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TERSA

Tarde cinzenta!
A brisa fria já soprava, as nuvens densas escondiam a luz do sol e um sereno fininho começava a cair, quando Brito, o Poeta vagabundo, escutou dona Cesária, a fofoqueira mor da Vila Real, lhe gritar ao longe:
- Cuidado com a Cruviana Poetinha! Dizem que quem olha nos olhos dela fica com uma paixão triste para sempre! Cuidado!
Com um riso folgaz Brito replicou:
- Ela está precisando conhecer o homem mais irresistível desta cidade. Tenho certeza que a Cruviana é melhor que os anus tristes desta cidade. Esta cidade é cheia de mulher sem sal.
Sorrindo da resposta do Poetinha, dona Cesária fechou rapidamente as portas e as janelas da frente do casarão, ouvindo Brito dizer ainda uma última piada:
- Se a Cruviana vier eu convido ela para tomar uma dose deste bom Vinho comigo. Quero ver se ela resiste!
Os “aldeões” contavam uma lenda que dizia que nas tardes muito chuvosas, uma jovem viúva que morrera há muito tempo saía pelas ruas à procura do amado falecido e, se algum homem estivesse fora de casa neste momento e por ela fosse olhado, ficaria tão apaixonado por sua beleza que padeceria o resto da vida absorto, com os olhos perdidos, sem dizer nenhuma palavra, como alguém que perdeu a consciência e ficou em estado vegetativo.
Brito conhecia desde menino aquela lenda.
Filho de ilustre família, do qual era então o último representante; desde que morreram-lhe a esposa e a mãe em trágico acidente automobilístico, entregara-se a uma diuturna vida boêmia regada a vinho e á escrita de versos e contos que entregava no Semanário A Voz do Povo em troca de um punhado de dinheiro com que comprava o vinho, os cadernos e a tinta.
Apesar da atual condição de nobre mendigo, era reconhecido dentro e fora da cidade pelo que escrevia.
Na alta estação de turismo virava atração. Muitos acorriam á Praça Central para ouvir-lhe declamar os versos mais famosos, em saraus onde, além dele, estavam Nelson do chorinho, João da Flauta e o Borba mentiroso a contar seus causos absurdos.
Depois da rápida prosa com dona Cesária, buscou abrigo no coreto, que tinha um dos lados fechados e garantia um bom abrigo a alguém desprevenido ou imprudente durante as chuvas.
Embora fosse um bom bebedor de vinho este lhe cerrou os olhos em um profundo sono. Não viu quando começou a soprar de fato o forte vento frio e quando a intensa neblina tomou a ruas da cidade de tal forma que deixaria um nativo como ele perdido.
Acordou em hora já incerta; a névoa do tempo a confundir-se com a névoa da vista, ouvindo ao longe a musica Al Di La de Emilio Pericoli e uma doce voz feminina a recitar-lhe os versos de um de seus poemas chamado Senhora Melancolia:

Dia velado sob a luz prata.
A Melancolia saiu às ruas,
com o corpo vestido de névoa,
perfumado de doce aragem.

Há silêncio na sua passagem.
Devagar, passa, tão devagar,
que parece invisível,
que parece não passar.

Pelas ruas as portas se fecham.
Mesmo bela ninguém quer lhe ver.
Passa só, como jovem viúva,
cujo choro ninguém aplacou.

Choro plácido, gotículas frias,
em sereno que esfria o chão,
sempre à frente da jovem viúva,
do cortejo, lhe abrem caminho.

E a saudade que plange - lhe o peito,
lindo colo de mármore branco,
chega aos homens, que lânguidos ficam,
a buscar o calor que é possível!

