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O segundo Milagre - Capítulo XI

XI

Uma melosa e estranha sensação percorria todo seu ser. Talvez seja apenas por toda a casa se encontrar escura de demais, pois tinha fechado todos os estores da casa até à última fresta, não fosse qualquer coisa espreitá-lo de lá. Mas não, não era isso. Nunca tivera mais medo do escuro que aquele que se tem pelo rebentar poderoso de um trovão. Outra coisa qualquer pairava no ar. Mas o que raio seria?

- Caga nisso. Pensei para mim mesmo. Decidido, levanto-me da cama enquanto carrego no botão que desliga o alarme do despertado e avanço na direcção do interruptor de luz que encontra à saída do quarto, ou á entrada, tanto faz. Tudo adquire de repente um ambiente natural. Estou em casa e o que é que isso pode ter de estranho. Sigo para a casa de banho e acendo a luz ao mesmo tempo que apago agora a do corredor. Esbocejo languidamente abrindo a minha bocarra como fosse capaz de lá encaixar metade do universo conhecido. Sento-me na sanita gelada para a cagada matinal e espero que o tempo aqueça. Enquanto o cagalhão demora a cair fixo-me na parede de azule branco e reparo que uma das juntas ficou torta à nascença. Nunca tinha reparado nisso e olhando melhor vejo que outras estão piores ainda. Sorriu de mim mesmo perante este monólogo de merda.
Uma contracção no estômago, outra ainda, uma sensação de dilatação desnecessária e ouço uma grande rã a saltar para a poço da sanita; um salpico no rabo, e a merda lançou-se à sua vida. Puxou quatro folhas de papel que dobro para dar mais consistência; duas ou três limpadela e daqui estou despachado. De seguida, levanto-me a bocejar (parece que nem dormi hoje) como um bebé e ponho-me de pé em frente ao espelho apoiando as mãos no rebordo, também este gelado, do lavatório e vejo o meu reflexo demasiado translúcido e dorminhoco. Rodo a torneira da água quente e enquanto esta aquece abro o pequeno armário de duas portas que está por cima do lavatório e de lá retiro a escova de dentes, uma lâmina descartável e a espuma de barbear. Fixo de novo a minha imagem no espelho ao mesmo tempo que verifico a quentura da água e a tempero com fria, mas não muita porque a barba até gosta de água quentinha para se amaciar e poder cortar melhor. De seguida deposito uma nós de espuma numa mão enquanto uso os dedos da outra para barrar a cara como quem passa uma espátula de óleo numa tela em branco. Dada a base nos locais certos, pego na lamina e desfaço a barba no sentido do pelo para evitar irritabilidades na pele e borbulhagem desnecessária. Acto contínuo, lavo a cara em água mais fria e guardo a espuma e lâmina descartável no seu local de sempre de onde retiro um creme hidratante para acabar o serviço (consigo desfazer pelo menos quatro barbas com uma lâmina descartável dupla da gillett). Massajo por fim as faces, olho de novo para o espelho e por momentos pareço não me ver reflectido; atento um pouco mais e lá estou eu afinal por trás da membrana de vapor que se colara ao vidro.
Está melhor assim. Suspiro calmo, mas com o meu próprio estranho e misterioso reflexo fitando-me. Sou só eu.
Estico a mão para apanhar um par de calças de ganga azuis e uma sweatshirt que estão penduradas num gancho preso na parede atrás da porta da casa de banho. Visto ambas as peças rápida e agilmente como quem veste uma luva e dirigi-mo de novo para o quarto cumprindo o mesmo ritual de acender uma luz desligando quase no mesmo movimento como se com este pequeno gesto dependesse todo um complexo controlo energético do qual dependesse a continuidade da humanidade. Faço o mesmo em relação a outras coisas. Por exemplo, quando tomo banho, desligo a água enquanto me ensaboo e quando acabo de fazer as minhas necessidades primárias controlo e observo a porcaria desaparecer cano abaixo para logo de seguida deixar de pressionar o botão da descarga do autoclismo. Quando faço o xixizinho da ordem não gasto de certeza mais de um litro de água até o liquido amarelado se tornar transparente. Substitui-o há uns poucos meses por um daqueles de duas descargas e coloquei-lhe lá dentro uma garrafa cheia de água de 1,5 litros, pelo sim pelo não, mas ainda não utilizei a descarga maior.
