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O Segundo Milagre XIII
XIII
Como já disse há pouco, observar os outros é uma coisa que gosto de fazer. E cumprindo esse ritual, uma vez estava estacionado em frente ao edifício das finanças e da câmara municipal na Praça 25 de Abril, em segunda fila, à espera da minha avó que tinha ido às finanças.
Estava a ouvir rádio com a janela aberta e com o meu braço apoiado na porta – não sei onde é fui buscar este hábito - quando olhando na direcção da Avenida 1.º de Maio que acaba na Estação de comboios das Caldas vejo pouco a pouco a imagem de um policia a crescer na distancia vinda na minha direcção. Não vinha ter comigo, claro. Vinha no meu sentido, mas do outro lado da praça, vindo no passeio do lado direito para quem olha da câmara para a estação, assisti toda a cena ridícula desenrolar-se como uma piada triste.
Um agente da PSP, de estômago dilatado, vinha com o seu livrinho de multas na mão ruma à Praça 25 de Abril. A dez metros dele estava, como ainda hoje está, uma dupla cabina de telefone público, abarrotando de drogados, como era costuma. O seu aspecto esfarrapado de mortos-vivos não deixa margem para dúvidas. Faziam telefonemas. Esperavam por qualquer coisa desatinados de meter dó. O Sr. Agente como bom e sério policia que era aproveitou para passar para o outro lado da rua os mesmos dez metros antes da passadeira. Não há dúvida que foi cauteloso a passar a estrada. Enquanto isso, no único lugar disponível para estacionar à volta do quadrado relvado que forma o centro da praça, um fulano num Opel Corsa creme bem velhinho, estaciona deixando os quatro piscas a piscar enquanto se dirige a correr ao banco Espírito Santo que fica na esquina em frente à cabina de telefone. O polícia viu estacionar enquanto se dirigia naquela direcção. O fulano entrou no banco ao mesmo tempo que o agente inventava uma nova passadeira diagonal até ao quadrado da praça. O quadrado estava com o estacionamento esgotado, digamos, para aí uns vinte automóveis. Para não se cansar muito, deduzi, percorreu apenas os quatro carros que ali estavam estacionados, no topo Oeste da praça, em infracção diga-se de passagem e tomou a decisão mais justa que podia tomar e que vi com estes olhos que os bichos hão-de comer: Admirou o Mercedes classe A e BMW 325 e acto contínuo multou uma carrinha de caixa aberta de marca Toyota e claro está o velhinho Opel corsa creme. Enquanto o diabo esfrega um olho voltou para onde tinha vindo exactamente pelo mesmo trajecto até desaparecer do meu campo de visão.
Não tive oportunidade de ver a desilusão do fulano que tinha ido ao banco porque entretanto a minha avó chegou e fomos embora.
Se calhar é por estas e por outras que nunca nos poderemos sentir verdadeiramente seguros.
Com os quatro piscas ligados e com um olho no burro e outro no cigano, carreguei rapidamente o meu material. Despedi-me amavelmente dos meus vizinhos e rumei a casa tomando a rua Diário de Notícias que sobe por entre a Encosta do Sol e Mata Rainha D.ª Leonor.
Num instante estou perto de casa. Abandono a estrada de alcatrão que acaba cinquenta metros a norte da minha casa, pois moro praticamente num beco. E realmente não seria fácil alcatroar aquele último lanço de estrada uma vez que se afunila desaparecendo num carreiro que segue na direcção das várzeas e da mata, impossibilitando actualmente manobrar aqui máquinas de grande porte. Até não me posso queixar. Há uns anos as estradas eram quase todas de cascalho e brita e nisso, pelo menos, melhorou-se bastante. Estou agora à porta de casa. A rotina do dia-a-dia. Saio da carrinha; abro o portão; entra Ana carrinha e estaciono-a na parte de dentro do quintal; volta a sair da carrinha e fecho o grande portão outra vez.
