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Por Um Minuto

Introdução

Qualquer semelhança entre os factos relatados neste conto e a realidade… não é coincidência.
Pode custar a acreditar, eu sei, mas todos os eventos que serão descritos em diante aconteceram mesmo. Talvez não todos de seguida, pois claro, nem palavra por palavra como estão relatados, é certo, mas garantidamente que aquele dia de 1 de Dezembro de 2003 ia reservar uma história digna de ser passada para papel e contada diversas vezes nos tempos vindouros. No mínimo para se ver como não é preciso fantasiar demasiado na nossa vida, ou tentar forçar alguma ficção que substitua a sua suposta monotonia. Às vezes basta a realidade para nos fazer andar às voltas na nossa cabeça, assombrados com o rumo que as coisas podem levar e como é possível este ou aquele acontecimento.
Todas as personagens que aparecem na história são igualmente verídicas, mas sem os nomes verdadeiros e com um ou outro ajuste (praticamente desnecessários). Um grande obrigado a todos eles, nem que fosse por simplesmente existirem. Sem eles esta história não seria possível.

Capitulo 1

Parecia que Bruno estava a pensar quando se estava a preparar para sair de casa, junto ao espelho da entrada:
"Hum... Este cabelo aqui está fora do sítio…"
Não que este fosse vaidoso, mas quem tem cabelo comprido e o usa corrido sabe o quanto é complicado que este tenha um aspecto decente, ou que pelo menos fique alinhado. E Bruno tinha um metro de cabelo no mínimo.
Não que Bruno tivesse também um aspecto muito decente bem vistas as coisas, se considerarmos o "socialmente bem aceite". A sua roupa inteiramente negra de metaleiro, com uma tshirt de Cradle of Filth do dia anterior vestida do avesso, a barriga de cerveja, mais barba farta… Não era certamente a gadelha bem penteada que ia fazer diferença.
– Bolas, acho que... – Bruno consulta rapidamente o relógio de pulso – Já estou atrasado! Eu sabia que não devia ter fumado aquela há bocado.
É verdade! Para além desses aspectos, a sua alcunha era Cachimbo. Não por adorar o sabor de tabaco quando esfumaçado por esses maravilhosos utensílios adornados, mas sim porque parecia um a fumar derivados de marijuana. Para exemplificar esse facto, neste momento tinha de ir apanhar o comboio da margem sul do Tejo para Lisboa, para ainda apanhar o metro, para se encontrar com o seu amigo João na Gare do Oriente, para depois apanhar o último comboio da noite para a terrinha. Ainda assim, pensou em calmamente fumar mais uma ganza, até porque (segundo o próprio) "Não tem piada nenhuma viajar sem estar mocado." Sinceramente com esta eu até posso concordar: viajar de comboio regularmente sempre para o mesmo sítio pode tornar–se tão monótono que só mesmo com a moca é que poderá ter alguma piada. Mas, por vezes, poderá não ser necessário tanto…
– Não me apetece muito, mas vou ter de correr para a estação.
Eram 22:25, o comboio era às 22:30, e Bruno geralmente levava… um quarto de hora a chegar à estação do Pragal. E Bruno não era conhecido propriamente pelos seu dotes atléticos, se bem que se diz que quando era puto estava sempre no recreio a jogar futebol. Tentou se relembrar desses tempos (enquanto tirava o cabelo de frente da cara) e correu o mais rápido que lhe era possível.
O relógio marcava 22:30 exactas quando Bruno chegou esbaforido à estação.
– O comboio da linha três destina–se a Lisboa, e vai partir dentro de momentos – ouviu Bruno ao entrar na estação.
– Ainda vou conseguir! – pensou para si mesmo.
Comprou o bilhete prontamente na máquina com o Multibanco e subiu as escadas rolantes a dois degraus de cada vez, para chegar à plataforma de embarque ofegante e…
– PPPPIIIIIIIIIII!!!
Há sons que são indistinguíveis, e este era um deles: O som agonizante de quando vemos partir defronte dos nossos olhos o comboio que queríamos apanhar. Muitas vezes ouvimos dizer "Oh, é só mais uns minutos…" e nem nos apercebemos da diferença que pode fazer um só minuto, ou mesmos segundos, na nossa vida.
– Merda, não cheguei a tempo só mesmo por um minuto… – murmurou Bruno, como que a dar–me razão.

Capítulo 2

– PPPPIIIIIIIIIII!!! – berrou uma lagarta metálica que alguém um dia se lembrou de chamar comboio.
– Bem, até escusava de ter vindo tão cedo… mas mais vale cedo que tarde – disse João para si próprio. Era–lhe característico chegar sempre mais cedo a sítios combinados, a paragens de transportes, a festas, o que fosse. Chegar atrasado só mesmo em último caso, pois João não gostava de perder tempo desnecessariamente.
Neste caso concreto, o comboio da linha de Cascais só partia de Algés às 22:30, e João já tinha chegado calmamente à estação às 22:20.
Não pensem em João como uma antítese de Bruno, apesar do cabelo curto, corpo atlético, mais alto que a média, e com roupas de cores garridas. Na verdade, estes até se davam muito bem, sendo amigos desde que Bruno tinha entrado para a banda de João, e desde então partilhado grandes momentos de folia, até mesmo nos seus projectos paralelos. Assim, como vêem, tinham a música a ligá–los… se bem que curiosamente também não tivessem assim muitos gostos em comum. E como praticamente todos os músicos (e praticamente 70% da juventude portuguesa, não sendo esta uma sondagem oficial), não dispensavam um charutinho de vez em quando. Embora Cachimbo, como indica a alcunha, já tinha ultrapassado o consumo habitual de João (que também era conhecido por Ciente, ninguém sabe muito bem como nem porquê, mas tinha algo a ver com estas histórias de carochos).
João sacou do seu discman para passar mais rápido a viagem de treze minutos até à próxima mudança de transporte, colocando um CD de Tool. Assim bastava praticamente ouvir uma música para passar esta primeira parte da viagem. Vocês poderão pensar "Discman? Mas isso é do século passado". Mas João, se bem que fosse estudante de Ciências e Tecnologias de Comunicação, ainda respeitava o material da velha guarda. Ou isso ou não lhe apetecia gastar dinheiro em comprar uma coisa nova para algo que uma velha já fazia, que neste caso até era só passar o tempo. Geralmente até pegava num livro e ia lendo até chegar à terrinha, o tempo passava muito mais rápido, mas como esta era daquelas viagens em que até tinha companhia a partir de certo ponto, nem valia a pena.
– Hum… estou deserto para chegar à terrinha…
É difícil alguém perceber complemente este sentimento de ir passar um fim–de–semana relaxado à terrinha sempre que possível sem ter estado alguma vez na mesma situação. Digamos que parece que cada fim–de–semana são dias de férias e não uns meros sábados e domingos que se repetem cinquenta e duas vezes por ano.
João saiu do comboio no Cais do Sodré e começou a dirigir–se directamente para o metro como era hábito. De repente dos auscultadores parecia haver uma melodia escondida numa música que João já conhecia muito bem. Se bem que da banda Tool até se poderia esperar tal coisa, o facto de parecer ter um animal enclausurado no bolso fê–lo perceber que era o seu telemóvel que estava a tocar.
– Então Cachimbo, passa–se algo?
– É pá… perdi o comboio da margem sul.
– O quê? ‘Tás a gozar?
– Népia meu!
– E não tens outro?
– Tenho. Às 23h.
João afastou o telemóvel do ouvido, olhou para o relógio que tinha no pulso direito, fez umas contas rápidas de cabeça e voltou prontamente a colocá–lo ao ouvido:
– O nosso comboio sai de Lisboa às 23:20. Não tens tempo para chegar lá!
– Pois não – respondeu calmamente Bruno.
– Porra! – exaltou–se João – E agora?
– É pá, pode ser que ainda dê, vemo–nos lá na estação do Oriente.
– Não dá nada. E agora?
– Pode ser que sim, até já, vá…
– É pá, espero bem que dê! É o último comboio! Se não apanharmos este como fazemos?
– Vá, até já, vou já lá ter... – e Bruno desligou o telemóvel.
E assim via–se João, com uma margem de vinte minutos para apanhar o comboio, encurralado pelo atraso de Bruno, sem poder fazer nada no tempo livre a não ser… desesperar. Não que João fosse de desesperar, Não fazia o seu estilo. Tal como nesse momento sentia que devia estrangular Bruno quando este chegasse, mas também não o iria fazer. Não fazia o seu estilo. Se bem que só pensava porque é que Bruno não tinha tido mais atenção ao tempo como ele teve, sabendo que aquele era o último comboio e que não o podiam perder de jeito nenhum. Isso sim, já fazia o seu estilo. Mas não o de Bruno.