Talvez seja só parvoíce da minha cabeça desnorteada, mas acredito que com a vontade de todos, que com cada simples acto individual é possível estabilizar e prolongar o nosso querido planeta por mais uns milhares de anos. Parece-me que temos de ser optimistas em relação ao nosso futuro. Temos que beber do cálice sagrado da consciencialização colectiva. Tudo depende de nós. Mesmo que tenhamos já traçado o seu destino, podemos ao menos proporcionar-lhe uma merecida velhice de avozinha que sempre nos deu aquele carinho sincero e desinteressado.
O destino da Terra não é como uma mera inconsequência da escrita que podemos reduzir a questão homógrafa, homónima, onde se pode confundir como – preposição, ou, como – 1ª pessoa singular do verbo comer, ou outra qualquer. Esse destino é uma consequência directa da nossa irresponsabilidade.
Chegado ao quarto, dirigi-me à fivela do estore, a qual puxei para fazer subi-lo até cima, para logo de seguida deixar entra a primeira e tímida claridade da manhã que deu ao meu quarto um aspecto de noite de luar. Claro que de seguida desliguei a luz do quarto, pois esta era suficiente para que pudesse ver tudo o que precisava. Abri uma gaveta da pequena cómoda que está ao lado da cama e de lá retirei um par de meias pretas, inexplicavelmente a única cor que uso desde que lembro de me lembrar de alguma coisa. Encaro-o actualmente talvez como uma vassalagem de luto pelos meus entes queridos que já se foram. Pode ser apenas um capricho, uma questão de gosto ou paranóia. Who knows?
Calço as meias sentado na beira da cama e depois estico um pouco o braço por baixo da cama até á minha sapateira de sempre para apanhar um dos quatro pares de calçado que possuo. Qualquer um dos pares me agradam, caso contrário não os teria comprado. Assim a minha mão apanha os meus Adidas Dragon brancos com as três registadas listas; este modelo com listas azul-escuro. Calço-me e vou até á cozinha iluminado pelo lusco-fusco matinal que clareia quando abro a porta cozinha que dá para o quintal. Uma brisa fresca invade toda a divisão por isso visto o meu casaco à pescador que está pendurado no cabide perto da porta. De seguida vou até ao frigorífico e de lá retiro uma embalagem já aberta de leite e verto o que resta, mais ou menos meio litro, para dentro de uma taça almoçadeira que coloco dentro do microondas até atingir a temperatura certa. Acto contínuo, junto uma colher de sopa de Mokambo e outra de açúcar acabando ensopando tudo com pão já um pouco rijo, mas para o efeito, perfeito. Sentei-me à mesa com a cadeira virada para a porta observando o dia a nascer Este como quem olha a beleza reconfortante de um pôr-do-sol à beira-mar.
Que fascínio é esse que tanto nos extasia quando perto do mar olhando o sol findar ao mesmo tempo que queima o oceano com as suas brasas infernais? Talvez tudo se resuma ao nosso início como seres vivos, quem sabe como algum animal esponjoso que se arrastou por milhares de anos até à simetria perfeita e complexa do ser humano actual. Mas, se assim for, onde fica Deus no meio disto tudo? O criador do homem e de todas as coisas, ou o criador da esponja que evoluiu para todas as formas? Haverá alguma resposta que satisfaça medianamente a nossa ansiedade por uma verdade palpável? Queremos nós realmente conhecer a resposta? Não trará essa a tristeza de um paraíso perdido?
Uma colherada bem cheia e bem quentinha de sopa de cavalo-cansado-com-leite-e-café-em-vez-de-vinho afasta-me desta obscuridade frenética de remar contra uma maré que nem sequer existe.
Sinto-me aquecer por dentro. É o poder da sopa e não o da fé.
Enquanto como e cogito no amanhecer sou estrondosamente assaltado pelo episódio da noite anterior quase ao ponto de deixar cair ao chão tudo o que tinha nas mãos. Mas, felizmente a queda da almoçadeira e da colher de sopa não passou de um desastre de escassos centímetros, aterrado quase como fosse pousada em cima da já desgastada e velhinha toalha de mesa de linóleo pregada ao tampo de madeira com pionés que já nem se fabricam.
É estranho. Não consigo ter a certeza de que tudo aconteceu realmente. Por isso procuro com o olhar por toda a cozinha o jornal que comprara no dia anterior. Tão certinho como o meu nome ser Abílio, coloco-o sempre em cima da mesa da cozinha onde estou sentado. Um acto rotineiro de actualização. Troco o do dia anterior que levo para a estufa e deixo lá o mais recente. Estiquei o braço, peguei no jornal, olhei a data e tinha escrito, 21 de Maio de 2008. Raios! Exclamo.
