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O segundo Milagre - Capítulo VII

VII

E foi a pensar nisto que cheguei aqui onde estou agora. Mesmos nas traseiras do antigo Termal apoiado sobre o varandim metálico que ameaça desfazer-se em pó fitando as gárgulas góticas do telhado da igreja da Nossa Senhora do Pópulo, os vários verde-oxidados antiquíssimos sinos de cobre e o relógio de pedra incrustado do tamanho de uma roda de carroça marcando uma qualquer estranha hora absurda, afundando-se tudo no poço do desnível térreo. O que fora outrora um enorme talude está agora transformado em poço de pedra cuja base está ao nível do parque e o topo ao nível da mata. São de certeza para ai uns quatro ou cinco metros. Desculpem-me os topógrafos o erro nas medidas mas a minha medida é a que a vista me dá. Recordo-me ser pequenino, olhar para lá e ter vertigens como estivesse no topo da torre Eiffel. Parecia uma autêntica barragem. Hoje o que não passa de um recanto sóbrio e húmido que tresanda a menu molhado com sopa de couves podres fora outrora o meu primeiro e terrível pesadelo de queda num precipício que me interrompia o necessário descanso durante o meu sono de criança.
Bolas! A chover, oito e tal da noite e eu aqui. No meu pior pesadelo de infância. Atravessar uma mata sombria sendo já noite e ainda por cima chovendo. Lindo. Um homem adulto com medo de avançar por um caminho sombrio de regresso a casa. Por amor do que cada um ache mais certo. Quase ma dá vontade de rir.
Oito e tal da noite, viro costas àquilo tudo e entro pelo portão romântico da mata rainha D.ª Leonor.
A não muito larga tapada que sobe pela mata cima está escorregadia sob os meus pés enquanto subo caminho em passo largo e enérgico vendo os brilhos da noite reflectidos pela humidade que cobre todos os tons sombrios para onde olho e ouvindo pouco mais que o gotejar das gotas de água caindo das folhas das árvores tocando a folhagem morta pelo chão, dou por mim cagado de medo a arrepender-me da parvoíce que acaba de fazer. Sem necessidade nenhuma. Podia ter escolhido qualquer outro caminho ou qualquer outra forma de ir para casa e logo, como uma formiga num algoritmo de eficácia havia de ter que ter escolhido o percurso mais rápido. Que parvo. Pelo meio da escuridão, noite, a chover. Agora, mesmo que não queira sentir que tenho que enfrentar os meus próprios medos aqui no meio de toda esta escuridão, não tenho outro remédio senão enfrenta-los. Como se o futuro dependesse de um arrependimento, de um recuar um pouco, do ser capaz de reconhecer um erro e principalmente corrigi-lo. Nada mais me resta agora que sorrir da disparatada resolução de ter estranhamente escolhido este trajecto e continuar o caminho sinuoso e sombrio até casa.
São dez minutos em passo regular até minha casa e o que é que me pode acontecer ou quem é que andaria por aqui a estas horas tardias de um chuvoso dia de Maio com pouco mais para ver diante dos olhos que a noite e os seus silenciosos contornos, esforçando por distinguir nas diferentes tonalidades das sombras da emaranhada floresta um qualquer movimento aterrador. De certeza que além de mim, um outro caso excepcional como o meu, dos bichos, da flora e de todas as energias universais nada mais ando por aqui. E como nada mais temo, apenas os meus próprios receios, e não nada ou nenhuma imagem sobrenatural, terrena ou transcendental. Percorri pouco mais de 50 metros e encontro-me nas traseiras do Hospital de Caldas da Rainha virando na rua para Este na estrada de terra pedras e raízes criando socalcos, a mesma que acompanha os limites do H. cercando o inicio da mata que ameaça ocupar o seu antigo terreno a todo o instante. As trancas das árvores esticam-se permanentemente para todos os pontos cardeais vencendo a decrepidez dos negros muros de pedra e adobo que ameaçam ruir aqui e ali.
