãe que era a minha avó decidiu contar-me toda a verdade. Eu estava pronto para aceitar a realidade sombria do meu passado. Sempre o estive e fosse qual fosse a revelação sentiria sempre o mesmo e expressaria sempre a mesma frieza no meu olhar. Estávamos na cozinha da nossa casa e ela estava sentada na velha cadeira de madeira encostada á parede de frente para mim estando eu sentado noutra cadeira no lado oposto junto á mesa da cozinha. Pouco mais de três passos separavam o nosso olhar. Como esperasse que da rua chegasse algum misterioso sinal que lhe ordenasse que o momento havia chegado desviou o seu olhar para a porta aberta da cozinha e fixou-o num qualquer ponto imaginário que até podia muito bem ser a coelheira velha que resistia muda ao seu olhar penetrante. A minha avó era assim, tinham uns olhos negros e pequeninos que se cravavam ternamente no ponto de observação como o vampiro sugando o sangue à sua vítima. Depois virou o rosto para mim e sem que dissesse nada percebi antecipadamente que me tinha algo difícil para dizer. Por isso facilitei-lhe a vida e disse-lhe:
- O que é se passa velhota? Ela esboçou um leve sorriso e começou:
- A tua mãe foi uma grande mulher, filho. Muito trabalhadora. Era muito asseada. Nunca me tratou mal. A minha avó falava e a expressão do seu rosto mudava de aspecto como um belo dia de sol dá lugar a um sombrio e melancólico dia de chuva. Eu sabia-o. Talvez sempre o soubesse. Ela tinha algo para me dizer que a torturava e afectava visivelmente o seu discernimento pois, sendo uma simples e sem grandes estudos sempre demonstrara uma nata e rara objectividade para exprimir os seus sentimentos de forma quase eloquente. Por isso alimentando a minha curiosidade e querendo ao mesmo tempo livra-la daquele tormento anuiu com a cabeça em sinal de concordância ao que disse e humedecido o meu ser pela imagem materna da minha avó disse-lhe:
- Pois foi. Se tu o dizes é porque foi verdade, pensei. Ela prosseguiu:
- Coitadinha da tua mãe. Tu vinhas atravessado e com o cordão à volta do pescoço. Estavas negro -roxo e a sufocar e eu percebi logo que alguma coisa não estava bem. O seu semblante carregava a imagem daquela cena á flor da pele e aflição que saltava de todos os poros de seu corpo era mesma da do dia em que eu vi ao mundo. Continuou:
- Já tinha ajudado muita mulher a parir e nunca nenhuma me morrera nas mãos. Havia tanto sangue. Ela fez tanta força para tu saíres e tu não saias. Não podia fazer nada e ela pediu-me…Nesse momento interrompi estremecido.
- Não podias fazer o quê, e o que é que a minha mãe te pediu?
A minha mãe avó pausou um momento antes de continuar como estivesse a corrigir um texto e a procurara o local certo para colocar a vírgula e depois continuou:
- Tu não podias ficar ali naquela posição mais tempo senão morrias sufocado e foi então que tive de pegar na faca de cozinha que o teu pai tão religiosamente mantinha tão afiada como um bisturi e nesse momento fatídico que não mais esquecerei cortei a tua mãe em baixo para que houvesse espaço para que tu passasses e assim fizeste logo de seguida caindo como um potro para cima das minhas mãos e a tua mãe, minha querida filha, já não sentiu nada mas o sangue jorrava agora dela com uma força de um alimento a anos de chuva intensa. Aqui neste preciso instante deteve a triste e sangrenta descrição de levou as duas palmas da mãos á sua face tapando-a em sinal de arrependimento para perante o meu silencio voltando a coloca-las sobre o seu colo cruzando os seus dedos como que orando a um santo ou santa milagrosos que pudessem inverter tudo o acontecera e como isso não aconteceu continuou:
- Coitadinha. Era tão boa mulher. Porquê? Porquê meu Deus? Como se preparava para se lavar em lágrimas de arrependimento levantei-me e acto contínuo ajoelhei-me a sua frente abraçando-a com todo o conforto que uma pessoa tão querida como a nossa mãe-avó deve merecer tentando acalma-la disse-lhe:
- Deixe lá isso avó o que passou, passou e não vale a pena estar assim. A avó fez o que tinha de ser feito e foi isso. Aconcheguei-a como tantas vezes ela me fazia a mim e pouco a pouco diminui a pressão para de novo larga-la e voltar a sentar-me na cadeira onde estava para que pudesse continuar o que tanto a martirizava e ela percebeu isso:
- Eu sei filho. Eu não pude fazer nada. Teve tempo ainda de te ter por breves momentos ao seu colo e esboçar um leve sorriso de alegria antes de se ir para o outro mundo. Eu não tive culpa filho. Não pude fazer nada. Calma e honestamente respondi-lhe que compreendia e quer nunca a consideraria responsável fosse pelo que fosse. Senti que acalmara através da regularização da sua respiração contudo uma sombra funesta se abatia agora sobre si. Uma sombra carregada de dor e de um estranho sentimento que não pude identificar através da sua expressão. Algo de muito doloroso e angustiante a começara a possuir como uma qualquer força superior que dominava o seu pensamento e sua capacidade de racionar. O que seria? Que coisa tão diabólica se apossara das suas faculdades ao ponto de a impedir de exprimir o que tanto precisa de explodir? Não tardaria muito até o saber pois segundos depois encheu o peito de ar e concentrando em si uma energia invisível começou a falar:
- O teu pai filho. E ainda esta frase não estava completa e já se abandonava num sentido pranto de lágrimas lembrando uma torrencial chuva tropical e ainda mesmo antes que continuasse eu já sabia o que iria ouvir e tentei por isso aliviar-lhe o peso que carregava:
- O meu pai não morreu em vão ao serviço obrigatório por uma causa megalómana num qualquer pais distante e acto contínuo a minha avó levantou a esforço o seu cansado semblante e disse-me:
- Tu lembraste de alguma coisa filho? Anui afirmativamente com a cabeça e de novo a minha avó voltado no tempo àquele momento fatídico que nunca conseguira apagar da sua memória; o seu único filho pendurado numa corda balançando na consistência macabra de uma brisa mortífera.