Num impulso de quem foge desesperadamente à morte levanto-me da cadeira, salto até à porta da cozinha fecho-a e tranco-a sem saber bem porquê. Simplesmente faço-o aterrorizado. O meu coração dispara a mil com o motor sem óleo, tal devia ser a minha expressão pálida e assombrada. Não consigo pensar nem parar, e num segundo dou por mim no quarto, na sala, na casa de banho, procurando nas gavetas, nas prateleiras, examinando todas as lombadas, no chão e até no tecto, procurando o jornal e os livros que levara no dia anterior. Nada. Nada. Está palavra ecoa sem sentido dentro de mim como um chamamento maldito de um filme de terror. Nada. Nada.
A esta palavra amaldiçoada segue-se uma dolorosa convulsão em todo o meu corpo e num flash de imagem super acelerada revejo-me a embater desamparado numa parede de lama, raízes e folhas secas mas molhadas. O meu coração dispara como um foguete queimando oxigénio até ao céu. Sinto as minhas molhadas. Tento combater esta aflição que me sufoca e grito dentro de mim tentando abafar a palavra nada com termo calma. Calma. Calma. E de repente nada faz sentido dentro da minha cabeça.
Reflicto. Devo ter deixado tudo no 120? Se o fiz guardaram-me tudo concerteza. Posso também ter-me esquecido deles no banco de jardim no parque? Mas então se ninguém os levou a chuva deve ter ensopado tudo. Foi isso de certeza. Tento lembrar-me qual o caminho que tomei rumo a casa a partir daí. Tento em vão visualizar esse percurso mas uma estranha barreira impede o meu raciocínio de avançar. Terei ido pela mata? Não estou seguro.
Na realidade posso ter vindo parar a casa por tantos caminhos que todos se confundem num emaranhado de riscos de novelo desenhados numa folha branca. Sim. Da mesma forma como quando conduzimos um carro durante vários minutos e de repente somos assombrados pela sensação de o ter feito às escuras – como é que cheguei aqui? – num misto de migração instintiva de animal e desprendimento intelectual do concentração visual, posso sem margem para dúvidas ter vindo por qualquer caminho de ter perdido a consciência disso da mesma maneira que facilmente esquecemos o que sonhamos segundos após termos acordado.
Será que tudo isto não passou de um sonho que conseguiu vir do desconhecido atormentar-me? Sinto-me aquecido por esta ideia como se ela fosse a mais pura das verdades. Num meio-termo qualquer deve estar a resposta. Esta dúvida razoável é o bastante para me trazer de novo até à realidade.
Suspiro de alívio. E tão depressa quanto me senti tão pequenino como uma formiga à mercê de uma pisada de gigante, sinto sorrir por dentro. Acalmo-me. Que parvalhão me saíste homem. Vai mas é trabalhar malandro. Troço de mim próprio.
Calmo e seguro, Abílio dirigiu-se para o quintal abandonando a sala-de-estar, passando pelo corredor, curvando à esquerda em frente à casa de banho, entrou na cozinha abriu a porta e desceu os degraus até ao logradouro caminhando para a estufa.
Fosse porque a claridade do dia era ainda uma criança, ou porque o seu medo bloqueasse a sua coragem de enfrentar os factos, quando ele passou em frente à porta da casa de banho não consegui ver a roupa que vestira no dia anterior que estava dentro do cesto. O cesto feito de verga cruzada afastada a dois centímetros estava tapado, mas os orifícios quadrados deixavam antever lá dentro a sua roupa completamente enlameada.
Lá fora ouvia-se agora o roncar cansado do motor a diesel da sua velhinha peugeot 504 break.
Agora que me acalmei estou pronto para mais um dia de trabalho. Já liguei o motor da minha velhinha carrinha 504 para que aqueça um pouco antes de começar a andar. A mecânica não é o meu forte mas há quem diga que o devo fazer e também não custa nada dar-lhe essa atenção. Enquanto ela ronrona ali ao pé do portão já de bagageira aberta vou até à estufa buscar os baldes de flores que preparara no dia anterior como sempre faço e volto para colocá-los justapostos à minha bancada desmanchada feita de dois tabiques e quatro caixas de madeira daquelas que são frequentemente usadas para colocar fruta. Vou de seguida certificar-me que tranquei a porta da cozinha. Está tudo ok. Avanço na direcção do portão grande, abro, entro na carrinha, engato a primeira, destravo o travão de mão e deixo-a quase deslizar até à serventia exterior para depois voltar atrás e fechar o portão.