Agora que avança em passo mais acelerada vinha à mente a imagem das traseiras d Igreja ostentando as suas gárgulas como góticos algerozes. Mas agora não eram apenas esculturas feitas de pedra, musgo, humidade e monóxido; agora aqui imagino-as a ganhar vida e uma a uma entrando na mata para me procurara. Não vá o diabo tece-las e olho para trás sobre o meu ombro para tentar descortinar alguma tenebrosa e assustadora forma ávida de mim no pouco que conseguia ver pelo meio das sombras cada vez mais difíceis de distinguir. A noite cobrira rapidamente este local com um manto negro coberto por pequenas missangas prateadas luzindo aqui e ali, no cair de cada novo pingo de chuva e de cada novo contacto desinteressado entre a natureza. E quanto mais tenho vontade de olhar para trás mais depressa ando para a frente e parece-me que aquilo que estava a ouvir antes, os anteriores ruídos líquidos, quebradiços, vaporizantes e naturais de uma floresta se tornam agora numa enorme orquestra dando um concerto demoníaco nas profundezas assustadas do meu ser incapaz de distinguir o que é, ou o que era, ou que deixa de ser. Ponto final, paragrafo. Entenda-se isto como a paragem que faço neste momento aqui onde estou agora, pouco mais de 50 metros da esquina Sudoeste do campo de futebol do Caldas S.C. por onde terei que passar.
Primeiro fecho bem olhos para cegar qualquer engano visual. De seguida encho calmamente os meus pulmões de ar mantendo-me em pé no meio da rua transversal sul que na qual virei ainda agora, direito, quieto, mais imperturbável que a estátua de uma árvore, impenetrável como um exercito de cruzados feitos de titânio. Começo lentamente a reconhecer os sons da floresta, O som da rapaziada a jogar à bola no campo de treinos do Caldas. O gotejar, o esfregar das ramagens dos gigantescos plátanos, eucaliptos, loureiros, carvalheiros, numa atitude de quem vai fazer um joguinho de poker e rejubila antecipadamente a sua sorte ou seu azar ao jogo. Esfregam as mãos porque no final o que vale é a tertúlia do momento, o relaxar comum das almas cansadas num abraço de camaradagem inigualável e não uma disputa ridícula feita de orgulho e preconceito. Uma ave nocturna que voa de um local para outro. Uma corvo que crocita na distancia. De repente todo o meu exercício respiratório parece surtir efeito e sinto-me capaz e confiante de abrir os olhos e seguir calmamente o meu caminho. Bolas! Pareço uma criança. Penso e ainda não abri os olhos. Calma, são apenas ratinhos imaginários correndo na rodinha trémula do teu raciocínio. Pensado isto, abro por fim os olhos e após uma vitoriosa concentração rodo sobre o meu eixo queimando tudo em redor com o meu olhar de fera e girando 360º paro e está-me a começar a dar vontade rir. Que parvoíce. Avanço tão confiante e destemido como um terrorista rua acima direito a casa e ainda não tinha para do de rir; Foda-se! Caralho! Mando uma biqueirada nas costas de uma raiz saliente impossível de ver e catrapumba; de quatro patas ao chão, ainda por cima de frente, mesmo de chapa no chão que apesar de tudo não me parece sujar muito nem ser assim tão duro como osso. Pelo menos não consigo ver. Levanta-me praguejando aos deuses e limpando a cara molhada cheirando a chá de manta morta feito há meia dúzia de dias. Abanando a cabeça e no meio deste breu não consigo deixar de visualizar a minha figurazinha de parvinho amedrontado. Um homem feito.
Percorre-me agora uma arrepiante sensação de estar a ser observado e arrepiando caminho atingindo o bem iluminado (pareceu-me ser dia de novo) campo de treinos do Caldas que fica ali mesmo ao do outro, dez metros a sul num desnível de dois metros separados pela rua que vem da feira na Encosta do Sol para o Largo João de Deus nas traseiras do Hospital Termal uma centena de metros mais abaixam. Como a antiga passagem de veículos se encontrava já encerrada com a colocação de enorme manilha cheia de terra mesmo no meio da estrada, atravesso pelo acesso pedonal que ali sempre existiu e ali estou.