- Ele não aguentou coitadinho. Meu querido filho. Foi o diabo que… Neste momento deteve o seu pensamento e pensou para consigo algo que nunca saberia. A dor da lembrança e da saudade fora-lhe fatal e num abrir e fechar de olhos desmaiava tombando a cabeça sobre o corpo como um boneco sem corda. Acordaria mais tarde ao som calmo da minha voz, avó, avó, avó…
Nunca lhe perguntaria o que é que o diabo teve a ver com tudo o que se passara e se bem que eu nunca acreditara verdadeiramente nessas coisas inexplicáveis e miraculosas da fé dos homens também nunca as neguei, trocei nem tão pouco as desacreditei. A minha fé estava em mim. Estava no meu querer e a dos outros estava no querer deles. Sem discussão.
No que diz respeito aos meus pais vamos ficar por aqui. Conversei depois com a minha avó quando mais tarde se acalmou porque o que o passado era isso mesmo, passado.
Antes que me esqueça que estou sentado na esplanada da praça vou ainda dizer mais qualquer coisa sobre mim e não é que isso seja importante mas se o não fosse minimamente também não o referiria por isso termino esta simples apresentação da minha pessoa dizendo que eu sou e não interessa o que penso de mim pois a avaliação será sempre a daqueles que me vêem como eu sou para eles e para esses sou o coitadinho cuja família morreu toda e que ficando só com a sua avó abandonou a escola depois de frequentar o primeiro ciclo e se dedicou a ajuda-la no seu trabalho de vendedora na praça da fruta. O que aprendi na escola foi-me mais do que útil porque me permitiu saber ler e escrever e quando o que leio me é estranho procuro no dicionário o significado ou pergunto a alguém e quando quero exprimir o que sinto e ma faltam as palavras leio o exemplo dos outros tornando a minha expressão num simples acto inter-textual. O segredo está em reinventar o que já foi dito de tantas formas perfeitas. É tão simples assim.
Nunca senti que a minha avó me pedisse para abandonar a escola pois sempre quis o melhor para mim mas na verdade senti que algo me tornava também responsável pelo sacrifício dela. Sem mágoa ou qualquer outro tipo de sentimento pobre deixei que a minha vontade seguisse o seu destino e esse dizia-me que o certo era alinhar todas as madrugadas na sua labuta e ajudar quem sempre estivera do meu lado a reconfortar a minha alma.
Diga-se de passagem que apesar de não ter dívidas também não era com a miserável reforma que o Estado dera ao meu falecido avô por toda uma vida de trabalho na agricultura que alguma vez poderia ambicionar algo mais que aquilo que conseguira. Também não importava. Sou filho de gente simples e não ostento o contrário. A minha avó sempre me disse:
- Deixa lá filho, somos pobres mas somos gente honesta. E com isto não quero dizer que só se é honesto sendo pobre e nem o contrário, que seja desonesto o rico mas, leiam nas entrelinhas e coloquem o chapéu que melhor lhes ficar…eu uso o meu.
Desde que tendo entendimento próprio que percebi que era por ali que o meu futuro iria passar; cultivar flores a legumes para vender na praça. Sempre o fiz com o prazer de quem lê um bom livro e no final do dia que é o mesmo que dizer que no final da obra cumpre-se a mente satisfeita pelo prazer do que fez ou leu.
Herdei da minha família um pedaço de terra tocando os limites da cidade de Caldas com vista sobre as copas das árvores da mata Rainha dona Leonor lembrando um enorme e compacto campo de brócolos em diferentes estágios de floração e um pouco mais para baixo os telhados vermelho-tijolo das habitações da cidade parecendo uma gigantesca construção de lego observados à distância. Ao fundo e até onde o olhar perde a vista, O Castelo de Óbidos e os Belgas à esquerda, a Serra do Bouro ao centro e mais á direita as dunas de Salir, o Facho de São Martinho do Porto e a Serra dos Mangues. A serrania mescla-se em variadas pinceladas de pinhais, eucaliptais, casas e mato tocando o céu azul e quase palpável pode sentir-se a fragrância estonteante do mar, da Lagoa de Óbidos na Foz do Arelho e mais a Norte de novo vindo desse mar português a mesma brisa beijando a Baía. É linda a minha terra.