A temperatura está um pouco fria para esta altura do ano, por isso ligo o aquecimento; de seguida o rádio; ponho o cinto e aqui vou eu fazer a venda na praça ao som de yellow dos Coldplay que está a passar na antena3. Não posso dizer que a minha vida pessoal se possa de alguma identificar com o poema da canção, mas que nos entra na alma, entra sem dúvida. Um dia como outro qualquer.
Antes de arrancar visualizo o caminho que apetece fazer até lá. Já me decidi. Vou descer a quinta da boneca até à rotunda do museu Barata Feyo e do museu da Cerâmica, viro á direita acompanhado já os limites do parque D. Carlos I à minha esquerda; passo pelas Faianças Rafael Bordalo Pinheiro logo ali à minha direita; sigo até ao Largo João de Deus; desce a estrada empedrada nas traseiras tocando o hospital termal à minha esquerda e a mata Rainha D.ª Leonor; subo á direita até ao antigo edifício da PSP e estou no topo Este da praça da fruta; depois contorno-a em direcção a Oeste pela estrada que a separa dos edifícios e estaciono para descarregar no canto inferior Nordeste, praticamente em frente ao banco Millenium e à velhinha farmácia central, um pouquinho antes da paragem dos autocarros.
Dito e feito. Já cá estou.
São agora 6 da manhã. O sol ameaça nascer no cimo da colina onde estão a encosta do sol e a mata da rainha. Devo ser para aí o terceiro a chegar hoje. Vejo lá em cima o Ti Manel e a Ti Maria a conversar encostados á sua camioneta olhando para uma dúzia de caixas cheias de frutas e legumes que já se encontram no chão da praça. Parece-me que estão à espera que a banca se monte sozinha.
Mais ou menos a meio está a dona Alexandrina sentada em cima de uma caixa de madeira encolhida e com a cabeça tapada com um lenço preto fitando sabe-se lá o quê. Também ela sem grande vontade de deitar mãos à obra. O seu marido não é lá muito amante da praça e de ter que trabalhar, mas pelo menos vai lá pô-la e aos produtos todos os dias de manhã para ir recolhê-la por volta das duas da tarde. E perdoe-me a dona Alexandrina que não me está a ouvir mas faz-me por vezes lembrar as putas da Espinheira. Vão lá pu-las e depois recolhe-las quando o dia está ganho. Haja camionistas.
Vê-se de tudo aqui. Ainda é cedo e por isso vou deixar-me um pouco mais aqui dentro da minha carrinha quentinha. São agora 6 e 1 da manhã. Rodo o botão do rádio para ouvir o que se passa pelo país. A Mafalda Veiga canta na R.C; A Manuela Ferreira Leite critica o governo na R.F.M; Toca o telefone na Antena 3 e começa a prova oral com o Fernando Alvim. E como me apetece começar bem o dia – à gargalhada – vou ficar pelo último posto.
A luz dos candeeiros altos e metálicos da praça doura ainda o ambiente nocturno pintando todos os edifícios com aquela cor ideal para o brilho e as sombras nas pinturas renascentistas.
Pouco a pouco vão chegando mais carrinhas, camionetas e creiam ou não, até há quem chegue ainda de carroça puxada a burro. A cidade e o campo unidos num singelo e arrebatador quadro da vida quotidiana.
De um momento para o outro, a praça anima-se de vida e a azáfama diária da montagem das bancas inicia-se ao som do arrastar das estruturas metálicas pelo chão calcetado e logo de seguida começa a sinfonia dos martelos cravando ferros e espigões entre as falhas da calçada que servirão não só de suporte às bancas como esticar os tectos de lona sobre a metros pagos por cada vendedor. Muitos, como eu, utilizam apenas chapéus-de-sol como tecto.
Como o zumbido das abelhas laborando, surgem também cada vez mais alto, absorvendo o silêncio anterior, os cumprimentos da ordem e as conversas do costume: - Bom dia! – Cá estamos. – Então a venda de ontem, correu bem? – (como se não se soubesse) – Não. A porcaria dos supermercados vai levar esta merda toda à falência. – Hoje se calhar não chove. – Então cá estamos para mais um dia? – É assim. É preciso é haver saúde para trabalhar. – Olha o Manel tem um toldo novo. E por aí fora; a lengalenga usual.