A chuva abrandou mas, o facto de não se ver uma única estrela no céu não é muito pronuncio para o futuro. Mesmo assim, nessa iminência e talvez como forma de tentar expurgar o corpo e alma dos medos danados. Paro por uns momentos junto à rede que define os limites do campo na extremidade nordeste do mesmo cuja elevação natural da ligeira encosta que ali se encontra transforma num óptimo local de observação.
Lá andavam eles. Talvez uns vintes rapazes com idades compreendidas entre os treze e os quinze anos correndo em volta do campo naquilo que parecia ser à primeira vista um teste Cooper. Como é que esta rapaziada consegue andar ali ao sabor dos elementos como brincando num charco com mais lama que água, carregando botas de futebol pesadas como chumbo de tanta lama que se lhes agarra pintando de castanho pó de pedra o que antes era diferente? E o pior nem é isso. O pior é o aspecto saudável e feliz exalado pelo vapor que é possível ver largar-se de seus corpos enquanto correm, numa busca de querer dar nas vistas ou apenas experimentar-se tentar-se a ser o melhor, enquanto correm como cavalos arreados em volta do campo.
Com um pouco de sorte a seguir os moços até podem ser que façam uma peladinha, onze contra onze, pelo menos, noventa minutos.
Por um instante, sinto-me bem comigo próprio aqui neste local quase inóspito. Porque vejo a diferença que existe aqui. Sente-se um desinteresse sincero das exalações aceleradas dos putos.
Olho para o céu. Está negro como tudo, Contudo parece que alguém deu com um rolo de tinta uma espécie de tapa-poros de bruma por cima dessa escuridão. Continua a chover xixixi e o aqui e o agora tornam-se de repente o que foram há um pouco. E agora?
Estou no cruzamento movimentado dos meus próprios medos e como Cristo crucificado também nos pés sinto-me pregado à minha incapacidade de decidir qual o melhor caminho para chegar casa.
Em linha recta, esquecendo o esquecido vale que chora por convivência abandonado e que separa a mata Rainha D.º Leonor, estou para aí a quatrocentos metros rectos de casa. Indo em frente claro. E de resto, em frente é dos quatro caminhos que posso tomar; Aqui na superior Nordeste do campo de treinos do Caldas posso tomar quatro diferentes sombrios e suspeitos nocturnos caminhos para minha casa. Para Sudeste, Quatrocentos metros. Para Nordeste, dois quilómetros, mais umas pedrinhas. Para Noroeste, Três quilómetros. Para Sudoeste, Dois quilómetros. Agora! Qual escolhias?
Claro está. Foi essa mesma a possibilidade que escolhi sem hesitar.
Lanço um último olhar sobre a luz do relvado. Feita de diferentes polimentos de pedra que iluminam por momentos a minha alma alimentando a força para acreditar que somos capazes de fazer tudo aquilo a que nos propomos, essa luz que os holofotes propagam, aquece a minha vontade de querer por à prova a mi coragem e quem sabe a minha virilidade de homem palerma; um homem não chora; um homem não tem medo do escuro; um homem tem coragem; e por aí fora; o que não faltam são tabus viris atravessando-se como pregos sob a borracha que é o nosso entendimento das coisas. Perdido nesse olhar de infinitude que trespassa todas as matérias, fixo a sombra mais negra do caminho abandonado que está ali a menos de vinte metros e dou o primeiro passo à velocidade lunar de um astronauta na lua.
- Boa noite! Diz um fulano que surge do nada mesmo quando estou a embrenhar-me na escuridão da mata.
- Boa noite! Respondo eu para não me comprometer.
Deve ter ido cagar, penso ao mesmo tempo que me rio de mim próprio por estar com medo de atravessar aquele pequeno e denso bosque cujo manto feito de ramos e folhas de gigantescas brólenses (mistura de brócolos com hortenses), adorna com alegria o meu acordar em casa. Dali avisto tudo em meu redor. Elevado na colina a cerca de trinta metros acima da cidade e um pouco menos das copas das árvores da mata vejo o horizonte confundir-se na linha do horizonte onde oscila o mar profundo do Atlântico.