Vivo numa casinha antiga de duas águas como aquelas que desenhamos na primária, pequenina com duas janelas e uma porta ao centro. Perfeito. Não sou infeliz sem poder dizer que seja o contrário mas sinto que caminho para lá. Como um sexto sentido gritando dentro da minha alma tentando com palavras inaudíveis dizer que qualquer está para acontecer. O que será?

Voltando ao local onde estou agora, na Praça 5 de Outubro estou a ler a Gazeta das Caldas para ver como andam as modas nestas semanas e para que o quadro fique perfeito levanto a mão e aceno ao empregado do 120 como quem pede à professora se pode sair para ir à casa de banho para lhe pedir um cafezinho. Sim a vida é tão simples quanto isto. Uma esplanada numa praça á sombra num belo dia de Maio lendo um jornal, um bom livro, qualquer coisa de útil. A Venda na praça estava feita por hoje. O meu relógio diz-me sem falar que são três da tarde. As primeiras andorinhas chegam de África e os pombos comem grãos de terra para ajudara moela a digerir o almoço como quem bebe um digestivo ou toma um Eno. Ah que bem que se está aqui. Fecho os olhos e encho o peito de ar antes de começar a desfolhar a gazeta lendo primeiros os títulos das notícias para depois aprofundar as mais interessantes.
- Olá boa tarde! É o rapaz do café que acaba de chegar para fazer o meu pedido. Rapaz simpático aí para os seus vinte anos.
- Olá como estás? Devolvo amavelmente e ele encolhendo os ombros e piscando os olhos em sinal de o que é que quer que eu lhe responda sorri de boca fechada.
- Está tudo bem. Vai tar aí um dia que é uma maravilha. Então é um cafezinho?
Aceno afirmativamente com a cabeça e peço também uma água do castelo bem fresquinha. De seguida abro o jornal e começo a ler não antes de ver a não mais de uns vinte metros de mim um pombo azul bem escuro fitando-me. Parecia que me olhava como querendo dizer-me alguma coisa. Achei a ideia engraçada e mentalmente perguntei-lhe se ele queria alguma coisa e como não obtive resposta sorri por dentro e continuei a leitura agora já saboreando o meu café e fazendo festas de quando em vez á frescura derretendo sobre o vidro da minha garrafa de água. Eram 15:15h.

II

Algures num despovoado na região Oeste de Portugal, 20 de Maio de 1484.

Num povoado feito de pouco mais de meia-dúzia de casas de pedra no meio do nada algures entre o Mosteiro da Batalha e o Castelo de Óbidos, Leonor deslocava-se na sua carruagem real a caminho de Óbidos onde estava instalada a pedido de seu esposo D. João II devido a suspeitas de epidemia de peste em Lisboa. Leonor vinha de ido comprar umas bugigangas à feira da batalha com toda a sua comitiva real – mais duas carruagens de apoio, seis pajens e vinte soldados destemidos tipo cruzados dispostos a morrer na luta até à morte pela sua Senhora Vinha também sua ama de confiança, Júlia. De repente, algo se apoderou da sua mente como que ordenando de um plano superior que tinha que parar naquele local imediatamente. Foi uma espécie de tremor que percorreu todo o seu corpo e mente falando com o mais inconsciente do seu entendimento dizendo-lhe;
- Pára imediatamente!
E ela assim o fez. Num impulso levantou-se do seu banco acolchoado forrado a peles de animais abriu a cortina e acto contínuo gritou lá para fora com uma voz que demonstrava toda a sua realeza e que não permitia qualquer discordância;
- Parem imediatamente!
Como uma viatura que embate de encontro a uma parede infinitamente densa de betão toda a comitiva susteve o passo e a respiração. Apenas os cavalos relinchavam em sinal de impaciência. A noite aproximava-se rapidamente por detrás da Serra dos candeeiros e não era muito boa ideia parar por aquelas bandas florestais à mercê de possíveis salteadores ou outras quaisquer ameaças transcendentes.
Júlia que dormitava há já algum tempo saltara como uma mola do seu aconchego logo após a ordem da sua senhora:
- Minha Senhora o que se passa? Tendes que ir cagar ou mijar?
Leonor esboçou um ligeiro sorriso e acenou negativamente antes de responder.
- Não. Não é isso. Confiava em Júlia como em mais ninguém e por isso disse-lhe.
- Tive uma sensação estranha Júlia. Algo me diz que tenho que parar aqui mas não sei bem porquê...
- Outra vez aquelas suas santas fezes apoquentando a sua alma?
- Alguma coisa, ou alguém precisam de mim.
Júlia correu ligeiramente a cortina da carruagem olhou lá para fora e pouco mais viu que verde-claro sobre verde-escuro e escuro sobre castanho-escuro que é o mesmo que dizer, arvores e mato por todo o lado, antes de responder:
- Que raio de importante pode haver aqui minha senhora? Ainda antes de Leonor responder ouviu-se o aproximar calmo quase troteado de um cavalo. Era o capitão da guarda. Um experiente homem de guerra que trava já muitas batalhas pelo seu país e agora já na fase descendente da sua vida fora destacado para a guarda pessoal da Rainha de Portugal. O silêncio abateu-se dentro da carruagem e foi logo de seguida interrompido pela voz grave e segura do guarda?
