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O segundo Milagre - Capítulo IX

IX

Que sensação quente, húmida e medonha percorre todos os poros covardes e perturbados de meu corpo. Sinto-me enraizado profundamente ao chão de parquet do corredor e por mais que tente fazer o mínimo movimento mais a minha vontade se crava nas profundezas da minha incapacidade de reagir. E reagir ao quê? Reagir a uma imaginação atormentada pelos fantasmas de uma infância solitária? Nem um músculo reage em mim e até os riachos que percorrem as minhas veias congelaram.
De novo sou percorrido por aquela sensação que nos confunde em determinados momentos da vida, aquele sentimento de estar completamente indefeso e de ser uma presa fácil de um qualquer destino inexplicável e obscuro, o mesmo que triste e infeliz dano colateral de uma guerra ou de superior desígnio de uma inconstante conjuntura social, esse momento em que agonizamos e pensamos que engoliremos em seco pela última vez como aquele que ainda vivo vê o gume de uma espada trespassar-lhe a carne e estalar-lhe as costelas dividindo em dois esse comboio de corda que se chama coração reduzindo todo o entendimento a uma expressão; Merda! Isto não me está a acontecer! Mas infelizmente aconteceu mesmo.
Nada me perturba mais que o inexplicável e o desconhecido.
- Contudo, por hoje e por agora nada mais de extraordinário e transcendente iria acontecer a Abílio.
- Já devem ser umas nove horas. Há quanto tempo é que estou aqui feito de mono nesta posição de pernas abertas, braços caídos e punhos cerrados, de frente para a porta de entrada, armado em valentão nesta profunda escuridão? Por mais que tente, não sou simplesmente capaz de reagir. Como o Ludwig Carlsburg em “O coleccionador de sons” de Fernando de Bes, disseco todos os sons ambiente procurando a última e genial frequência. A diferença entre mim e ele é que infelizmente eu não quero encontrá-la pois temo confirmarem-se os meus maiores receios.
Estou aqui há pelo menos meia hora. Sim. Está a ser sem sombra de dúvida a mais penosa e terrível hora da minha vida.
Passada esta inexorável e longa eternidade de trinta minutos, palpitando segundo a segundo no meu coração de passarinho assustado, adquiro subitamente controlo sobre todas as minhas faculdades físicas e mentais. Primeiro descerro os punhos e levo vagarosamente uma mão à cara afagando o meu queixo e os maxilares numa atitude cautelosa e pensativa. Reajo finalmente. Expiro profundamente de alívio como emergisse desesperadamente do fundo do mar a caminho da tona de água no limite da minha resistência apnética e acto contínuo estico o outro braço na direcção do interruptor e acendo a luz do corredor. Consigo virar-me para trás e só eu sei o conforto que vi ali na luminosidade alaranjada do abat-jour que aqueceu ainda mais a minha alma. Levo de seguida a mão à cabeça como quem penteia o cabelo tentando organizar tudo o que me acontecera na mata. Continuo a olhar para o abat-jour focando o meu olhar no ponto que irradia a luz esperando que ela me dê alguma resposta ou ilumine o meu perturbado discernimento. Diz-me qualquer coisa? Como nada me responde, resigno-me e baixo o meu olhar no tapete estreito com motivos orientais que cobre o parquet do corredor desde a entrada principal até ao fundo onde está a casa de banho perscrutando qualquer resposta desde o que a minha visão absorve até aos confins da terra quando de repente me lembro:
O meu livro e os meus jornais? Bolas. Deixei-os em qualquer lado, ou será que foi quando saltei o rio? Suspiro de aborrecimento. Ainda por cima o Equador do Miguel S. Tavares, essa obra-prima da literatura portuguesa e dos melhores livros que já li até hoje logo a seguir ao D. Quixote. Bolas, esse é que não. Será que o terei de facto deixado cair no rio? Não consigo visualizar com exactidão esse momento. Será que o deixei no café ou no parque? Parece uma triste página em branco a recordação do que passei há pouco. Lá terei que comprar outro.

Pode dizer-se que o dinheiro não é motivo de angústia ou tormento dos dias para Abílio. Da sua avó herdara a casa onde morava e o terreno circundante, ambos livres de hipotecas, que eram mais do que suficiente e mais ainda o que alguma vez a sua humilde pessoa poderia um dia desejar. De seu pai recebeu um abastado seguro de vida quando atingiu os dezoito anos de idade que por si só era suficiente para viver um futuro simples e confortável. Mesmo assim o máximo que queria era poder cultivar flores e poder madrugar com os primeiros esboços de luz que o sol pintava ainda longe lá para o meu de Espanha aproveitando todos os dias como se não houvesse um último. Isso bastava-lhe. Até mesmo o desejo de partilhar a sua vida com uma mulher não era coisa prioritária. Tal como os passaritos sabem que é chegada a hora de levantar voo pela primeira vez sem nunca antes terem tido uma primeira lição ou como os potros nascem e começam logo a andar, ou como tantas outras coisas, Abílio havia há muito descoberto o seu corpo e não sendo diferente dos outros homens do mundo de vez em quando masturbava-se à noite acalmando esse natural desejo sexual inseparável do ser humano.
Compraria outro livro e pronto. Vinte e poucos euros por uma obra de louvar, não são nada.