Capítulo 3

"Bem, são vinte e três em ponto, tenho vinte minutos para comprar um bilhete e aquele palhaço vinte minutos para vir da margem sul até aqui" – pensava João enquanto observava o (pouco) movimento das escadas rolantes da saída do Metro para a estação de comboios da Gare do Oriente.
Os minutos foram passando, vagarosamente, com João a tentar abstrair–se de tentar controlar o indomável tempo e a resignar–se ao facto de o comboio estar irremediavelmente perdido e a sua ida para a terrinha se estar a complicar um pouco demais para seu gosto.
– Atenção a todos os passageiros: vai sair neste momento o comboio da linha um com destino a… – e João não queria ouvir mais, o resto já sabia. Dirigiu–se aos horários à procura de alternativas, pois sabia que tinham a estação do Entroncamento pelo caminho, que já não ficava muito longe, e que havia vários comboios a parar lá. Se conseguissem que alguém os fosse lá buscar estavam safos.
E realmente havia um comboio que se podia apanhar. Se bem que tivesse um ligeiro problema.
– Isto não pode estar a acontecer… alguém me introduziu num filme de comédia negra sem dar por isso – desesperou João.
Bem, pelos menos este comboio Bruno não deveria falhar. Se bem que foi preciso esperar até às 23:45 para que surgisse uma mancha negra a subir pela escada rolante.
– Com que então "pode ser que dê"? – cumprimentou João amigavelmente, apesar de tudo. E concluiu – Não me respondas. Uma palavra da tua boca e sou capaz de te matar!
– Tudo bem Ciente? – disse placidamente Bruno. Como se pode ver, não eram pessoas para se chatearem – Então, que alternativas temos?
– Existe um comboio para o Entroncamento… às 00:50! – respondeu João com ar de "a culpa disto tudo é tua".
– Ena, que seca. E depois como é que saímos de lá?
– Olha, podes pegar no teu telemóvel e começar a tratar disso – respondeu João, desta vez a insinuar claramente "a culpa disto tudo é tua".
– Eu até fazia isso, mas gastei o resto do saldo a telefonar–te há bocado. Emprestas–me o teu telemóvel?
– Oh meu Deus, é preciso ter uma lata… – suspirou João enquanto o entregava a Bruno.
Começaram então a percorrer a lista telefónica dos amigos que tinham carta e igualmente carro, que não eram muitos. A primeira tentativa foi infrutífera, ninguém respondeu. A segunda seguiu pelo mesmo caminho. À terceira ouviram a familiar voz monocórdica gravada a avisar que o número não estava acessível. Na quarta também não tiveram melhor sorte…
– Não é possível – disse João com a mão na cabeça – Isto começa a parecer um filme de Hitchcock, é uma grande conspiração contra nós.
– Não sejas dramático, há que ver as coisas pelo lado positivo.
– E qual é lado positivo disto?
– Então… dá tempo para fumar um charutinho, o que é que havia de ser? – disse Bruno a piscar o olho.
João esbugalhou muito os olhos, sem querer acreditar no que tinha ouvido. Mas foi durante pouco tempo, depressa se apercebeu que Bruno tinha razão.
– OK, trata lá disso e… não é preciso teres pressa não é verdade? – e piscou–lhe o olho de volta.
– Já venho então. Sai uma sopa levezinha, que também já fumei uma antes de sair de casa…
– O quê? Não me vais dizer que foi por isso que te atrasaste! – palavras seguidas por um silêncio de Bruno e outro esbugalhar de olhos de João – Vai lá vai, que é melhor para ti…
E Bruno lá foi para essa espécie de segunda casa dos carochos: as casas de banho públicas.

Capítulo 4

– Esta festa está altamente!
– O quê?!?
Gonçalo nem ouviu que Duarte não o ouviu. Continuou a abanar o capacete ao som da música. Duarte também não ligou muito ao facto, encolheu os ombros e voltou também ele a abanar a carola, numa cadência perfeita que parecia combinada entre todos os presentes, a marcar o tempo da música. Não é assim qualquer festa com música aos berros? Uma pessoa está lá é para curtir o som, e não propriamente para conversar.
No caso desta festa ainda seria mais assim, pois esta envolvia concertos ao vivo de bandas de garagem, logo o volume do som violava muito provavelmente qualquer nível aconselhado por organizações de saúde ou legais. Dir–se–ia mesmo que a associação juvenil onde decorria o evento estava prestes a desmoronar–se.
Mas Gonçalo tinha razão, e Duarte mesmo sem o ouvir partilhava a mesma opinião. Realmente a festa estava um espectáculo, com um óptimo ambiente, e com as bandas a corresponderem à altura, a demonstrarem como existem tantas por aí ocultas bem melhores que muitas que nem sabemos como vendem álbuns aos milhares. Aliás, no dia seguinte estes nossos camaradas juntamente com Bruno iriam actuar também neste sítio. E depois, a festa até tinha um recinto exterior onde aí sim, até se podia conversar, para além de apanhar ar, ou fumo, consoante a preferência, ou estado, da pessoa.
Mas no interior não havia espaço para tais actividades, nem sequer muito espaço físico existia mesmo, pois o moche começava a tomar formas gigantescas. Já se tornava difícil respirar, quanto mais ouvir o que a pessoa do lado nos dizia. Então ouvir ou sentir o telemóvel caso alguém fosse ligar era impossível…