- Minha senhora. Peço desculpa interrompera mas se deseja beber água da fonte dos vales é melhor que se despache pois a noite vem aí e talvez fosse melhor chegarmos a Alcobaça ainda antes de o anoitecer. Calou-se. Dentro da carruagem Leonor sussurrou a Júlia de forma quase inaudível mais que segredando:
- Fonte? Existe aqui alguma fonte? Júlia encolheu os ombros em sinal de total desconhecimento e mantiveram-se caladas por mais um instante como pensassem em conjunto se seria essa a razão do pressentimento anterior de Leonor. Mas, tanto mistério, tanto secretismo, tanto medo de alguma transcendente revelação e no final tudo se resumia a uma fonte. Estavam ainda tentando perceber o que realmente se estava a passar quando do exterior uma tosse propositada do guarda anunciava uma rápida tomada de decisão. Leonor estava decidida:
- Sim é isso, desejo beber água dessa tão afamada fonte. Na rua do outro lado da cortina o guarda mostrou uma cara de – que ideia esta de uma fonte tão afamada – uma fonte como outra qualquer no meio do nada – mas que lhe interessavam os caprichos da realeza, se era esse o desejo de sua majestade, era essa a sua ordem. Perdido na sua divagação a porta da carruagem abriu-se a de lá saiu Leonor não antes de murmurar e Júlia para que esta permanecesse na carruagem pois sentia que apenas ela devia ir até à fonte. Júlia não concordou mas, claro é que a confiança que tinha com a sua senhora tinha um limite e esse limite estava definido em pormenores tão simples como um simples olhar de ficas aí e mais nada para o compreender melhor que ninguém.
Inevitavelmente tenho que fugir ao rumo principal desta história para falar de Leonor.
Leonor era uma mulher que irradiava nobreza e quando queria fazer cumprir a sua vontade bastava um seu olhar penetrante e ao mesmo tempo cativante para que as portas do céu se abrissem para a sua passagem. Um verdadeiro exemplo de Rainha que viria a ficar conhecida para a história como a Rainha Velha e que gozaria por todos os anos seguintes à morte, no ano de 1495, de seu esposo D. João II – o Príncipe Perfeito para os amigos e o Tirano para os inimigos, como refere José Hermano Saraiva na sua verdadeira história de Portugal.
Tentarei ser breve neste aparte pois, primeiro, não é assim tão importante para a mensagem principal disto que escrevo e porque como diria Suskind é muito fácil perder o fio à meada e não quero que se perca o sentido principal da coisa. Assim e o mais breve possível; Leonor era uma bela mulher atingindo o auge de toda a maturidade, sobriedade, e humildade, adjectivos os quais só uma verdadeira iluminada realeza com 26 anos podia ascender.
-No aspecto físico e se estivéssemos na actualidade era o que piro- piando se poderia chamar de “ alta louraça”, diz o outro que há em mim, tal diz como em Rafael de Alegre, ou nos Heterónimos de Pessoa e em tantos outros, porque afinal somos nós todos feitos de muitos outros, ou não? – Chega. That’s enough! Superiorizo a sua vontade e por isso te ordeno:
- Cala-te! Deixa-te de observações parvas e sem sentido! Deixa-me concentrar-me no que mais importa; a mensagem.
Continuando e devendo-lhe o devido respeito tinha todos os traços de uma beleza prefeita e clássica. Poria com um simples olhar todos os Amadis, D. Quixotes, Heitores, Romeus, Tristãos e tantos outros desesperados à beira de uma intangível vontade de amar que só os verdadeiros enamorados logram sentir. A sua beleza ridicularizaria qualquer homem ao ponto de se humilhar para ter um único olhar, para lhe ouvir o mais leve e imperceptível suspiro de esperança como fosse o sinal de partida para qualquer demanda impossível cujo efeito se suste em transcendente e inexplicável causa. A beleza cantada por tantos poetas desde os tempos imemoriais; o amor.
Longos cabelos ondulados brilhando louros tocando levemente seus nobres, equilibrados e esculpidos ombros que só uma mulher pode ostentar emoldurando um real rosto pálido adornado por ofuscantes e proeminentes olhos verdes-azulados brilhando por baixo de simétricas sobrancelhas louras. O seu nariz alongando na perfeição e na medida certa conduzindo até uma boca pequena mas não muito decorada com lábios vermelho-sangue lembrando as mais tocantes pinceladas na melhor pintura alguma vez mostrada ao mundo. O seu esguio, terno e macio pescoço mostravam uma singela juventude onde o pesar dos anos não operara como se uma ruga não ousasse ainda sequer pensar em fixar-se em tão tenra pele. Que visão.
Neste dia Leonor vinha vestida de forma simples e adequada a este tipo de viagem de lazer e benfeitoria que eram de resto as suas principais razões de viver sem excluir é claro a alegria de ver crescer seu querido filho D. Afonso.