Tanto medo. E o gajo foi lá cagar.
- Está a andar para casa que se faz tarde rapaz! Gritava-me às vezes docemente a minha querida avó quando me atrasava no quintal com os berlindes, com as flores ou com os animaizinhos.
Entro pelo caminho quase abandonado que conduz até uma casa abandonada umas centenas de metros mais á frente e num ápice tudo fica escuro como o breu e para me animar começa a chover. Bestial. Olho para trás vejo por entre as linhas das árvores e do mato que vêem do lado do campo de futebol que está aí a cinquenta metros de onde me encontro pequenas lascas luz e até me arrepio só em pensar tão perto dela e tão longe ao mesmo tempo. Tanta e tão densa escuridão na qual me embrenho a um passo da claridade.
O que foi aquilo? Pareceu-me ver mover-se uma enorme massa escura que bloqueou por momentos as permanentes cintilações violeta da noite.
Viro-me e acertando quase em cheio no primeiro dos três degraus calcados na terra para sempre pelas primeiras passagens das subo até ao carreiro da minha infância. Acho que é sempre a direito até ao riacho. Para lá do riacho a Quinta da Boneca e logo a seguir, o Casal dos Cucos, my land.
Sinto que me estou a por à prova. Testo os meus medos e temo tornar-se real a imaginação. Nós somos os criadores dos nossos próprios medos. Engulo um cálice seco e cheio de pó que é a rapidez com que progrido caminho e largando a mão do gigantesco e centenário castanheiro com aspecto de sequóia que marca em linha recta o limite da mata até ao rio e sob a raiz do qual assenta o primeiro dos degraus que subi ainda há pouco, visualizo uma espécie de canal imaginário que experimentei na minha infância, cuja base arredondada dando forma a um estreito carreiro de formigas gigantes é larga o suficiente para andar em frente numa espécie de jogo de confiança, num salto de fé, no qual avançamos com os olhos vedados para o abismo da falta de confiança em nós próprios. Dou o primeiro passo. Acredito em mim. E contra todas as minhas expectativas não caio num poço sem fundo. O mesmo que dizer que não desisti ainda de viver e principalmente de ter fé em qualquer arrepiante e inexplicável força dominadora da consciência.
Bem por aqui são apenas mais dez minutos e já não vale a pena voltar para trás. Tudo o resto é apenas fruto da minha imaginação. Começo avançar e debaixo dos meus pés vou sentido o mato estalando como o crepitar de uma fogueira ao mesmo tempo que sinto a humidade a lamber a minha roupa e principalmente os meus ténis e de quando em vez levo uma bofetada de um ramo de arbusto que não distingo na escuridão. Não consigo ver quase nada mas sei tudo à minha volta é um emaranhado e denso mundo vegetal feito de mato, fetos, trepadeiras e bambu. Além dos meus ruído desbravado o caminho ouço os pingos da água caindo pelo solo, os ramos rangendo e os melros ensaiando cantigas de embalar fazendo inveja aos melhores tenores rouxinóis. Da escuridão mais distante parece-me filtrar:
- Passa a bola; e – é falta! E o som termina ao silvar de um apito.
A custo cheguei finalmente perto do riacho que separa os limites da mata da Quinta da Boneca. Aqui forma-se um pequeno vale ou uma enorme vala em V dependendo da perspectiva que se afunda dois metros até onde correm as águas e se ergue outros três do local onde estou até ao nível dos terrenos da urbanização. Fixando o meu olhar e juntando um pouco de imaginação consigo ver o velhíssimo tronco de arvore ali colocado servindo de ponte. Agora é só visualizar o tronco e em quatro ou cinco passadas decididas já estou do lado de lá. Concentro-me e mesmo no momento em que estou confiante para arriscar a travessia, numa espécie de mau agoiro, uma nova apitadela é seguida por um agitado crocitar de corvos e como alguém tivesse parado o relógio do tempo instala-se um estranho e inexplicável silencio que me apanha no momento em que levanto uma perna para avançar no meu número de equilibrista de olhos vendados.