Está um calor de torrar pão de forma ao ar livre. Retiro os baldes vazios de dentro da carrinha e dirijo-me à estufa para inspeccionar as flores e verificar se é necessário aumentar o fluxo de água no sistema de rega gota-a-gota. Está um calor abafado cheirando a clorofila primaveril e quase não se consegue respirar aqui dentro, mas as plantas não parecem desidratadas, por isso abro todos os respiradores da estufa, o que me parece ser mais do que suficiente. Deslizo até à rua e subo as escadas de madeira que me colocam à altura do depósito de água ao lado da estufa e verifico o seu nível. Está mais de meio. Mesmo com este tempo durará ainda cerca de quatro ou cinco dias. Penso em fazer já o corte de flores para a venda de amanha, mas parece-me de facto demasiado quente para o fazer. Perderiam concerteza a sua viçosidade. Por isso decido fazê-lo mais à tardinha quando a temperatura descer uns quantos graus. Descansado que estou em relação às plantas na estufa, dirijo-me à torneira do pátio que está encostada ao muro perto da porta cozinha e mesmo sabendo que vou desperdiçar água, pois não é a hora certa para a rega (a maior parte do liquido vai evaporar-se antes de chegar ao seu destino) abro a torneira e obstruindo três quartos o diâmetro da ponta da mangueira por onde passa a água fresquinha, crio um chuveiro improvisado com o qual dou forma a um leva aguaceiro e acto continuo faço chover por cima de todas as outras plantas do quintal que se encontram por cima das bancadas de madeira. Tudo tratado. De seguida dirijo-me à cozinha para preparar uma refeição ligeira pois a fome começa levemente a fustigar-me o estômago. Antes agarro uma faca de cozinha da gaveta dos talheres e vou até lá fora ao terreno colher uma alface quentinha mas não menos apetitosa. Volto para dentro e decido fazer uma salada russa à portuguesa para comer. Duas batatinhas, duas cenouras, ambas cortadas em quadradinhos do tamanho de torrões de açúcar. Coloco tudo dentro de uma panela de água já a ferver e coloco dois ovos e sal q.b. na mistura. Depois de cozido, passo a mistura pelo escorredor de legumes, descasco os ovos, adiciono duas latas de atum bom-petisco; três colheradas de maionese calvé; envolvo tudo com o garfo; sento-me por fim à mesa a comer regando tudo com Coca-Cola, acompanhando a refeição com um deliciosa alface, temperada com muito azeite e vinagre.
Ah. Suspiro satisfeito depois de encher o bandulho. De seguida vou até ao lava-loiça e lavo o prato, a saladeira, os talheres e o copo. São 13:15 da tarde. Olho para a televisão da cozinha, penso na da sala. Esboça-se uma lânguida vontade de me deitar no sofá a ver televisão sem fazer ou pensar fazer nada da útil, mas contenho-me. Nada pode ser mais entedioso que isso.
Tratado, dirijo-me para a casa de banho para lavar os dentes. Abro o pequeno móvel de espelho e de lá retiro a minha escova de dentes, na qual coloco uma ervilha de paste de dentes e esfrego generosamente ao mesmo tempo que me olho ao espelho e sou invadido por um odor estranho. Que cheiro é este? Continuo a lavar os dentes e o meu nariz vai experimentando o ar na esperance de localizar e identificar a fragrância moribunda. Acabo de lavar os dentes, passo a escova por água e lavo a boca. Bolas. Mas que cheiro é este? Não me digas que o esgoto que vai para a fossa está entupido outra vez. É pá, não! Só me faltava mais esta. Ter que ir mexer na merda. Penso enquanto acabo de me secar e coloco a toalha no toalheiro.
Armo-me em detective forense e fechando os olhos inspiro todo o ar que posso para os meus pulmões e giro ao mesmo tempo a cabeça em todas as direcções dentro da casa de banho à espera que algo no ar me indique uma direcção. Parece-me não só ter descoberto que o odor não é bem o de o cheiro a fossa e também que a origem desse cheiro está próxima de mim. Cheira-me a lama. Parece o cheiro de terra húmida com rãs esfregando-se nela. Mas que estranho. Parece que me estou a sentir meio tonto. O que é isto?