Trazia o cabelo apanhado com uma rede decorada com jóias. Coisa simples. Servia mais o propósito de a proteger contra as poeiras que se incrustavam como lapas na rocha do que propriamente como elemento decorativo. Pode dizer-se também que estava na moda ou talvez até a moda já fosse outra mas, parece que a Portugal tudo tem chegado com alguns inexplicáveis atrasos até mesmo na modernidade por isso imagine-se no tempo em que as noticias andavam a cavalo mas, isso agora não interessa nada. Voltando ao mais importante. Acompanhando a fashion renascida das côrtes francesas e espanholas vestia, como uma luva que não apertava demasiado o látex às formas dos dedos da mão e tão só apenas ajustando-se logo abaixo de seus proeminentes seios, um simples e discreto vestido vermelho tijolo pálido mesclado com motivos floridos laranja acastanhados como aqueles horríveis cortinados e capas de sofás ingleses com a diferença de que a ela tudo lhe ficava bem. O vestido tocaria suavemente o chão escondendo a leveza de seus passos, calçados em grosseiros sapatos de couro mais apropriados à vida no campo que os mais leves de pele, criando a sensação de levitação. Sobre o seu sóbrio vestido de província vestia uma comum jaqueta castanha-esverdeada aberta com padrões florais rubros e botões madrepérola ou da cor das montanhas da lua cheia, ou dos vales, ou da mistura de ambos. Estão a vê-la cheia? Estão a visualizá-la brilhando nesse azul-escuro quase negro que é o universo infinito? Era essa a cor.
Finalizando. D.ª Leonor foi a nossa verdadeira Madre Teresa de Calcutá.
Uma nobre de sangue, sensibilidade, dignidade e modéstia de um camponês simples mas educado.
Pessoa distante dos exagerados, nauseabundos meandros coquetes de uma nobreza cada vez mais vazia de conceitos e ideais e apenas falsamente ostentando um feudo inexistente no nosso pais, ela preferia viver e ver in loco como vivia o seu tão pobre e infeliz povo num pais que se intitulava tão rico e tão poderoso. Se tantas promessas e feitos além-mar prediziam um futuro menos infeliz para o povo português baseado na usurpação nas riquezas desconhecidas de povos bárbaros – ou talvez apenas simples, sendo nós os verdadeiros delinquentes da nossa própria inconsciência – a eterna utopia de um futuro melhor… promessas, promessas, promessas…
Que mudou afinal?
- Parece que não é apenas o tempo que é inexorável (sem principio e sem fim – como infinito sem ter inicio - algo que existe sem a nossa interferência felizmente) mas, também a desnecessária, propositada, ou, não – pode ser apenas uma incapacidade natural posta à prova através dum povo incapaz de discernir os mais aptos num simples sufrágio universal a que também chamam eleições – também os governos os serão. Como num habitat natural, algum bicho é naturalmente mais forte e mesmo que alguém desejasse que as coisas fossem feita de outra maneira, da nada adiantaria porque, manda mais quem mais força tem ou quem influência é capaz de seduzir.
Leonor era naturalmente sensível ao seu meio (também ela era provinciana de Viseu; bela terra lá para o interior e onde muito de se troca o z pelo j) e como mulher justa e nobre que era agonizava-se com a realidade circundante.
- Tanta riqueza trouxeste até ti João e o teu povo onde fica no meio disto tudo? Questionava-se vezes sem conta.
- Tantos tesouros e conquistas além-mar sobre pretextos de civilizar os bárbaros na pratica cristã por todo esse desconhecido mundo bárbaro. Tanta fortuna enchendo as panças e cofres dos Srs. Donatários e a mendicidade paredes-meias, ali ao virar de qualquer esquina.
Leonor tentava numa lute de Golias contra David mostrar a seu esposo D. João II as necessidades de seu povo e não era que João não se interessasse por essas questões, apenas e infelizmente para o seu povo concentrava todo o seu esforço na Demanda dos Descobrimentos.
É justo dizer que também investia na agricultura, no desenvolvimento de infra-estruturas básicas mandando construir hospitais, escolas, bibliotecas e etc., etc. Mas, em abono da verdade isso não era suficiente pois, isso não estava ao alcance do cidadão comum, do servo, do escravo. Faltava-lhe o mais importante. Descer do seu pedestal real, abrir a sua cortina e ver o negro e pantanoso quadro que era o seu reino foras das paredes dos seus ricos e invejáveis castelos, palácios e jardins edénicos.
Essa árdua e penosa tarefa estava destinada a Leonor.
Através da abstracção mental de seus olhos desfilava, como um cortejo de horrores, a verdadeira pobreza, não essa que todos se queixam e que afinal sempre vai dando para viver sem passar fome, mais dívida menos dívida, mas a outra, aquele tépido fedor de uma infinidade de anos-luz sem banhos e sem cuidados spacensses numa imagem de mendigo corcunda curvado sob caixotes de lixo escolhendo as mais putrificadas iguarias.
Graças a Leonor e toda a sua dedicação criar-se-iam as primeiras misericórdias em Portugal. O primeiro esforço de auxilio para os carentes e necessitados criados pelos meandros pérfidos de uma sociedade que se continuam a afirmar como igualitária e cada vez mais equilibrada. Para esses infelizes acasos de os também cinicamente chamados frutos dos irremediáveis danos colaterais da permanente e necessária evolução das gentes cujas portas contudo permanecem irremediavelmente fechadas e surdas para as suas suplicantes cacetadas de sofrimento, surgiria como a verdadeira luz ao fundo do túnel ou como o inesquecível odor da terra que os fez nascer a aura infinitamente luminosa, esperançosa e boa da Rainha D.ª Leonor.