Capítulo 5

– Então, ninguém atende?
– É pá… não!
João e Bruno tinham acabado de se sentar frente a frente no comboio um pouco mais "relaxados" com toda a situação.
– Bem, que grande encrenca. E se chegamos lá sem ninguém para nos ir buscar?
– Oh! Achas que sim? Havemos de conseguir apanhar alguém entretanto – como se pode ver, Bruno também não era de grandes preocupações – Olha, vem lá o revisor, saca aí do bilhete. Onde é que eu pus o meu?
João tirou rapidamente o bilhete do terceiro compartimento a contar de baixo da sua carteira, no mesmo sítio onde o guardava sempre junto ao cartão jovem. Bruno, por seu lado, vasculhou todos os seus bolsos freneticamente até finalmente se deter no bolso direito do casaco, e empalidecer.
– Então, não o encontras?
– Hum… não é bem isso…
E começou a tirar lentamente o bilhete do bolso. Pelo menos assim parecia, mas a João tinha a sensação que ele estava meio incompleto, pois só via metade na mão de Bruno. Este voltou a meter lá a mão e saiu mais um quarto do bilhete. Montado o puzzle, deu para perceber que faltava precisamente a porção que costuma faltar quando se usa cartão para fazer o filtro de uma ganza. No estado em que estava, João não conseguiu deixar de mandar uma sonora gargalhada.
– Cachimbo, não posso querer, estás todo queimado!
– Oh! Julgava… julgava que este era o da semana passada… – tentava Bruno justificar–se ao mesmo tempo que a sua cara ficava num tom mais rosado.
– É isso que vais dizer ao gajo?
– É pá… se for preciso emprestas–me dinheiro para comprar outro bilhete?
– Claro pá! – João abriu novamente a carteira e olhou para o seu interior – se eu tivesse dinheiro…
– Os vossos bilhetes, faz favor! – anunciou o revisor, com uma entoação parecida com a dum ladrão do faroeste a dizer "A bolsa ou a vida!".
Tentando reprimir o riso, João mostrou–lhe o seu bilhete, tal como a senhora que estava a seu lado. O revisor virou–se então para o lado de Bruno, e logo arqueou a sobrancelha direita.
– Hum… houve um problema… hum… com o meu bilhete… – balbuciou Bruno.
– Então isso é bilhete que se apresente? – resmungou o revisor, como se tivesse à espera de ver uma caneta Parker e lhe tivesse sido mostrada uma esferográfica descartável Bic.
João já começava a mostrar indícios de rebentar, ainda para mais quando reparou no olhar reprovador que a senhora a seu lado começava a lançar na direcção de Bruno.
– Pode ser que ainda tenha para aqui o resto noutro bolso… – disse este, mesmo sabendo que tal era impossível. O resto do bilhete neste momento jazia num cinzeiro público da estação de comboios donde tinham saído. O revisor encolheu os ombros e virou–se para ver os restantes bilhetes da carruagem.
Nesse momento, João finalmente rebentou e largou as gargalhadas que já deviam ter saído.
– Cachimbo, só mesmo tu… – disse enquanto agarrava a barriga.
O revisor entretanto voltou.
– Então, achou o resto dessa amostra de bilhete?
– Não, não sei mesmo onde está… – respondeu Bruno, com a face agora bem para lá do rosado.
– Jovem, esqueça isso, tenho mais que fazer do que estar aqui à sua espera. A sua sorte é que hoje estou bem disposto e lhe aceito "isso", mas para a próxima… não vou ser tão condescendente – atirou o revisor, virando costas. Bruno respirou de alívio.
– Ainda bem que ele estava de bom humor! – ironizou João – Principalmente porque não tínhamos dinheiro para pagar o bilhete.
"E não seria esta mulher a meu lado que o iria emprestar" pensou vendo que o olhar reprovador tinha passado para um olhar de desagrado.
– Está calado pá, que grande cana.
– Oh! Achas mesmo que sim? O gajo não percebeu o que aconteceu ao bilhete. Já vi gajos a safarem com mais. Olha, até já vi gajos depois de darem cana serem catados, darem ainda mais cana, e a safarem–se na mesma. Olha, como o Jocas na Figueira da Foz!
– O Jocas? O que é que lhe aconteceu?
– O quê? Não sabes a história do Joaquim? – João olhou de esguelha para a senhora a seu lado que lhe respondia com um olhar fulminante de beata profissional. "Oh, que se lixe, a mulher tem lá alguma coisa a ver com a nossa vida".
– Jovem! – disse imitando o revisor – Tenho de te contar a história do Jocas se tu não a conheces!

Capítulo 6

A história do Jocas já era praticamente um clássico da terrinha.
Tudo se passou numa bela tarde de verão no décimo primeiro dia do mês de Agosto no (parece já longínquo) ano de 1999, na Figueira da Foz. João, Jocas, Polvo (alcunha originaria de uma tarde agitada numa piscina segundo consta), e também Duarte e mais outros amigos encontravam–se aí a desfrutar da sua juventude nas chamadas "Férias de Verão" e nesse momento dirigiam–se pelo caminho habitual do parque de campismo para a praia.
Mas tudo parecia indicar que nesse dia iria acontecer algo que não ia ser habitual. Para começar, nesse dia ia haver um eclipse solar, um dos mais visíveis em território português nos últimos tempos, acontecimento que iria demorar a repetir–se.
– Anda lá Jocas, quero chegar à praia a tempo de ver o eclipse – disse João com os óculos de protecção para ver eclipses já enfiados na cabeça.
– Certo, o Duarte e o resto da malta já lá está – disse Polvo.
– Que pressa! Se a Lua fosse como vocês o eclipse já tinha ocorrido.
– Nem digas isso! Nunca vi nenhum e vai demorar anos até ter outra oportunidade. Para não falar que é simbólico, é o último do milénio, e nunca se sabe bem o que isso pode causar… – João fez um sorriso trocista, e depois reajustou os óculos especiais – Olhem, já está a começar! Vamos já aqui pelo atalho.
– Boa ideia. Este sítio é mesmo bom para fazer um charutinho – disse Jocas a piscar um olho.
– Bolas pá, não temos tempo, fazes depois na praia! – desesperou João – E para quê já outro? Ainda estou meio a andar de lado com aquela sauna na tenda.
– Hummmm – relembraram–se com ar deliciado Jocas e Polvo – Mesmo assim, não chegou, preciso de recarregar "energias" – disse Jocas piscando o outro olho.
– Eu também não acho mal… – assentiu Polvo.
– Vocês são malucos! Ainda por cima, que belo sitio ideal o vosso. Isto pode ser um atalho mas vê–se tudo da rua principal! – continuou a teimar João.
– Amigo, como é que tu poderás desfrutar duma experiência cósmica destas sem o abrir da mente causado pelo THC? – indagou calmamente Jocas – Além disso eu sou rápido, faço isto num instante, ninguém dá por nada, nem mesmo tu.
– Está bem, está bem – assentiu João ao ver que a argumentar um assunto desta natureza com aqueles dois entendidos na matéria só os ia demorar mais – Despacha–te lá que vou ali mais acima para conseguir ver melhor.
Ainda mal João tinha dado uns passos já Jocas tinha tirado todo o material necessário da mochila e encavalitado na orelha direita um filtro, na esquerda uma mortalha, e com um isqueiro na mão direita iniciado os trabalhos ao derreter o haxixe, com Polvo a segurar o resto da matéria–prima.
O pior foi que também não demorou muito para um indivíduo que parecia ter saído directamente das reservas dos Rangers, de colete, tatuagem no ombro e óculos escuros, surgir de repente de bicicleta, estacando ao lado de Jocas com um peão.
– O que é isso rapaz, um traço?
Jocas virou–se espantado (deixando escapar a mortalha da orelha, que pairou no ar durante uns momentos como uma pena) para a personagem surgida do nada, e depois respondeu o mais naturalmente que possam imaginar, perante o olhar aparvalhado de Polvo:
– Não, é uma ganza mesmo.
Nisto o Ranger saca de um walkie–talkie que tinha escondido à cintura e murmura umas palavras incompreensíveis, mas não era difícil de perceber que não podia ser coisa boa. Jocas e Polvo rapidamente largaram grande parte do que tinham na mão para o monte de terra que tinham à altura da sua cintura.
– Tu aí rapaz – gritou o ranger para João que ainda nem tinha percebido o que estava a acontecer – anda cá que isto também contigo.
– Ora bolas, mas eu só quero ver o eclipse… – resmungou entre dentes enquanto descia.
A chegada de João ao local de crime coincidiu com a chegada de um Renault 14 vermelho ao local, do ano de 1978 (um "la poire" como ainda lhe chamam os franceses).
"Mas quem são estes, uma milícia formada por tropas reformados?" pensou, ao olhar para o veículo, para a bicicleta e para as personagens que tinham encetado conversa entre si.
– Então, que é que temos aqui? – perguntou o condutor do carro que se identificou supostamente como policia através de um crachá que mal se viu, à boa maneira de detective de um filme rasco de série B.
– Este puto tinha isto aqui, apanhei–o mesmo em flagrante.
– Esta canalha não aprende mesmo.
– Pois é, esquecem–se que há muitos como nós à paisana – disse o Ranger wannabe da bicicleta a olhar para eles com um olhar satisfeito.
"Sim, com esses meios de transporte e esse aspecto nunca pensaríamos que isto fosse policia" pensavam em uníssono Jocas, João e Polvo.
– Bem puto, deixa lá ver a tua identificação.
Jocas tirou a carteira do bolso da frente da mochila, sacou do Bilhete de Identidade, e entregou–o ao condutor do carro.
– Sabe, na verdade já fiz os dezoito, por isso não sou bem um puto.
– Boa, quer dizer que podes ser julgado como um adulto – respondeu o Ranger da bicicleta, provocando uma gargalhada nos colegas, à qual se juntou.
"Que belo comentário Jocas" pensou João para si mesmo. Mas Joaquim não desarmou.
– Com certeza, e também sei que isso que vocês têm era meu, e só meu. Os meus amigos não têm nada a ver com isto, não é nada demais. Aliás, não é nada mesmo, dá para uma ganzita minúscula que foi tudo o que eu arranjei para curtir o eclipse. Agora vamos arranjar problemas por causa disso?
"Vamos?! Incluindo os bófias? Mas este gajo tem uma lata descomunal!"
– Queres o quê, que nós "fechemos os olhos", é? – perguntou a única pessoa que não tinha dito nada até ao momento, o ocupante do lugar do morto do Renault.
– Por exemplo. Ou acham que vale mesmo a pena arranjar–nos chatices por causa disso?
"Este homem não tem lata, é louco!" concluía João com o decorrer da conversa. Olhar para Polvo também não o descansou muito porque este parecia que ia rebentar a rir, ou pelo nervoso, ou ainda pelo efeito da sauna do parque de campismo.
O que era certo é que os homens pareciam mesmo estar a considerar o que Jocas tinha acabado de dizer. Começaram a murmurar entre si e parecia mesmo ouvir–se as palavras "ele até tem um pouco razão, realmente isto não é nada". No auge da sua confiança, Jocas jogou a cartada final.
– Não é verdade meus senhores? Isso é tudo o que temos e não é nada. Se quiserem revistem–me todo, os bolsos – disse já a revirá–los do avesso – a mochila… querem ver a mochila? Não tenho cá nada – Jocas tirou a mochila das costas e quase que a enfiava pela janela do carro. Isto pareceu convencer definitivamente os Rangers de trazer por casa.
– OK rapaz, já percebemos – disse o homem que estava na bicicleta. Olhou durante uns momentos para a sua mão onde ainda estava a prova do crime e atirou esta para o meio do mato – Mas que vos sirva de lição. Há mais colegas como nós aí à paisana e um dia destes vocês lixam–se por causa de uma coisita de nada.
– Tem toda a razão – disse Jocas.
– Lamentamos muito – apressou–se João.
– Aprendemos a lição e não voltamos a fazer o mesmo – completou Polvo.
Nisto o Renault rapidamente saiu do atalho de marcha–trás com um arranque repentino, seguidos pelo ciclista no meio da poeira que se levantou. Os três da vidairada retomaram o seu caminho para a praia.
– Ouviste bem Jocas? – começou a ralhar João – Tu e a tua mania de fazer ganzas em todo o lado. Podíamos ter arranjado sarilhos à séria.
– Não – respondeu calmamente Jocas – Na verdade podíamos ter arranjado problemas à séria se eles me tivessem mesmo revistado a mochila, já que está cheia de erva.
A cara de João conseguiu em poucos segundos passar por várias cores. Enquanto isso Polvo finalmente rebentava à gargalhada.
– O quê?! E tu estavas a dar–lhes a mochila?
– O que tem? Não resultou?
– Bolas, acho que vou ter um ataque cardíaco… melhor para ti, que não te mato – suspirou João, a apoiar–se num poste.
– Não dramatizes rapaz. Bem, tenho é de passar ali no café para fazer outra.
– O quê?! Jocas, não abuses! Fazes isso quando chegarmos à praia. E Polvo, pára de te rir, tu não deves ter noção.
– Tenho pois – respondeu ainda a rir Polvo – Tenho noção que tenho de voltar ali atrás – disse a apontar para o local onde tinha decorrido todo o episódio.
João começava a ficar atónito com tudo isto
– Mas para quê?!
– Então – começou a explicar Polvo com ar de entendido – achas que me livrei de tudo sem antes ter a lucidez de deslocar uma palhinha de um chupa–chupa aí abandonada por alguma criança para marcar o lugar? – rematou com ar triunfante – Senão ficava sem mais nada para o resto das férias!
Foi a vez de Jocas se rir um bom bocado também. E com tanta coisa até João não conseguiu conter um ligeiro sorriso. "Tal situação até parece inventada... E estes gajos também!" pensou para si mesmo.
– OK, eu dou a mão à palmatória, essa foi bem jogada. E a da mochila, também tenho de confessar… foi de mestre – disse pondo a mão nos ombros dos seus amigos – Mas será que agora podemos ir para a praia ter com a malta e ver o eclipse que já está quase a meio?
Polvo foi rapidamente buscar o seu tesouro onde estava a marca, e Jocas começou a retirar material para um outro charuto (agora de erva) para começar a fumar mal pisasse a areia quente da praia, e começaram finalmente a dirigir–se para o belo areal da Figueira da Foz
E era esta a história do Jocas. Uma de muitas.