- Quanto mais penso no que se passou mais certeza tenho que tudo não passou de invenção da minha imaginação. Um homem adulto com medo do escuro. A ouvir vozes. E ainda por cima familiares. Que parvoíce.
Não está nada lá fora nem tão pouco na mata.
Sorrio da minha figura de pierrot triste amedrontado e olho para o relógio para consultar as horas. E já são 22 horas. Bem, adiante que se faz tarde.
Como a venda de flores do dia de hoje acabou mais cedo; por volta das 11 horas já tinha vendido todas as flores que levara; regressei logo para casa e preparei os novos ramos de dálias, rosas e hortenses para amanha. Deixei os ramos dentro dos vasos de plástico com água bem atadinhos com junco que cresce no meu terreno. Assim tê-los-ei bem fresquinhos para a venda de amanha. Seguindo o exemplo da minha avó nunca levo mais que três ou quatro variedades de plantas para a venda acreditando que mais vale levar poucas mas boas que muitas sem qualidade. Até porque se por um lado é bom ter muita variedade para oferecer aos clientes, por outro o excesso confunde o desejo do cliente que acaba por achar todos muito bonitos e no final dispersada a sua atenção acabaria por não levar nada. Desta forma quando olham para a minha humilde banca de venda ocupando dois escassos metros alugados à câmara, feita com um tabique já velhinho apoiado em duas caixas de fruta feitas de madeira os clientes observam:
- Belas dálias.
- Que lindas rosas.
- Que hortenses tão mimosas.
E ponto final. Fim de dispersão. A observação seguinte será apenas e obviamente:
- Quero um ramo porque as tuas flores têm mais encanto. Para os que já me conhecem.
- Quanto custa? Para quem ainda não me conhece.
A dignidade da concorrência entre os eternos madrugadores da praça é respeitada dentro dos limites do bom senso e o que mais define boas vendas e fidelização de clientes são dúvida a qualidade do atendimento e do produto.
Eu levo invariavelmente dez ramos todos os dias, os quais me rendem entre trinta a quarenta euros por dia. Vendo apenas nove. Um deles ofereço sempre à simpatia do dia. Não me recordo de alguma vez voltar com um ramo para casa. Sejam quais forem as razões do meu sucesso; a minha simpatia, simplicidade, cortesia, o semblante humilde, ou o conhecimento de muitos da minha trágica história de vida, o que é facto é que no meu livro de quebras não existem quaisquer registos.
Decido finalmente, após uns minutos de meditação, abandonar o corredor como se nada tivesse acontecido e vou até à cozinha. Ligo a luz na cozinha ao mesmo tempo que apago a do corredor. Olho para o frigorifico e para a dispensa mas estou sem apetite. Retiro apenas um copo do meu velhinho aparador e encho-o na torneira do lava-loiça para o beber de seguida. Dirijo-me à porta da cozinha que dá acesso ao logradouro murado exterior; abro-a e deixo-me ficar ali a de copo na mão. Tudo estava calmo. Talvez calmo demais. Na minha frente, desniveladas a pouco menos de um metro dormitavam as flores dentro da minha estufa de trinta metros quadrados. Tudo continuava como há umas horas atrás. As bancadas corridas de tabiques apoiadas em pilares improvisados feitos de tijolo de quinze ao baixo a cerca de um metro e vinte de altura permaneciam
ali com os vasos de flores de exterior em cima embebidas na cor violeta dourada da noite.
Como recuperado completamente de todos os infundados receios decido ir até à minha estufa feita de pilares e vigas de eucaliptos e revestida a manga plástica cor de nevoeiro verificar também se tudo estava como eu deixara umas horas antes. Olho lá para dentro debaixo da ombreira da porta da estufa e aparentemente tudo está exactamente como devia estar. Silencioso e deliciosamente bem cheiroso. Volto para dentro, não sem antes fazer um xixizinho para uma pequena calha metálica que segue encostada ao muro até as traseiras do terreno. Era o antigo canal que levava as águas da casa de banho e da cozinha até à fossa séptica no exterior. Agora já existe esgotos. Um xixizinho de vez em quando em honra das velhas recordações. Enquanto o meu corpo se arrepia com a sensação de alívio imediato dada pela saída da urina pelo escroto, olho para o céu que por entre as agora mais espaçadas nuvens deixa espreitar o brilho único das estrelas e a minha alma ganhão um novo ânimo. Tudo parece ter voltado à normalidade.
Vou mas é para dentro mudar de roupa, fazer um leitinho quentinho e deitar-me que não tarde são horas de acordar.
São precisamente 5:15 da manhã quando abro os olhos ao som do despertador sintonizado na Antena3, a predilecta do meu coração. Estou tão biologicamente habituado a acordar às cinco da manhã que utilizo apenas o despertador de rádio como mola para me levantar. Acordo sempre à mesma hora mas, quem não gosta de se deixar ficar um pouco mais na quentura e moleza dos lençóis? Assim e porque decidi que às cinco e quinze é a hora certa para saltar da cama, acordo deixo-me ficar de olhos fechados até ouvir a música. É estranho como estando de olhos fechados num quarto escuro conseguimos ver mais claridade que se os tivéssemos abertos. Se estivermos os olhos abertos vemos apenas o escuro, mas se os mantivermos cerrados surge uma imensidão de imagens caleidoscópicas tão fantásticas quão misteriosas. Formas estranhas e sem sentido miscigenando-se com outras que entendemos utilizando as cores primárias da noite para criarem todo uma infinidade de outras.
A imaginação não tem limites. É um veloz e negro cavalo alado lusitano correndo livre por montes e prados de mil cores e indescritíveis fragrâncias vacinado contra o desejo da ganância de posse humana. Ninguém a consegue apanhar.
Porém hoje sinto que qualquer coisa não está bem. Um estranho prenúncio de não sei o quê.

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quinta-feira, julho 16, 2009 - 09:09
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