Voltando ao momento em que abandonei a diegese por tão justa e merecedora sublevação da figura atrás mencionada; distinta e elegantemente Leonor abria a portinhola da sua carruagem para dar ares da sua real graça perante a sua aborrecida criadagem que mais se impacientava com tão aparente desejo de sua majestade.
Indiferente a todo esse inferior sentimento de insatisfação pousava sobriamente os seus pés sob a poeira da estrada principal debaixo do cuidado tido pelo seu fiel protector e experiente Capitão da guarda, a Rainha.
Cá fora a luz do dia sumia-se lentamente e não tardaria mais que um para de horas até todo o meio circundante ser engolido pela mais profunda treva de uma noite sem luar e distante a anos-luz de precárias iluminações ao serviço de um povo que se quer vesgo de entendimentos. Até mesmo quarenta experientes guardas reais equipados com o último grito da tecnologia bélica (espadas robustas cegando com seu brilho luminoso, adagas e arcos a flecha usados para caçar qualquer coisita pelo caminho e mais nada, pois que se actualmente os portugueses até tem reconhecimento internacional no tiro com arco nunca de constou que Viriato andasse para armado em rouxinol dos bosques) – apanágio comum dos portugueses – sempre o último grito ouvido há talvez dez anos num outro país – como dizia, até mesmo esses valentes cruzados prefeririam passar a noite no Terreiro de Alcobaça que forçados acampar no meio de nenhures por obra, graça e capricho de sua alteza, sujeitos que estavam a ataques de ladrões, saltimbancos e outras bestas férteis nesse imaginário medieval.
Só o burburinho da conversa dos cavalos e do vento com as arvores quebravam o silêncio e a imagem em câmara lenta de Leonor pisando o chão quase sem o tocar e fitando quase instintivamente o carreiro que indicava o percurso até à fonte.
Nesse mesmo instante em que decidida e insegura avançava para a fonte o Capitão da guarda, o Vicente, levantou um braço e com sinais apenas compreendidos entre camaradas de armas, do tipo, abre a mão, dobra o polegar e depois mexe os dedos restantes como se fossem marionetas de dedo até que quatro guardas mais ligeiros desceram das suas montadas e imperceptivelmente, quase como se mexessem e avançassem sem sair do mesmo sítio foram colocar-se em posições estratégicas de modo a garantir o bem-estar da sua Rainha.
Logo ali à distância do olhar era possível ver o inicio do carreiro descendo uma ligeira encosta com pouco mais de 50 centímetros escavado na terra negra batida pelas incontáveis passagens de outras gentes serpenteando por entre os pinheiros e mato raso sobressaindo a mancha homogénea dos fetos até desaparecer num pequeno talude decorado a silvas e azedas a pouco mais de 80 metros. Mais uns vinte metros à esquerda e ali se encontravam a fonte envolta num intrincado silvado e canas grossas e viçosas desfrutando do mais puro líquido que a natureza tem para oferecer. Cheirava a terra e a água frescas e clorofila pura. A água brotava filtrada de dentro da terra e da ovalidade da nascente bailando e fazendo pequenos remoinhos com os grãos de areia até se lançar feliz e calmamente sobre a verdura exuberante e fértil feita de mil pinceladas de cores pintando as várzeas circundantes por cultivar na direcção do seu irremediável destino, o mar.
Por cima da nascente o mato por desbravar adensava-se iniciado por hortenses e azedas, silvas, canas e fetos até se tornar num indiferenciado de cores verdes acastanhadas assimiladas pouco a pouco pelas trevas trazidas pelo oriente àquele local.
Depois de informar o Vicente que pretendia deslocar-se sozinha á fonte e como este antecipasse que de nada serviria constatar o desejo da sua dona de novo levantou a mão e num sinal de dois dedos tipo peace-and-love apontados na direcção do carreiro dois guardas desapareceram por breves instantes para de novo surgirem olhando para o seu superior numa expressão de código: ok-está-tudo-bem-a-área-está-segura, Leonor avançou para apaziguar o seu tão inexplicável e súbito desejo, ou fosse lá o que fosse.
Assim como levitando, numa elegância que uma verdadeira Rainha possui, Leonor avançou serena e suavemente vereda abaixo até desaparecer logo ali no pescoço da serpente.
Um novo gesto de Vicente fez avançar até ao limite da camuflagem possível dada pelo mato um pouco antes da ligeira curva que escondia a fonte dois guardas. Estavam a um instante da sua Senhora se fosse necessário agir ou dar o alerta codificado em caso de necessidade. Contudo, nada na densidade do ar indiciava quaisquer preocupações – No ar não mas, e na terra?

III

Poucas coisas me dão tanto prazer na vida como ver e acariciar o crescimento e o desenvolvimento de uma flor até ao momento exacto do inevitável corte que a leva ao mais merecedor cliente.