Capítulo 7

Bruno ria–se a bom rir depois da história do Jocas.
– Acho que já me tinham contado essa, mas já não me lembrava bem – conseguiu dizer entre convulsões entusiásticas – Mas é sempre bom recordar!
Bruno tinha este problema neuronal comum em muitos consumidores de cannabis: Má memória.
– Pois, mas se estivesses lá estado podes crer que nunca mais te ias esquecer – disse João.
Entretanto a viagem de comboio ia prosseguindo e o tempo ia passando, mas continuavam a não conseguir contactar ninguém.
– Um gajo tem estas tecnologias todas e depois não servem para nada a não ser para stressar ainda mais – desabafou Bruno. João não lhe prestou muita atenção, parecia fixado em algo no banco ao lado – Ouviste o que eu disse?
– Tu já reparaste – começou João a dizer, notando–se perfeitamente que não tinha ouvido nada – nas pessoas estranhas que estão neste comboio? Será da hora tardia?
– Pessoas estranhas? – perguntou Bruno a olhar em volta e parando nos olhos de João, que estavam vermelhíssimos como os seus – Para além de nós? – gracejou.
– Para já tens ali os tropas ao fundo que só mandam piadas rascas e riem a altos berros como se estivessem a ver o Seinfeld. E estão todos descalços o que explica este aroma meio estranho no ar que só eles parecem não notar. Mas não é preciso ires tão longe com o olhar, vê lá já aqui ao lado.
Bruno olhou outra vez para os bancos do lado e viu o que parecia ser uma típica família portuguesa. Mas aí percebeu que esse era o ponto de vista de João: Aquela era uma família portuguesa do mais típico possível! Tínhamos a mãe nos seus quarenta anos com uma permanente cara de enfado a fixar um ponto no vazio, só reagindo para dar uns safanões nas filhas quando estas queriam ir para mais longe. As filhas que eram crianças de tenra idade, sempre a brincarem uma com a outra alheadas do mundo dos adultos, mas encolhendo–se sempre que viam o braço da mãe se mexer. E para completar o patrono da família, um homem também nos seus quarenta, com um bigode farto, e com uma cara meio jocosa e avermelhada, como se corresse vinho tinto em vez de sangue no seu corpo.
– Acho que te estou a perceber... – começou Bruno a dizer, mas foi interrompido precisamente pelos vizinhos do lado.
– Bolas, estejam quietas pirralhas! – berrou a mãe dando um safanão na filha mais velha contra si.
– Oh mamã, só queríamos ver o resto da carruagem – disse inocentemente a mais nova. Nisto o pai lançou gracejando:
– Vê lá filhota se não encontras o Bibi pelo caminho e ele te leva – aludindo a um conhecido caso de pedofilia.
João e Bruno entreolharam–se com este comentário e quase não resistiam à gargalhada.
– Por acaso pensei que estava a fazer filmes sem sentido, daqueles habituais com a moca – disse baixinho João, debruçando–se para a frente – mas estes são cá umas personagens. O homem parece que está bêbado desde que saímos.
– Parece? – indagou Bruno enquanto se debruçava um pouco mais – Então o gajo tem dois garrafões debaixo do banco.
João debruçou–se discretamente um pouco mais para confirmar tal facto e começou a rir baixinho.
– Será que nos dá um bocado a provar? Por esta altura já ia bem, podia ser que a viagem passasse mais rápido.
– Bolas, ainda ficávamos como o homem – disse Bruno a rir–se baixinho também – Deixa lá mas é tentar telefonar à malta outra vez, senão ficamos apeados na estação. E aí sim, começarei a pensar como era bom ter um ou dois garrafões de vinho comigo!