Que estranho. Penso. Engulo em seco e nem mesmo o som da minha saliva ouço descer.
De novo a minha imaginação e passar-me uma rasteira.
Sinto-me a ser observado. Nem um único glóbulo vermelho circula dentro de mim. Estou como petrificado pelo medo do desconhecido.
Alguma coisa a não mais de cinquenta metros à minha direita parece criar uma mancha mais escura que todas as diferentes e nocturnas tonalidades da própria noite. Estático, consigo apenas visualizar uma pequena periferia daquilo que me rodeia. Ali, numa antiga ruína de uma centenária mina ou respirador das profundezas da Terra consigo ver o vapor saindo como quem espira ar quente para um ambiente mais frio. Foda-se. Não me consigo mexer. O que é se passa ali?
- Abílio há muitos anos espero por este momento.
Quem é que está aí? Penso aterrorizado.
- Calma. Declara a voz.
Calma. Penso. Sinto-me como hipnotizado e tudo em mim para, até o meu raciocínio.
- Calma Abílio. Lança de novo uma voz grave, decidida e suave e cortês ao mesmo tempo. O Abílio virou estátua e por mais que quisesse mover o seu corpo naquela direcção nunca o conseguiria fazer. Esse movimento não impossível mas, demasiado doloroso comparável a ter que enterrar em si próprio o gume de uma espada ferrugenta. Todo o seu eu estava noutra dimensão. Num mundo vazio como no vácuo de um universo sem estrelas. A voz volta:
- Sei que me ouves e sei também que me conheces.
De nada vale encerrares tua alma na inconsciência dos teus próprios medos. Sabias que um dia viria ter contigo não para te cobrar qualquer coisa, mas para dar um verdadeiro sentido à tua existência.
Abílio continuava a bloquear toda a informação e num esforço de sobrevivência, vinda dos confins do entendimento o humano consegue concentrar uma força sobrenatural em redor dos seus olhos, com a qual os cerra com a força de uma poderosa solda. Contudo, algo superior e transcendente apodera-se da sua mente e dá subitamente por si fisicamente estático, mas desenvolto intelectualmente respondendo ao sujeito omitido nas frases feitas de árvores:
- Não! Não te conheço. Quem quer que sejas; se não fores simplesmente o medo da escuridão que se apoderou do meu raciocínio, não te conheço. E põe-te a pau senão rebento-te todo.
Mas que raio. Penso. Apesar de tudo reconheço nesta voz uma misteriosa empatia, não. É só imaginação.
É natural. Estou aqui rodeado por toda esta profunda treva onde é tão fácil temer até o surdo deslizar de um caracol sobre as superfícies húmidas ou som das formigas quebrando as folhas por onde passam que me deixei levar pelo sentimento obscuro e medieval que habita um pouco em todos nós. É isso. Reage homem. Penso. Inspiro fundo saindo do anterior transe e nada ouço. Está tudo bem. Mas a voz volta:
- De nada vale lutares contra o que há muito está escrito. Em breve perceberás tudo e então o sentido ganhará forma. Até lá aqui te esperarei.
Cala-te! Grito mentalmente. Tu não existes! Não te conheço! Desaparece da minha mente. Tenho que me controlar.
Volto a cerrar os meus olhos com toda a força e espero que tudo em meu redor regresse à normalidade. Não está aqui ninguém além de mim. Concentro-me e aguardo que o silêncio se mantenha. Deixo-me levar pelo ambiente que me rodeia. Permaneço assim alguns minutos e escuto apenas o estalar suave das gotas de água caindo sobre o manto negro. A minha respiração acalma o ritmo acelerado da minha corrente sanguínea. O ritmo cardíaco estabiliza. Estou pronto para abrir os olhos. Faço-o.