Volto a fechar os olhos. Aspiro o ar à minha volta e agora como um cão farejando uma pista só para si visível, desloco-me lentamente na direcção da prova. Numa imagem em câmara lenta, bato com o focinho no cesto da roupa. Está ligeiramente escuro. Não consigo distinguir ao certo o que lá se encontra, mas estou certo que é aqui a fonte. Com uma expressão de; mas-o-qué-que-temos-aqui; levanto suavemente a tampo do cesto da roupa não vá saltar daqui algum leão. Não. É a última coisa que me lembro de pensar. Estou como se estivesse morto.
Ali dentro estava o que o que ele mais temia poder estar. O seu pior receio ganhava de repente corpo e esse congelava-lhe a mente. Tudo o que lhe acontecera no final da tarde anterior fora de alguma forma real. A prova estava ali diante dos seus olhos. A roupa que usou ontem ainda ali estava enlameada de fresco e tresandando a manta-morta. A visão e o reconhecimento da verdade foram violentíssimos e como quem recebe uma descarga de 220vl inesperadamente assim reagiu Abílio.
Ao mesmo tempo que esse - não! - de choque e negação saia desesperado e surdo de toda a sua alma, todo o seu corpo saltou como uma mola no sentido oposto onde se encontrava. Num salto quase paranormal, Abílio auto-impulsionou-se cerca de dois metros para trás, saltando por cima do pequeno murete de cinquenta centímetros de altura e que serve de apoio de assentamento da banheira, acabando por bater com a nuca na parede de azulejos do banho caindo inconsciente como um boneco de trapos no interior da gelada banheira.
- Estática. Vejo estática.
Ali ficaria, quieto, calmo, de barriga para cima com as pernas ligeiramente flectidas e se não fosse a razão que o levara a estar ali e o aparato da queda, poder-se-ia pensar que sonhava tranquilamente na paz dos anjos.
Eram 20:00 quando uma voz grave e austera e ao mesmo tempo meiga e doce começou a ecoar como uma espécie de chamamento divino, ou o que fosse, dentro da alma adormecida de Abílio.
Abílio? Abílio? Abílio?
Não era perceptível saber quem estava a reagir ao chamamento, se o corpo, ou a alma. Mas, logo de seguida o seu corpo dava sinais de vida. Um ligeiro tremor aqui e outro ali.
O seu despertar parecia eminente e a voz continuava terna como uma mãe:
- Abílio. Acorda meu menino. Acorda. Está na hora. Acorda Abílio.
O seu corpo reage por fim. Levanta-se quase como se sem gravidade e vira-se na minha direcção. Não me vê. Mas eu olho-o nos olhos. É estranho. É como se o seu olhar já não estivesse aqui ao pé de mim. Para onde está ele a olhar? Parece estar noutra dimensão. O silêncio é total. É como se o seu olhar trespassasse a matéria para a observar molecularmente. Como se toda a escuridão da vida fosse um caminho iluminado pela sua visão. Só pode estar em transe pós-traumático, ou qualquer coisa assim. Penso.
Levitado. Sai da banheira absorto e como um sonâmbulo avança na direcção do quintal. Vai à estufa, agarra numa tesoura e com ela corta um ramo de rosas brancas do quintal. Com uma casca de vime ainda verde que estava ali à mão ajusta com ternura todos os caules fazendo um belo ramo branco e verde cuja luz nocturna já instalada no ambiente não conseguia ofuscar. Pousa de seguida o ramo e a tesoura em cima da bancada na rua e dirige-se até à mangueira do pátio e depois de rodar a torneira rega abundantemente todas as flores do quintal acabando por encher também o depósito que rega as outras plantes da estufa.
Volta de seguida para dentro de casa empunhando o ramo de rosas na mão esquerda e com a direita sobe todos os estores da casa e abre todas as janelas de casa. Sai de novo para o quintal deixando a porta da cozinha aberta e vai fazer o mesmo com o portão das traseiras. Depois dirige-se por fim ao portão lateral. Abre-o e avança na escuridão sem nunca olhar para trás. Vira à direita na frente da sua casa e toma o caminho do carreiro que o leva até à mata a pouco mais de 500 metros dali.
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