São já quase 7 da manhã e o vazio da praça deu lugar a uma confusão de carrinhas estacionado e arrancando depois das descargas. Os vendedores atropelam-se uns aos outros, pois está na hora de começar a aparecer os primeiros clientes madrugadores. Os velhinhos na sua maioria. Ninguém como eles para saber aproveitar todas as horas de luz de cada dia.
Como monto a minha banca em menos de cinco minutos deixo-me ficar mais um pouco dentro da carrinha. Abro o vidro do meu lado para lá descansar o cotovelo e consumo a movimentação habitual da manhã. Dá-me prazer observar tudo isto. Podia muito bem acordar mais tarde, mas sempre gostei de olhar o comportamento e as expressões das pessoas. É surpreendente como aprendemos imensas coisas com isso. Sei quem trabalha por gosto e quem o faz por obrigação. Quem acordou mal disposto ou o contrário. Quem vai provavelmente arranjar confusão, ou quem não está para aí virado. Observo, analiso, experimento e tiro as minhas conclusões na ilusão de ser um verdadeiro cientista.
Os meus vizinhos da loja das vergas já tem a sua venda quase montada e isso quer dizer que está na hora de ir montar a minha que fica mesmo ao lado da paragem do autocarro, debaixo de uma magnólia em flor, oposta ao café pastelaria Zaira, pois, não tardarão mais que cinco minutos e virão ter comigo pedir-me para dar uma olhadela pelas suas coisas enquanto vão estacionar a sua carrinha no parque de estacionamento que ladeia o monumento das Cinco Bicas, ali por detrás da antiga esquadra da GNR que mais tarde daria lugar à da PSP e agora quase ao abandono local. Depois de estacionar, virão para baixo e tomarão o seu pequeno-almoço no café Bocage já aberto que fica na esquina Nordeste da praça. Chegando cá tomarão eles conta da minha banca enquanto estaciono nas traseiras do velho termal, mesmo em frente à Igreja da Nossa Senhora do Pópulo, vindo depois para cima para beber o meu café no café Central, a jóia das Caldas, que fica mais ou menos ao centro Sul da praça, mesmo ao lado da C.G.D. Depois dou um pulinho ao quiosque que fica ao lado da pequena igreja de São Sebastião para comprar o jornal O Publico e volto à banca. São já 8 da manhã com isto tudo. A maioria dos lojas estão abertas ou a caminho disso. A confusão de carrinhas dos vendedores dá agora lugar a uma confusão sonora dos veículos que passam lentamente por aqui. Os táxis começam a chegar trazendo clientes e estacionando em frente ao Casaleiro. Também os autocarros começam o seu frenesim diário de descarga e carga de clientes. Os passeios enchem-se de transeuntes curiosos e outras pessoas apressadas a caminho dos seus empregos. O dia veio cheio de sol e a todo este turbilhão das gentes junta-se os pregões dos vendedores da praça numa imagem perfeita de cereja em cima do bolo. Mas é estranho como tanta confusão consegue ao mesmo tempo provocar-me tão grande e verdadeira sensação de paz interior.
Enquanto caminho até chegar á minha venda num percurso de mais ou menos cem metros, de novo, dou por mim a matutar no que me acontecera no dia anterior. Onde e quando é que comprei eu comprei a Gazeta e o jornal ontem? Os livros; devo tê-los trazido de casa à hora almoço. Uma espessa névoa isola o meu raciocínio da realidade, assim como a bruma da manhã ofusca o que está por baixo dela quando avistamos a paisagem de um qualquer ponto mais elevado.
Fui para o 120 pelo lado da rotunda da rainha D.ª Leonor. Bebi um café e uma água. Li os jornais. Conversei com a melga. Depois desci novamente a calçada até à rotunda. Será que levei os jornais e os livros, ou terão lá ficado? E quando me sentei no banco em frente ao lago debaixo da magnólia em flor? Bolas! Mas porque é que não consigo lembrar-me de coisas tão simples? Logo eu que dou tanta importância aos pormenores. Será que pousei ambos em cima do banco e me esqueci destes lá quando acordei atrapalhado à chuva e desatei a desbravar caminho para casa? Mas por onde é que fui para casa?
Parece que tenho medo de continuar o meu raciocínio, mas porquê?