Faço o que gosto. Não cultivo flores como se fossem pintos num aviário numa engorda desenfreada na rota incontornável de uma embalagem para exposição numa arca de frescos num qualquer supermercado ou grelhando apelativo nas continuas incandescentes brasas do João dos Frangos gritando – come-me! Come-me! Uma simples e eficaz linha de produção; cresce; depena; pendura, separa cabeça para um lado e corpo para o outro; leva banhinho, embala-se fresquinho; come-se quentinho. Ou pior ainda, um monstruoso e crescente fois-grás que é o mesmo que dizer, um pato ou um peru presos numa posição monstruosa e inquietante com um funil enfiado pela boca abaixo num empurrar ininterrupto e desmesurado de alimento fazendo crescer fígados até tamanhos inimagináveis e onde um corpo de ave deixa de ter corpo e penas e ser apenas fígado, fígado, fígado!
Meu Deus! Tenho que exclamar. Como é possível tanto animalismo, tanta atrocidade? Não posso dizer que não aprecie um franguinho assado passando pela boca terminando com um não menos delicioso e final chupar de dedos mas, não brinco com isso como fosse um gato que desmancha por prazer as articulações de um rato para depois o comer e mais tarde regurgitá-lo. Não. Como por necessidade e por influência cultural.
Aqui estou eu falando ou pensando como os meus botões como de resto é meu traço comum, não porque não tenha amigos, mas porque me dá prazer o silêncio das horas vagas.
Estou a ler a Gazeta das caldas, a desfolha-la desinteressadamente, primeiro olhando para as notícias gordas que se destinam a fixar a atenção naquilo que alguém julgou ser mais importante por qualquer estranha razão. E será que o é mesmo? Penso que inevitavelmente aquilo que cativa uns não interessa aos outros, mas compreendo que alguém tenha que tomar decisões com base num qualquer critério que desconheço e que deve estar concerteza ligado a números, a vendas ou qualquer outra coisa marxista.
Na primeira páginas e seguindo com naturalidade as suas grandes obras pelas Caldas pode ver-se a foto do Sr. Presidente da Câmara inaugurando o novo Centro Cultural e Congressos (não sou professor mas parece-me que qualquer coisa não soa sintáctica e semanticamente bem neste termo) das Caldas da Rainha na noite do quinze de Maio assistido por milhares de transeuntes e com honras de visita do Sr. Presidente da Républica no dia seguinte. È sempre todos os anos em véspera de feriado da cidade é preciso inaugurar qualquer coisa que engane os estômagos do povinho. Atiram-se rebuçados ao ar e todos acorrem como pombos ao pão duro. Outras tantas coisas mais interessantes e outras de me fazer abanar a cabeça num movimento de indignação de como é possível fazer disto uma noticia e fecho a Gazeta, ponho a mão no Público e desabafo: Tou farto disto!
Vou mas é ler o meu livrinho. Sou contudo interrompido pela paisagem envolvente e por um fenómeno natural nas Caldas da Rainha e provavelmente em todas as zonas onde existam muitos choupos. Dançando e remoinhando pelo ar e pelo chão as mais belas e naturais coreografias eram desenhadas pelos pedacinhos leves de algodão das sementes dos choupos que rodeavam todas as coisas.
O céu estava limpo e azul verão apesar de ainda estarmos na Primavera e aqui e ali uns desbotados pedacinhos de algodão manchavam levemente o quadro animador de uma perfeita pintura de Maio.
A praça rectangularmente rodeada por edifícios irregulares tanto na época como na arquitectura num misto de belas fachadas decoradas a azulejos com motivos e cores únicos (permanente alvo de roubos) há já muito deixados de fabricar com suas janelinhas ornamentadas a pedra antiquíssima e as águas furtadas espreitando por entre os telhados vermelho esverdeados pela acção das intempéries deixando sonhar o romantismo do séc. XIX e os prédios mais recentes erguidos sob a ruína da uma história cada vez menos importante. Prédios sem o mínimo de consciência, sensibilidade e estética urbanística visando apenas o lucro fácil e célere do falta de gosto de todo um período de boom imobiliário desenfreado e sem escrúpulos. É por demais evidente. Algo está definitiva e quiçá irremediavelmente mal nesta imagem. Acreditem-me. Venham a esta praça e olhem à vossa volta e verão imediatamente o que falo. Imagem triste que apetece implodir.
Imagino-me a jogar numa daquelas máquinas de salas de jogos ou café em que o objectivo é encontrar continuamente as diferenças entre as imagens num ritmo cada vez mais acelerado contudo, neste jogo feito de coisas reais o que era verdadeiramente difícil de descobrir não seriam as diferenças, os pormenores que saltam à vista e antes pelo contrario tentar descortinar algo que permanecesse imutável e belo aos olhos de quem um mínimo respeito pelo que é realmente belo.
Fixo de novo os olhos no chão na ainda recente pedra de calçada da praça mas já enegrecida pela contínua passagem das gentes, uns tantos carros perdidos e outros Srs. importantes demais para que lei seja por eles cumprida usando o recinto de gente ao belo prazer das suas viaturas – mas isso fica para outra história -, calçada essa adornando e escondendo dois pisos de estacionamento no subsolo e sorrio.
De novo como vindo a galope numa brisa suave invisível tornada visível apenas pelos seus intervenientes parece nevar agora com mais intensidade aquela espécie de algodão chegando languidamente quase deambulando sem destino sobre a calçada à portuguesa ao som de uma quase inaudível valsa criando um salão de baile para os pequenos tufos dos choupos se iniciarem nas suas rodopiantes e inimitáveis danças.