Após largos minutos nesta sensação de iminente loucura a floresta parece ter adquirido uma nova e acolhedora luz. O largo tronco de árvore que serve de ponte até ao talude da urbanização da quinta ganha novos e definidos contornos e por baixo a água desliza abundantemente como um pequeno mas forte rápido de encontro ao mar.
Reina em mim a confiança e cogito antes de iniciar cautelosamente a travessia da pequena ponte como internam pessoas no Júlio de Matos por pouco mais que o experienciei. Já empecei a falar sozinho. Sorrio. Estou no bom caminho.
No momento em que me preparo para iniciar a travessia sinto ainda o meu corpo um pouco entorpecido e se bem que algo em mim me pede para me voltar para o local de onde me parecia estar a origem da voz que ouvi. Decido não fazê-lo, não vá o diabo tece-las, e estar na realidade ali qualquer coisa. Aqui têm o grande herói cagadinho de medo do escuro desejoso de se encontrar na quentura e conforto do lar.
No exacto momento em que Abílio dava de novo o primeiro passo caminho a casa, vindo de trás de si, exactamente do mesmo local que este não ousou covardemente fitar, como um elefante enfurecido desbravando a floresta protegendo a prol contra uma iminente ameaça, algo avança na sua direcção capinando tudo à sua passagem como um meteorito criando novo vale e novas montanhas. Mas desta vez Abílio não petrificou:
- O que é esta merda? Todas as minhas certezas se desmoronam como um frágil castelo de cartas e numa fracção de milésimo de segundo transformo-me num atleta de salto em comprimento. Qual ponte qual quê? Sem qualquer balanço, flicto as pernas como uma mola e impulsiono todo o meu corpo para o lado de lá do ribeiro caindo de chapa na ligeira e enlameada encosta como um desenho animado que cai das alturas de braços e pernas abertas escavando a sua própria forma no chão. A base cónica do pequeno vale permitiu-me aterrar mesmo no limite. Sinto a água do riacho lamber-me os pés enquanto me sinto deslizar milimetricamente ao seu encontro. Atrás de mim qualquer coisa respira ofegantemente. Sinto o bafo quente da sua respiração arrepiar todo o meu corpo. O que é isto?
Num instinto quase selvagem de sobrevivência, desesperado como um gato deixado tapado dentro de um tanque de água, cravo as minhas garras na terra molhada da encosta e esgatanho como um louco alpinista por ali acima até espetar uma mão nas raízes de um loureiro já quase ao nível da urbanização. Agora já vejo as luzes da rua próxima. Como um velocista desato a correr por ali acima à velocidade da luz. As casas, as luzes e os automóveis estacionados não são mais que meras impressões de cores servindo de paredes ao cone da minha velocidade. Os oitocentos metros que me separavam de casa foram-se em segundos.
Tremendo como um vagabundo bêbedo perdido numa noite chuvosa e fria de inverno tento desesperadamente acertar com a chave no buraco da fechadura. Arfo como um touro enraivecido raspando a pata na arena quase decidido a mandar a porta abaixo. Bolas! Entra caraças! Entra! Entrou! Rodei a fechadura, entro e voltou a trancar a porta atrás de mim. Corro agora alucinadamente pela casa e por todas as divisões trancando todas as portas e janelas e fechando os estores como fechando-me no mais impenetrável de todos os bunkers, no mais secreto e encriptado esconderijo de Francesco Colona. Está tudo fechado. Com o coração na boca estaco-me no corredor entre a porta do meu quarto e a porta sala de estar virado para a porta de entrada a pouco mais de três metros. A porta é toda ela de alumínio lacado branco tendo apenas uma pequena escotilha de vidro de vinte por vinte centímetros que permite a entrada de alguma claridade durante o dia e especialmente espreitar para ver quem toca à campainha. A escotilha tem uma portada à medida que felizmente está fechada. A escuridão e o silêncio são totais. Aqui estou eu sozinho aterrorizado de novo sem conseguir mexer um músculo. Espero não sei o quê. Xiu. Não façam barulho.

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quinta-feira, julho 16, 2009 - 08:07
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