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A Rapariga de Costas

A rotina mata a vida. Sempre o mesmo som. Sempre a mesma viagem. Sempre àquela hora. Sempre naqueles dias. Sempre a mesma paisagem. Sempre as mesmas pessoas. Sempre. Sempre. Sempre. Sempre. Sempre. Sempre. Sempre.
A rotina estava a apoderar-se de mim. Ou a morte. Que é a quase a mesma coisa. Todos os dias, naquele comboio, àquela hora, ali estava eu. Sentadinho no banco, pasta ao colo, pronto para ir trabalhar. Nunca sucedia nada de extraordinário. A mulher de cigarro na boca olhava tranquilamente a paisagem rotineira enquanto se divertia a fazer aros de fumo. Quer dizer, ela antes fazia isso. Desde aquela lei que se contenta a ver a paisagem e a usar pensos de nicotina. O homem do jornal chegava, olhava para todos os bancos a ver se encontrava o objecto digno do seu nome e se não o encontrava sentava-se à espera. À caça. O primeiro que largasse um jornal, o primeiro que fosse, nem que fosse para se assoar, zuca!, o homem do jornal agarrava-o e punha-se a ler furiosamente as notícias. O miúdo dos auscultadores ouvia sempre a mesma música. Um techno que irritava todos os ocupantes do comboio, pois apesar de os ditos auscultadores estarem nas orelhas do rapaz, o aspirante a surdo punha a música tão alta que todos na carruagem a ouviam. Nunca percebi se o mp3 mudava de música ou se ficava sempre na mesma. Parecia que o pobre do rapaz tinha cometido um crime tão atroz que o seu castigo era ouvir aquela música sempre igual.
A estes poucos juntavam-se muitos naquele comboio das 07:30. Todos com a sua personalidade. Todos com um objectivo. Sempre ali. Sempre as mesmas caras de poucos-amigos. Sempre os mesmos tiques. Sempre fartos. Sempre velhos. Sempre mortos. Sempre. Sempre. Sempre. Sempre.
Por medo a sociedade proibiu-nos de falar com estranhos. Sempre nos ensinaram assim desde pequenos. Sempre disseram: “Não se aceita presentes de estranhos!”. Assim, todos nós ficávamos sentados no comboio a rezar para que ninguém se sentasse ao nosso lado. Se acaso um tivesse, por azar, que se sentar ao lado de outro ficavam ambos a olhar para o chão ou para o tecto, tudo para evitar os olhos do outro. Se um por acaso tocasse na mão do outro, ui!, coitados. Imediatamente pediam desculpa todos atrapalhados e afastavam-se entre si para não suceder o mesmo. Todas as vezes tinha que assistir a esta estupidez da humanidade. Todos odiavam que o rapaz dos auscultadores ouvisse aquela música horrível, mas ninguém dizia nada. Ficavam todos a resmungar para dentro enquanto o ignorante do miúdo ficava cada vez mais surdo. Sempre esta timidez parva. Sempre o medo. Sempre a sociedade a impingir-nos silêncio. Sempre esta estupidez humana. Sempre infelizes. Sempre. Sempre. Sempre. Sempre.
Tanta vezes sempre que deixei de ligar ao que se passava no comboio. Agora olho para o vazio. Para o nada. Que é muito melhor que ver a estupidez em redor. Fico a imaginar histórias, a sonhar o que nunca irei alcançar, a escapar da vida. Todos os dias naquele comboio das 07:30, escapo da realidade, de quem sou, de como somos. Às vezes é melhor fugir em vez de enfrentar o mundo todo. Posso parecer um deles mas não sou. É cobarde? Sim. Mas prefiro ser cobarde do que ser estúpido e matar lentamente a minha vida. Hoje vivo. Ontem morria.
E hoje algo me fez querer voltar a viver. Voltar à realidade. Viver no ontem que vivia, só para poder... Hoje enquanto sonhava uma rapariga sentou-se à minha frente. E era tão bela. Bela. Bela. Bela. Bela.Só lhe conseguia ver o cabelo, ruivo, longo, macio. Mas tão belo... Era capaz de tudo, só por aquele longo cabelo. Apetecia-me tocar, cheirar, saborear o cabelo daquele anjo. Tentava vislumbrar um pouco da sua face, mas era inútil. Ela estava fixamente a olhar para a frente. Secalhar para escapar da vida, tal como eu. Será que imaginava o mesmo que eu? Sonharia os meus sonhos? Quem seria ela? Que idade teria ela? Para onde iria ela? Donde vinha ela? Ela. Ela. Ela. Ela.
Comecei a contar-lhe os fios de cabelo. Um a um. Perdi múltiplas vezes a conta, mas não queria saber. Queria mergulhar nela. Finalmente a vida fazia sentido. Comecei desesperadamente à procura de conversa. Alguma coisa, qualquer coisa para ver a cara dela. Mas não consegui. Já não vivia na estupidez há muito tempo. Não sabia meter conversa, perdi a prática. Procurei reflexos no comboio. Nada. Ela estava longe da janela. Que triste a minha situação. Ali estava eu embasbacado por uma rapariga da qual nada sabia e nem sequer tinha visto a cara. Apenas perdido naqueles cabelos de fogo. E de repente... A rapariga levanta-se e vai-se embora pela porta que está atrás de mim. Assim que ela se vira para mim, fecho os olhos. E só os abro quando o comboio retoma a sua marcha. E...foi aquilo. Aquele instante. Uma viagem de comboio. Um momento único que me fez querer voltar a viver. Tive a oportunidade de ver a cara que tanto ansiava descobrir e fechei os olhos. Tive... medo. Há muito tempo que não tinha medo. A rapariga enfeitiçou-me. Acordou-me.
Amanhã vou voltar a viver. Porque há momentos únicos. Mas eu não quero que aquela nossa relação seja um momento. Quero mais. Quero falar com ela. Descobri-la. Amanhã sentar-me-ei onde hoje me sentei. À espera dela. E se ela amanhã não vier... Depois de amanhã também lá estarei. À espera dela. Se ela não vier... continuarei à espera. À espera dela. À espera dela. À espera dela. À espera dela.
À espera da rapariga de costas.

H.P

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sábado, janeiro 9, 2010 - 23:08

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henrike8

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Comentários

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Re: A Rapariga de Costas

Lindo conto Henrike8. São momentos como este que nos acordam para a vida. A bela jovem ruiva tornou-se um bom motivo para aquelas manhãs tornarem-se tão esperadas.

É a vida, sempre movida às paixões.

Parabéns!
Beijos

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