Capítulo 8

Duarte sentiu o ar fresco a bater–lhe na cara quando saiu para a rua e inspirou fundo. Arrependeu–se logo a seguir ao constatar a quantidade de fumo que inalou vindo do charuto que alguém fumava junto à porta.
– Bem, está na hora, ou quê? – perguntou–lhe Gonçalo. Sabendo que ainda era cedo para uma criatura da noite como ele se decidir ir para casa, Duarte não percebeu.
– Hora de quê? Respirar algum ar puro para variar?
– Qual quê! Para que é que serve o ar puro numa festa? – respondeu Gonçalo no seu estilo rude habitual – Está na hora de imitar estes sócios aqui e fazer um charutinho também!
– Força, estás à vontade, os pulmões são teus – respondeu Duarte enquanto tirava já o pacote das mortalhas King–Size – E meus – completou com um sorriso trocista.
Aproveitou e já que tinha as mãos nos bolsos retirou o telemóvel para fora.
– Ena pá, tenho bué chamadas do João. Que será que ele quer?
– Pois, eu também vi isso agora quando estava a sair cá para fora – disse Gonçalo com um pedaço de cartão na boca.
– E então? Não lhe ligas para saber o que se passa?
– É pá… não me apetece… – respondeu Gonçalo com um ar pachorrento – O que me está mesmo a apetecer é fumar esta…
– Bolas, és tramado! Pode ser algo importante – de repente o telemóvel relinchou – Olha, está a ligar–me outra vez, deixa cá ver o que se passa.
A conversa foi rápida, com Gonçalo a reparar num meio sorriso de Duarte, e este a dizer várias vezes "Na boa!", coisa que até era seu costume. Para Duarte, quase tudo era na boa.
Quando desligou mandou uma valente risada oprimida.
– Então não é que estes gajos perderam o comboio?
– Gajos? O João e mais quem?
– Mais o Bruno, foi com ele que eu falei. Disseram que precisavam que alguém os fosse buscar à estação do Entroncamento, e eu disse que era na boa.
– Pois, essa parte eu ouvi – Gonçalo fez uma pausa para acabar o seu serviço e passar habilmente a língua na cola da mortalha – E agora, vais lá buscá–los? Já não demoram muito…
– Então mas… – Duarte ficou com um ar confuso – Eu vim no teu carro, tens de ir lá tu. Claro que eu vou também.
– Pois, e disseste–lhe que era "na boa" ir até ao Entroncamento agora, neste momento, com o meu carro – replicou Gonçalo com semblante carregado – Pá, azar o deles, ainda temos de achar a Luísa e o Alexandre que também vieram connosco, e que estão por aí a curtir a festa. Além disso – acrescentou colocando a ganza ao nível dos olhos – ainda vou fumar esta antes.
– Bolas, és mesmo tramado pá!
Gonçalo transportou a ganza da frente dos olhos para a boca, pegou no isqueiro e antes de o acender acrescentou com um sorriso de satisfação:
– Eu sei.

Capítulo 9

Hora: duas da madrugada. Local: Entroncamento, terra dos fenómenos. Pelo menos é assim que é conhecida, e com furacões e supostas visitas de alienígenas bem que pode ter esse epíteto. Mas claro que é igualmente conhecida pela grande circulação de comboios que por aí passam, sendo aliás a principal causa de existir tal localidade, que passou de aldeia a cidade em três quartos de século. No entanto, face ao adiantado da hora, o movimento não era assim tanto.
– Bem, onde estão eles? – perguntou João à porta do comboio pesquisando com o olhar a plataforma de desembarque. Mais ninguém tinha saído senão eles, estavam completamente sozinhos.
– Então, virem–nos esperar aqui também já era bom demais. Devem estar na entrada… – respondeu Bruno não muito convicto.
– Isto já me está a cheirar mal – disse João a torcer o nariz.
Obviamente que chegaram à entrada e não estava lá ninguém à espera deles.
– Boa, e agora? Eles ao telefone não disseram que iam chegar atrasados?
– Não, mas já sabes como eles são… – replicou Bruno com um encolher de ombros – Mas realmente dava jeito a boleia já que está a ficar frio.
Dito e feito, mal estas palavras saíram da sua boca, um Mazda 6 de quatro portas azul–escuro novinho em folha desviou da estrada principal para a entrada da estação, estacando à sua frente. Lá dentro um homem de blazer com bom ar, na flor dos seus quarentas, manuseava o controlador do espelho reflector direito de modo aos nossos amigos ficarem no seu campo de visão. Uns olhos castanho–avelã surgiram no reflexo.
Bruno e João entreolharam–se de sobrolho franzido. De repente ouviram o vidro lateral descer, e um sorriso luminoso pronunciou:
– Olá rapazes, tudo bem? Precisam de boleia para algum lado?
"Mas donde é que saiu este, a esta hora, neste lugar?" – pensou Bruno. E respondeu:
– Não, deixe estar, uns amigos nossos já vêm cá ter.
O sorriso até pareceu iluminar–se mais com a negativa.
– Vá lá, não sejam parvos, entrem lá que está mais quentinho aqui.
João olhou para si próprio do alto do seu metro e noventa de altura um pouco confuso, passando de seguida o olhar para a barba de Bruno.
"Mas donde é que saiu este Bibi de meia tigela? Será que ele não topa que nós já somos um pouco crescidinhos para estas brincadeiras?"
Bruno não era conhecido pelas suas reflexões introspectivas, mas sim pela língua mais afiada.
– Ouve, não estamos interessados – e, debruçando–se na direcção da janela, acrescentou com uma cara mais sisuda – E tu, também não.
O sorriso luminoso desapareceu, e os olhos tornaram–se negros. Num ápice o Mazda já tinha arrancado e desaparecido por uma rua de sentido proibido.
Por um momento ficaram em silêncio. Pouco depois rebentaram a rir (como não podia deixar de ser).
– Mas onde é que viemos parar? Aquele gajo estava no engate? – atirou para o ar João ainda a rir.
– Bem–vindo à terra dos fenómenos! – respondeu de braços abertos Bruno – Aqui pelos vistos acontece de tudo – passou a mão pelos cabelos e suspirou – Depois desta preciso de um cigarro.
Com gestos lentos e cerimoniosos puxou do maço de cigarros, mas estacou quando o abriu.
– Hum… só tenho um cigarro – e pendurou–o à frente dos olhos.
– E depois? Não é para o fumar que o tens?
– Pois pá… mas na volta guardava–o para fumar de outra maneira, se é que me entendes…
João não precisou de pensar muito para entender ao que Bruno se referia.
– És mesmo um carocho de primeira. Daqui a pouco eles chegam e devem ter tabaco, e fazes uma no carro, ou quando chegarmos. Fuma lá mas é o teu cigarrito descansadinho. Agora fumar uma aqui, agora…
– Qualquer sítio bom para fumar um cigarro é bom para fumar uma ganza – disse Bruno como se estivesse a declarar uma lei universal aprendida numa faculdade de ciências. Tirou o isqueiro do bolso e acrescentou – E altura também.
Olhou para o cigarro uma última vez.
– Mas desta vez vou dar–te ouvidos – e acendeu o cigarro com indescritível prazer – Olha, tenho uma mensagem.
Entretanto ouviram um restolhar atrás deles. Viraram–se e viram que a porta da sala de espera da estação tinha sido fechada.
"Isto não é lá muito bom. Ainda bem que só vamos ter de estar aqui só mais um pouco" pensou João.
Bruno pegou no telemóvel, efectuou o ritual sagrado de desbloquear o teclado, e começou a ler a mensagem para passar por várias tonalidades de cor na sua cara.
– Olha, recebi uma mensagem do Duarte.
– E então? Estão a chegar?
– Err…. Não, estão a sair de lá.
E foi a vez da cara de João passar por várias cores, situando–se maioritariamente no roxo.
– O quê? Mas nós já ligámos há bué! Boa, agora vamos ter de ficar aqui fora à seca!
– Sim, pelo menos mais meia hora. Bem, ao menos tenho um cigarro enquanto espero – disse laconicamente Bruno a piscar o olho.
– Quero é ver se te vai chegar – respondeu João cruzando os braços.
Ai, o vicio do tabaco. Realmente é algo ao qual é muito difícil de fugir, e depois de puxar por um cigarro, é sabido que apetece outro a seguir…