Outra vez aqui e ali rodopiam gentilmente criando ínfimos tornados desfeitos num seguinte corridinho e de novo voltando à posição inicial. Tremendo.
É tão simples a minha vida.
Com o jornal e o livro pousados em cima da mesa da esplanada dou por mim a olhar muito além daquilo que realmente vemos numa imagem de encantamento ou distracção pura, tanto me faz, até sou trazido à realidade pelo Nuno, o empregado do 120 que mais não faz que tentar fazer merecer o seu ordenado – simpatia e tentar vender – nada de mais.
-Olá, boa tarde Abílio! Então, a ler o jornal? E permanece depois em pá parado com cara de muitos amigos fitando-me alegremente como esperando qualquer coisa.
Sou-lhe conhecido como devem perceber na familiaridade do discurso. E não fosse o não estar de facto noutro local e não estando na realidade a ler o jornal aquela pergunta não passaria de uma simples pergunta de retórica cuja resposta evidente era tão obvia quanto estar ali de facto a ler o jornal; sim. Estou a ler o jornal e ponto. Também lhe podia responder; não; estou a admira-lo; estou a fingir que sei ler; estou a comer um bitoque; ou simplesmente; não, eu nem sequer estou aqui, não passo de uma ilusão criada por quem precisa de vender qualquer coisita mas, com um simples e compreensivo aceno de cabeça confirmo o que tão sagazmente concluiu. Não se pode dizer que um bar na praça seja comparável com uma casa de pecados de gula como um McDonald cujo objectivo e as regras da boa educação e um bom livro de reclamações tornam quase imperceptíveis mas que toda gente sabe bem qual é e que não se vai ali para comer e fazer sala e antes comer bem e barato preferivelmente no mesmo tempo em que se bebe um shot mas no busílis da questão, no que é realmente essencial, o lucro, todas as mentes são parecidas e pura e simplesmente estar-se sentado num qualquer estabelecimento comercial sem consumir é uma espécie de má educação ou até mesmo o inicio de uma indesejável praga ao estilo de, - Cuidado! Vem aí a contenção! Está tudo fodido!
Antes de continuar quero pedir desculpa a quem se ofender pela palavrinha grosseira que usei há pouco. Eu nem sequer sou assim mas ao tentar colocar-me no papel dos outros é justo que pense também como eles. Ou talvez não. Volto à praça.
Ainda naquele expressão de múmia ou sujeito parado no tempo através dos poderes do Hiro e bufando dentro de todo o seu ser, ouvi a sua alma e observei na transpiração da retina dos seus penetrantes olhos usando o poder da nossa inesgotável imaginação, o seu monologo interior:
- …dss. Então? Vais querer alguma coisa ou é o costume. Um cafezinho. Ou se calhar até fazes uma coisa maluca e ainda pedes uma aguinha com gás. Vá lá pá, puuu… Então? …dss. É que nem sequer dá para pagar o desgaste do car… da cadeira...dss. É pá tu é és um cota educado e o car… não dás problemas mas, dss esta merda não é a biblioteca municipal. Vai ser o cafezinho não é? Para a próxima tiro-o logo e trago-o aqui…
Vou parar por aqui o argumento de um filme barato português e vou mas satisfazer-lhe o desejo que é no fundo a minha ordem e sua compensação. Assim e de seguida esbocei um ligeiro sorriso sem mostrar os dentes e pedi-lhe:
Quero um cafezinho se fizeres favor. E como confirmando através da sua expressão facial - essa verdadeira máquina detectora de mentiras - a minha expectativa em relação ao meu mas também dele, monólogo interior, lancei-lhe um osso que sem dúvida iria roer no seu inconsciente e levantando o braço na sua direcção como quem quer chamar a atenção para qualquer coisa pedi-lhe o que tanto ele desejava:
Olhe! Traga-me também uma aguinha com gás. Castelo. Se fizeres favor.
Enquanto o pedido não chega lanço de novo o meu olhar para cima da página da Gazeta das Caldas e sem conseguir evitar a minha visão periférica viu aproximar-se vindo da rua da calçada da praça da fruta, um conhecido meu e de toda a gente de resto, o João Victor. E pronto a leitura ia ser irremediavelmente posta de parte outra vez.
Não desviei o olhar da leitura na esperança de me poder talvez tornar invisível, fazer de tal forma parte da mobília que não passasse apenas disso, mobília sem grande interesse. Escusado será dizer que para o João tudo tem qualquer coisa de interessante, de novo. Ele é uma espécie de eterna criança na idade dos porquês e inevitavelmente dirigiu-se a mim.
- Então Abílio? Então como é que é? Tás a ler o jornal?
Acerca da última pergunta não vou tecer mais comentários. E não tendo outra escolha que a boa educação porque esse conceito nunca é demais e tal como as nabiças não fura o estômago virei o meu brilhante, límpido e sincero olhar na direcção do João.
Antes de continuar e para que compreendam melhor e antecipadamente e figura vou contar-lhes a uma anedota que será tão nova para quem nunca a ouviu como uma espécie de enfado para quem já a ouviu; se é o teu ca

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segunda-feira, julho 6, 2009 - 23:17
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