Algo bloqueia de novo a minha razão como se o que quero saber não passasse de uma efémera palavra escrita a lápis e essa resposta fosse constantemente apagada pela poderosa borracha do esquecimento, que não é mais que o nosso receio de enfrentar o desconhecido.
De repente parece que só me lembro claramente de tudo o que me aconteceu a partir do momento em que acordei estranho esta manhã. Mas porquê? Só me faltava mais esta. Será que estou mesmo a ficar xoné? Se calhar, pelo sim pelo não, talvez seja melhor passar pelo centro de saúde.
Entretanto chego à minha banca. O Sr. Francisco e a Sra. Amélia já estão preparados e aguardam o primeiro cliente do dia.
Mais uma vez cumprimento-os: - Bom dia!
- Bom dia! Respondem-me ambos em uníssono.
A atmosfera da praça enche-se de odores de frutas, legumes, flores frescas, queijo e enchidos, pão e frutos secos, uma espécie de clorofila humana. Inspiro profundamente e sento-me de seguida na minha cadeirinha de pescador enquanto me preparo para começar a desfolhar o jornal para como sempre observar primeiras os títulos para de seguida aprofundar os que mais me atraíram.
O sol está cada mais brilhante e quente anuncia um bom ano para os veraneantes. Eram quase 9 horas da manhã e todos estávamos preparados para a desejada revoada do dia.
Para não variar muito eram 11 horas da manhã e já tinha vendido nove dos dez ramos que levara e dado o último à curvada dona Guilhermina, que o merecera hoje devido à aura de felicidade que transbordava apesar dos seus oitenta e cinco anos.
Sorriu dentro de mim por mais um calmo dia ganho e deixo transparecer essa felicidade para o exterior de tal forma que a minha vizinha do lado não se conteve e me disse num tom de simpatia e de leve inveja do meu sucesso, uma vez que apenas tinha vendido um cesto de verga que ainda por cima fora negociado um pouco mais barato devido à aborrecida regatisse de uma dondoca toda pintada e bem vestida que aparentava algumas posses, mas cujas saias cheias de nódoas indiciavam outra sorte:
- Já está. Não é Abílio?
Ah rapaz. Tu podias, era, começar a trabalhar connosco. Sempre ganhavas mais qualquer coisita. (ou talvez quisessem simplesmente a minha sorte do lado deles. Quem sabe?)
Uma proposta de trabalho é quase sempre bem-vinda, mas não para mim. Sinto-me realizado fazendo o que faço e muito menos me sentiria tentado de profissão a trocar pela possibilidade de poder ganhar. Nasci no meio disto tudo. Criar, cuidar e vender flores na praça foi sempre o meu sonho de criança. Por isso limitei-me a esboçar um sorriso de agradecimento e consideração com o qual desviei educadamente o rumo da conversa.
É verdade. Por hoje já estou despachado.
Tendo em conta que deixar a conversa pendurada por ali não era o mais correcto, fitei nos olhas a dona Amélia e com todo o respeito que ela merece disse-lhe, trocando as voltas ao verdadeiro significado daquilo que pretendia dizer; que nunca se saberia se um dia poderíamos ser sócios. Como pretendia, creio que ela entendeu que eu confirmava essa possibilidade quando na realidade, como expressei, - que nunca se saberia, - o que eu lhe disse é que essa oportunidade nunca se comprovaria. Caso contrário não me teria respondido:
- Seria um dia muito feliz para mim, meu querido filho. – Como me chamava muitas vezes ternamente.
Sorri de novo porque sinto no meu coração que as suas intenções são de facto verdadeiras e que desinteressadamente se desassossega comigo como se fosse seu filho.
Bem vou lá acima buscar a carrinha para carregar a tracalhada. Até já. Finalizei ao mesmo tempo que acenava com a mão e me afastava cruzando a praça da Républica na direcção do café Central, percorrendo talvez cem metros até chegar às traseiras do termal e à frente da I. N.ª Senhora do Pópulo. Depois faço o percurso do costume que não demora mais de dois minutos e estaciono mesmo ao pé do meu local de venda.
- Até já. - Pareciam ainda estar a responder quando cheguei, tão rápido fui e vim.
Estacionei. Carreguei no botão dos quatro piscas, pelo sim pelo não. Normalmente a PSP percebe que estamos a carregar ou descarregar e desde que não abusemos, compreendem. Mas depois daquilo a que assisti uma vez, nunca se sabe.

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sexta-feira, julho 17, 2009 - 09:01
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