Capítu lo 10

Passaram quinze minutos, pouca conversa, e nenhuma vivalma. A estação de comboios do Entroncamento começava a ficar envolta em nevoeiro e parecia à espera de outro fenómeno, enquanto João e Bruno (des)esperavam pela sua boleia.
– Já ia para a terrinha… – lamentou–se João.
– Já fumava outro cigarrito… – lamentou–se Bruno.
João olhou para ele com a típica cara irritante "Eu bem te disse".
– Pois, agora só se fores cravar, mas a esta hora como já se viu não passa ninguém.
– Pá, mas ali ao fundo estão uns taxistas. Vou até lá.
Foi uma viagem rápida, e percebeu-se facilmente que se relevou infrutífera.
– Bolas, nenhum fuma, como é possível? Também estava lá um tropa mas nada.
– Sabes, há pessoas que ainda escolhem ser saudáveis.
– Sim, sim, carocho de um raio…
Em vez de ficar chateado João riu–se a bom rir. Realmente se havia coisa que era única em Bruno eram as suas tiradas.
– Olha, milagre, vêm aí dois cotas, e um deles vem a fumar.
As duas personagens que se aproximavam pareciam inventadas, uma espécie de Bucha e Estica do Casal Ventoso. Se bem que neste caso o Bucha era também o mais Estica. Na verdade este fazia três ou quatro do companheiro, não só em tamanho mas também em idade aparente. Mesmo do alto dos seus dois metros e cinco espetava o seu nariz proeminente em direcção ao céu, apontando o seu queixo barbudo em direcção ao interlocutor, de modo a ter um ar ainda mais altivo, e parecer estar por cima da situação. Os seus braços tipo troncos andavam descaídos para trás das costas, onde se juntavam pelas manápulas, a coberto da barriga proeminente.
O outro era tão magro que se diria que o vento que se sentia nessa madrugada era capaz de o levar. Com aquela postura característica dos fuinhas, encurvado sobre o próprio corpo, tinha o braço esquerdo esticado com a mão do bolso, e a outra mão a segurar um cigarro junto dos lábios. Tinha um ar de sabichão nato que se diria capaz de intrujar todos, mas que levaria pancada todo encolhido logo a seguir mal descobrissem a marosca.
– Cachimbo… de certeza que queres falar com estes dois?
– E porque não?
– Do modo como a noite vai… acho que é abusar da sorte.
– Meu, poupa–me. E de qualquer modo preciso mesmo de um cigarro – Bruno deu um passo em frente, interceptando o caminho dos dois homens – Olhe, se faz favor?
Os dois estacaram lentamente, e lentamente ficaram a olhar fixamente para Bruno.
– Hum… têm um cigarro?
Os dois comparsas nada disseram. O mais baixo fez um sorriso enigmático, enquanto o mais alto fez um olhar enigmático. Ficaram parados nesta pose alguns segundos, enquanto Bruno esperava pacientemente uma resposta. Finalmente o mais alto começou a retirar do bolso um maço amarrotado de Ventil perante o olhar reluzente de satisfação de Bruno. No entanto, parou o movimento a meio de um modo planeado e provocante, começando a debruçar–se um pouco sobre Bruno como que para o ver melhor.
"Bonito, o que nos espera agora?" – pensou João. Mas esta não era possível adivinhar.
– Olha lá – começou o Bucha–Estica – Mas tu és um rapaz… ou uma menina?
Tudo bem, estas palavras não eram novas para alguém que já tem o cabelo comprido há algum tempo. É uma piada recorrente a quem quer enveredar por essa moda. Mas neste caso não parecia ser piada! O homem estava na dúvida, mesmo com a barba e barriga de cerveja de Bruno (características que, curiosamente, até eram semelhantes entre os dois).
Enquanto João tentava não se rir (até porque o Chico Fininho tinha fixado o olhar em si agora) Bruno simplesmente deixou cair a cabeça com enfado e bufou profundamente. Voltou a levantar a cabeça antes de atirar com voz grossa:
– Sou homem! Você é cego?
O velho ancião voltou à sua posição erecta (ou seja, inclinado para trás para equilibrar a pança) e retirou um cigarro do maço com movimentos lentos.
– Pronto, pronto, não é preciso ficar chateado… – disse enquanto entregou o desejado atenuador de ansiedade e promotor de cancro.
– Obrigado… acho eu – Bruno pegou no cigarro e fixou o velhote com um olhar fulminante por uns segundos – Então, boa noite.
O velhote recuou, fez uma vénia, e continuou o seu percurso, seguido logo de perto pelo seu namoradinho.
– Bem… ao menos tens o cigarro – disse João, ainda a tentar não se rir.
– Tu está calado! E quero lá saber se eles estão a chegar ou não, se este sítio é uma treta ou não, mas vou aproveitá–lo que agora é que estou mesmo a precisar de um pica para relaxar!
Tendo em vistas as circunstâncias, até um fundamentalista anti–droga concordaria.
João olhou em volta à procura de um bom sítio, mas Bruno não precisou de esperar muito, começando a trabalhar imediatamente encostado à esquina da parede da entrada da estação.
– Então pá, nem na Holanda podes fazer isso assim.
– Com a quantidade de pessoas que aqui passam a esta hora, e do calibre que são, acredita que não vamos ter problemas nenhuns.
João encolheu os ombros. Bruno tinha razão, e ele também precisava de relaxar um pouco.
– Olha, para estarmos ainda mais descansados, vou telefonar ao Duarte e ouvir as belas palavras "estamos quase a chegar" – disse com um sorriso.
– Pois, ou talvez não… – respondeu Bruno a rebolar os olhos forçando um esgar de incredibilidade.
Na verdade, não foi das melhores ideias da vida de João.

Capítulo 11

A caranguejola à qual Gonçalo chamava orgulhosamente de seu carro ziguezagueava nas suas mãos pela Estrada Nacional 358, mais terra que alcatrão, num ritmo inconstante. Na verdade, dir–se–ia que o belo do Citroën AX (do ano de 1989) ia completamente a soluçar de desgosto por tal provação.
As janelas mal aguentavam a pressão atmosférica derivada da agitação reinante nas moléculas de nitrogénio e de oxigénio, causada pela banda catalizadora Cannibal Corpse. Quatro silhuetas agitavam–se lá dentro ao ritmo da música.
– Ouve lá Gonçalo – gritou Luísa, levantando–se do banco de trás a tentar se sobrepor ao caos sonoro reinante – o carro não vai aos solavancos?
– Hein?
– O carro! Não vai aos solavancos?
– O quê?
– Baixa lá o som otário! – berrou Luísa o mais alto que as suas cordas vocais permitiram directamente para o ouvido de Gonçalo. Após este ter acedido repetiu a pergunta uma terceira vez.
– Por acaso também tenho essa noção… – disse Duarte que estava ao lado de Gonçalo.
– Mas agora parece estar bom – completou Alexandre atrás deste.
Ficaram todos em silêncio, atentos a qualquer oscilação, ouvindo o motor por cima do som mínimo do auto–rádio. Gonçalo cortou este silêncio rindo entusiasticamente.
– Já sei o que estava a acontecer! É que eu estava a curtir o som com os pés, a carregar nos pedais, e estava a destrambelhar isto tudo.
Os acompanhantes levaram ao mesmo tempo as mãos à testa, sem conseguirem disfarçar um sorriso.
– Não admira que este carro esteja todo assassinado – murmurou Alexandre, voltando a encostar–se no seu lugar – Bem, mete lá o som outra vez, mas desta vez atenção ao que fazes.
Face ao teor alcoólico algo acima do limite legal que Gonçalo carregava nas suas artérias e veias, este era um conselho a ter em conta. Principalmente numa estrada isolada em tão mau estado, sem qualquer iluminação, e sem nenhum movimento. Parecia que estavam a meio caminho das terras Nada e Nenhures.
O relógio no carro marcava 3:03 (mais coisa menos coisa). A noite estava escura, sem lua como companhia. Era uma daquelas noites em que não se queria estar ao relento, especialmente no meio do mato onde podiam aparecer raposas, lobos, chupa–cabras, etc. Enfim, dentro do quentinho do carro é que se estava bem, com a calefacção ligada a três quartos. A viatura é que parecia voltar a balançar ao som do pedal duplo reinante na faixa nº 7 do CD pirateado que estavam a ouvir.
– Gonçalo, já estás a fazer a mesma coisa outra vez – advertiu Duarte.
Gonçalo estendeu o braço direito para voltar a baixar o volume.
– Pá, desta vez estou sossegadinho. Aliás, agora até estou a afundar o pé no acelerador.
Mas mais o pé afundava mais o carro se engasgava e voltava a engasgar. Perante o olhar esgazeado dos seus ocupantes, este contorceu–se em agonia mais duas ou três vezes, roncando ruidosamente, até o motor se desligar completamente, e o carro começar a perder força, movimentando–se somente às custas da inércia. Só se ouvia uma ligeira chiadeira das engrenagens com a música demoníaca de fundo. O carro estacou quando finalmente Gonçalo puxou do travão de mão quebrando a letargia geral dos passageiros da viatura. Estes entreolharam–se suspeitos enquanto ouviam um longo suspiro de Gonçalo pleno de conhecimento do que se estava a passar, ao pousar a testa no volante.
– Não posso acreditar nisto, era só o que faltava…

Capítulo 12

João e Bruno encontravam–se os dois sentados debruçados para a frente, com os cotovelos nos joelhos e as mãos na cabeça, em pleno desalento. Um carocho com maior cadastro diria que eles estavam com uma má tripe.
– De certeza que ouviste bem ao telemóvel?
– Sim…
– Mas como é que é possível?
– Pá, sabes como é o Gonçalo, às vezes abusa um pouco sem usar a cabeça. E quem se arrisca um dia lixa–se, e nós por tabela,
– Não posso acreditar nisto, era só o que faltava…
– Pois acredita pá! O parvalhão ficou sem gasolina.
Sim, leram bem. Depois de tudo o que já tinha acontecido, e quando os nossos dois amigos já só queriam que nada mais acontecesse, era como uma machadada final.
– Mas porquê? Como? Não é possível!
– Pá, sabes como é, o gajo anda sempre com a gasosa nas últimas e algum dia tinha de ser…
– Mas porque é que tinha de ser logo hoje?!
João não tinha resposta para a pergunta de Bruno, mas este também não esperava uma.
Passaram alguns momentos cabisbaixos em silêncio pensando na sua desgraça, ao mesmo tempo que os efeitos secundários da planta medicinal cannabis já começavam a fazer alguma mossa e a não ajudar em nada a situação.
– Bruno, ainda estás aí?
– Mais ou menos… Só não caio para o lado a dormir porque o meu estômago sempre a roncar não deixa.
– Pois, estás como eu, mas olha que sou capaz de ter solução para isso.
O pouco que se via dos olhos de Bruno pareceu reluzir por um instante quando este levantou um pouco a cabeça.
– Tu lembraste–te quando às vezes passávamos pelo café de manhã antes de irmos ensaiar aos domingos? – continuou João.
– Não puxes muito pela minha pobre cabecinha. Qual café?
– O do costume, "O Tacho".
– Mas isso nem abria na maioria das manhãs de domingo.
– Pois não, mas o padeiro muitas vezes deixava lá um saco com pães e bolos para a tarde… – deixou João no ar.
Bruno começava a apanhar o raciocínio.
– Aqueles sacos de papel castanho donde de vez em quando levávamos "emprestado" qualquer coisa?
– Exactamente! Olha para ali – João apontou para a outra esquina da parede onde estavam, já dentro da estação – Não te parece um saco exactamente igual?
Bruno virou vagarosamente a cabeça na direcção indicada por João, visualizou o alvo a abater, e sem hesitações saltou directo a ele.
– Bruno! Bolas, não queres dar mais nas vistas? - disse João o mais baixo que pôde.
– Cala–te e anda pá – disse a nuca de Bruno – Estou desesperado.
João olhou por cima do ombro para os taxistas mas estes já pareciam estar habituados à sua presença ali.
"Bem, também não nos vão prender não é verdade…" – e com este pensamento chegou–se ao pé do saco com Bruno. Só nesse momento reparou que começava a estar igualmente desesperado.
Entreolharam–se por um breve instante, e Bruno lançou–se ao saco como um lobo esfomeado. Após o ter aberto esboçou um sorriso tão luminoso que parecia ter achado o pote de ouro no fim do arco–íris.
– Olha só o que eu descobri aqui.
– O que tu descobriste? – ironizou meio abespinhado João, enfatizando o "tu". Mas mal lhe chegou o cheirinho a bolos quentes fechou os olhos deliciado – Que maravilha! Abre lá isso!
– Espera! – estacou de repente Bruno – De certeza que te sentes bem a fazer isto? – perguntou em tom jocoso.
– Dá cá essa treta! – João arrancou–lhe o saco das mãos e tirou prontamente um belo croissant de doce ovos ainda morno – Isto é sobrevivência pá, não eras tu que ainda agora estavas a desfalecer?
– Já me sinto melhor desde que visualizei esse pastel de nata que está aí a espreitar – respondeu já a enfiar a mão no saco.
Podia até ser pão com bolor que ambos ficariam satisfeitos, mas confeitaria acabada de fazer por esses feiticeiros da madrugada rural chamados padeiros parecia uma ceia digna de deuses. Com todo o seu açúcar e massa a casarem–se perfeitamente com o THC remanescente nos seus corpos, as suas papilas gustativas foram activadas ao máximo, num prazer orgástico.
Após devorarem mais de metade do saco decidiram fazer uma pausa. Em pouco tempo acabaram por fechar os olhos em puro deleite, mas João abriu–os momentos depois antes que adormecesse já ali. Reparou na parede em frente.
– Olha lá Bruno, amanhã vais tocar e não dizias nada?
– O quê? Estás a delirar numa overdose de açúcar? Amanhã não temos concerto nenhum.
– Nós não, mas a tua outra banda sim. Ou não é isso que está ali naquele cartaz? – disse apontando para o pedaço de papel colado na parede.
Tal pergunta obrigou não só Bruno a abrir os olhos como a focar os olhos ao longe. Demasiado esforço para aquela hora naquela noite mas conseguiu identificar o nome que procurava.
– Olha–me esta… porque é que eu não sei disto?
João riu–se da perplexidade de Bruno. Era pouco comum detectar–se uma reacção neste quando a hora já ia tão adiantada.
– É uma boa pergunta. Não queres telefonar ao Gonçalo para saber a resposta. E já agora, perguntas outra coisa… – fez uma ligeira pausa pondo o indicador no queixo para o depois espetar no ar como se tivesse tido uma ideia brilhante – Por exemplo, onde raio é que ele está?!
– Sim, tens razão. Então… – agora foi Bruno a fazer uma pausa, mas esta não propositada – passa aí o telemóvel – acrescentou com um sorriso amarelo.
João já nem reagia, entregou–lho prontamente já a chamar. Bruno esperou um pouco até ser atendido, grunhiu um pouco para o bocal numa conversa curta, e desligou em segundos.
– Então, já estão a chegar? – perguntou ansioso João.
– Sim – disse–lhe Bruno devolvendo–lhe o telefone – estão a chegar à estação de serviço a empurrar o carro.
João não sabia se havia de rir ou chorar. Se bem que estivesse a dar em maluco para sair daquele sítio, tal imagem na sua cabeça até lhe dava vontade de mandar umas gargalhadas.
– Estás a falar a sério?
– Sim pá. Até foi o Duarte que atendeu todo esbaforido, que o Gonçalo já nem tem fôlego para falar.
– Valha–me alguém! Ainda vão demorar mais meia hora pelo menos...
– Pelo menos… – repetiu Bruno desalentado.
Fixaram o olhar na linha férrea que já se parecia estar a rir deles. Afinal era só o som de um comboio de mercadorias a passar. Começaram a contar as carruagens como quem conta cordeiros para dormir e quando chegaram às quinze Bruno perguntou:
– Quantas carruagens costuma ter o nosso comboio?
– Três. No máximo seis, nas horas de ponta.
– Pois… mas eu já estou a contar vinte neste.
– E vais contar mais. Donde é que surgiu este comboio? Será que estamos a ter alucinoses já? É interminável! Ah, lá vem a ultima carruagem, a trigésima sexta.
– Interminável é esta viagem, isso sim, que nunca mais acaba.
E assim ficaram a olhar para o infinito a ver o comboio desaparecer. Não com um olhar pensativo, profundo, inspirador, ou sonhador, como nos filmes, mas sim com ar de parvos.

Capítulo 13

– Olha, vão abrir a sala de espera da estação, vamos para lá que deve estar mais quentinho – balbuciou João.
Bruno tremeu uma resposta afirmativa.
– Já matava por um cobertor ou até uma almofada… se tivesse forças para isso.
Obviamente que já tinha passado pelo menos meia hora, e nem sinal da viatura da salvação. E tanto tempo ao relento com o frio de Dezembro numa terra do interior já fazia a sua mossa.
Ambos activaram os poucos neurónios que ainda não estavam de greve de modo a estes darem os impulsos eléctricos necessários para os músculos os arrastar até aos assentos da sala de espera. Não eram sofás de pele anatomicamente perfeitos como desejavam, mas depois de tantos acontecimentos as reles e vincadas cadeiras de plástico e ferro iriam parecer colchões dignos de reis.
Deixaram–se cair estrondosamente nelas, deixando pender livremente as mochilas para o chão. O homem da bilheteira que tinha aberto a porta assustou–se com tal presença abrupta, e ficou a olhar atentamente para eles ainda durante um bocado.
Entretanto outra pessoa passou pela porta àquela hora. Era um senhor robusto mas já com alguma idade, de ar simpático e bonacheirão, com cabelo e barba grisalha, cachimbo na boca, e carregava dois sacos de pano enormes, um em cada mão.
Olhou para eles mas nem pareceu estranhar o espectáculo.
– Bom dia! – Atirou alto e em bom som
Nem lhe conseguiram responder, apenas sendo capazes de deixar pender o queixo, ficando ambos a olhar embasbacados para o homem enquanto este esperava uma resposta. Mas enérgico como este era não esperou muito e foi dizer bom dia também ao vendedor de bilhetes.
João olhou para o relógio para ver se tinham adormecido um bocado. Não. Aquele homem tinha acabado de lhes dar os bons dias ainda antes das quatro da madrugada. A hora a que muitas vezes João começava a pensar se não seria boa altura para ir para casa dormir. Ou então ir beber mais um copo.
Puxando a mínima réstia de bom humor que lhe sobrava, João disse
– Então, ao menos já tomámos o pequeno–almoço – rematou piscando o olho.
Bruno fechou os olhos para sorrir, e não mais os abriu. Pareceu sonhar com um velhote simpático e hiperactivo que dizia que de manhã cedinho é que era bom ir para a feira da ladra de Lisboa fazer umas trocas, antes que as coisas valiosas desaparecessem.
– Adeus, meus amigos, cá vou eu para o negócio! – disse o homem depois de comprar o bilhete.
João já não conseguia raciocinar. No início desta fatídica noite lembrou–se dos filmes de Hitchcock, e agora parecia que tinha passado para um filme do David Lynch. E isso não era bom. Olhou para Bruno que parecia estar perfeitamente embalado pelos braços de Morfeu, e fechou os olhos na esperança que houvesse espaço para mais um.
Não lhe pareceu demorar muito tempo até outra pessoa entrar em passo apressado na estação, que pareceu estacar à sua frente. Nisto ouviu–se uma gargalhada rouca familiar, parecia…
– Que lindo parzinho que vocês fazem – atirou Alexandre a rir–se a bandeiras despregadas.
João abriu um olho à vez e piscou–os para ter a certeza que estava a ver bem. De repente reagiu abanando Bruno.
– Acorda pá! Já chegaram, já chegaram, vamos embora daqui! Pega nas malas, baza!
– Na verdade não são malas, são mochilas – respondeu um Bruno perfeitamente consciente a espreguiçar–se depois do que parecia ter sido um sono reparador de dez horas. Começou a levantar–se lentamente.
– Bem, estou a ver que vocês não estão com pressa – gracejou Alexandre – Se calhar podemos ir buscar umas cervejas à bomba de serviço nesta terra e voltamos aqui para vos virmos buscar quando estiverem prontos.
– O quê, estás parvo? Cachimbo, anda lá caramba! – e João começou a pegar imediatamente em todas as malas, perdão, mochilas, com um braço, e a arrastar Bruno com o outro.
– Pronto, pronto, calma que já estou a ir – disse Bruno, concertando o cabelo pelo caminho – O carro está já aqui?
– Sim, mesmo à vontade do freguês – declarou com um sorriso Alexandre – O resto da malta ficou lá dentro, disseram que estava frio.
– Ai é? A sério? Nem tínhamos reparado…
Saíram prontamente para a rua e foram logo directos às portas traseiras do carro, sem sequer colocar as mochilas no porta–bagagens. Gonçalo, Duarte e Luísa olhavam com cara de gozo para a cara de ensonados deles.
– Então, curtiram da noite do Entroncamento?
– Pá, está lá calado antes que te bata. E toca a arrancar daqui para fora – disse João já a acomodar–se no banco traseiro.
– Olha lá Gonçalo – disse Bruno a enfiar a cabeça e a coçar a cabeça – à parte de não teres combustível suficiente para chegar até aqui, e muito menos para sair daqui, acho que falhaste noutra parte da boleia. Não estamos com uma pessoa a mais? Somos seis…
– Olha–me este, ainda te queixas? Sabia lá que tinha de vos vir buscar, deixava estes na borda da estrada não? Se quiseres fica aí à espera do comboio da manhã.
Bruno apressou–se a saltar para dentro do carro, comprimindo os companheiros o mais possível.
– Bolas, não voltes a dizer uma coisa dessas, Toca a andar, estás à espera de quê?
Gonçalo engatou ruidosamente a primeira e sem colocar o pisca voltou para a estrada principal, de modo a voltar pelo mesmo caminho.
Bruno concertou–se de modo a ficar mais confortável no carro, parecia já preparar–se para mais um salutar convívio com Morfeu. João suspirou de alívio.
– E nisto já são… – João chegou–se à frente para ver o relógio do carro – quatro e meia da da matina! E saí eu de casa às dez da noite para uma viagem de supostamente três horas e picos! E ainda falta mais meia hora de carro… – deixou–se cair contra a parte do estofo do banco traseiro do carro a que tinha direito, que lhe pareceu um encosto de rico em penas de cisne – Bolas, vamos lá é para a terrinha finalmente! – gritou de contentamento, abraçando Bruno calorosamente, despertando–o da sua letargia.
– Olhem, já agora – disse repentinamente Bruno a libertar–se dos tentáculos de João – alguém me arranja tabaco para fazer uma?

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quarta-feira, abril 30, 2008 - 18:59

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