Sempre folgazão, deu uma gostosa risada, sentou-se recostando-se na parede do fundo do coreto e disse:
- Boa noite Senhora Cruviana! Seja bem vinda misteriosa Senhora!
Para o espanto de Brito, que pensava que o que ouvira era mais um delírio do álcool, a doce voz feminina respondeu-lhe sorrindo:
- Boa noite Senhor José Hernando Aquiles de Brito, meu poeta predileto.
Levantando-se sobressaltado, Brito deu um grito de espanto e reunindo forças perguntou:
- Quem está aí?! Que brincadeira tola é essa? Com certeza não é uma mulher de respeito! Uma dama de respeito não estaria a estas horas fora de casa!
A luz da lua, num fenômeno extraordinário, rasgou o denso véu da neblina precisamente no coreto, permitindo ao poeta ver diante de si uma jovem de uns vinte e poucos anos, estatura alta, pele muito branca, cabelos muito negros, olhos castanhos e rosto gracioso como o de um anjo.
- Perdoe-me. Embora tenham me transformado em uma lenda, não deveria ter aparecido ao Senhor de forma tão velada.
Enlevado por aquela linda visão, Brito sentiu a adrenalina ser trocada em milésimos de segundo por endorfina.
Se aquele era o espectro da lenda, ela não era uma pílula dourada. Nunca vira mulher tão perfeitamente bela!
- Perdoe-me bela Senhora! Não tinha a intenção de vos ofender! É que muitos não respeitam a minha maneira de viver e não seria esta a primeira vez que alguém me faria uma brincadeira inconsequente.
- Não te exasperes! Sei que não o fizeste por mal!
Como sói a uma dama, aquela senhora estendeu-lhe a mão para ser beijada! Brito, olhando o gesto pensou se o que estava vivendo era real mesmo. Como beijaria a mão de uma mulher morta?
Como gostava de desafios, de experiências novas, levou sua mão à direção á da jovem dama e para mais espanto segurou e beijou uma mão macia, graciosa, quente e cheirosa.
- Porventura alguém morto, meu senhor, teria mão tão graciosa?!
Trêmulo de espanto e de enlevo Brito respondeu:
- Os mortos não têm o vosso encanto, Senhora. Mas perdoe ao cético poeta: Será que isto não é um delírio?!
Tomando um acúleo acutíssimo da trepadeira que se enroscava no coreto, a jovem senhora espetou o leito ungueal de um dos dedos de Brito que deu um grito de dor e retrucou:
- Ai! Ai! Deveras, minha senhora, ninguém que delira conseguiria ficar acordado após sentir semelhante dor!
Sem nada dizer, ela o observava com olhos de gata e um sorriso maroto, como uma criança que acabara de fazer uma peraltice com um amigo!
Seus olhos castanhos falavam muito mais que mil palavras. Eles expressavam confiança, cumplicidade, uma alegria calorosa, uma satisfação que só se tem quando se está com alguém muito amigo ou muito amado.
Com o gesto da dama que solicita o braço ao cavalheiro, convidou Brito a subir a escadaria da Igreja do Céu. Não teve dúvidas de que ele aceitaria prontamente.
A subida foi um desafio de duas crianças brincalhonas que corriam para ver quem chagava primeiro ao patamar da Igreja.
Lá em cima, resfolegando, com os braços apoiados na murada que contornava o patamar, sorrindo e buscando o fôlego, os dois se detiveram, em um instante de silêncio, a observar a névoa que cobria a cidade.
Sentando-se com as costas apoiadas na murada, puseram-se a observar o céu do único ponto da cidade em que a névoa não estava.
Brito propôs que se deitassem no chão do patamar e, pouco a pouco, começou a mostrar àquela femme coquine todas as constelações que dali se podia ver.
Ela, serelepe, comparava cada uma delas a algo que lhe parecia mais conveniente, enquanto o Poetinha deixava-se ficar absorto na contemplação dos seus olhos morenos, duas joias de âmbar, iluminadas pela luz do luar.
Quando os dela encontraram os olhos negros dele, foi como se o sol iluminasse a lua numa detida contemplação mútua, cujo enlevo conduziu irresistivelmente os lábios mimosos dela a beijarem em sôfrego, profundo e detido ósculo, os dele.
O poetinha sentiu como se um arrepio de energia eletrostática lhe percorresse todo o corpo que, pouco a pouco, tornou-se leve, tão leve, que parecia não mais existir ou mesmo fundido ao dela como se fossem um só, como se estivessem a flutuar pelas estrelas, conjugando-se em um arroubo tão ardoroso que nem Eros conceberia.
Sentia que aquela união crescia em ondas cada vez maiores que teriam um ápice, um êxtase que o pobre Baco nunca lhe dera nos maiores de seus delírios. Tudo ali era pleno: o perfume dela, a beleza de suas formas, o seu olhar de cumplice, seus murmúrios, seus beijos...
Ele, não mais tido como ser humano pelo povo da Vila Real, sentia-se naquela porção do espaço, muito maior do que os heróis gregos cujos nomes foram consagrados pelas estrelas: pleno em sua expressão de homem, simplesmente heroico por ter nos braços a sua musa, numa união que foi tomando tal intensidade ao ponto de prorromper em uma luz, cujo espaço era o do êxtase, do silêncio absoluto onde não havia conflitos, dor, cansaço, tristeza, angústia ou quaisquer faltas...
Ali, ele perguntou:
- Diz-me: qual é o teu nome?
- Chamo-me Tersa e há muito tempo te conhecia e te esperava.
A revelação do nome dela, a princípio trazendo-lhe grande satisfação, foi-lhe devolvendo vertiginosamente as dores do corpo e da vida, da qual parecia por alguns instantes ter fugido, dando-lhe uma sensação de estar caindo ou descendo de maneira brusca como tinha em seus pesadelos de criança.
Os sentidos, a princípio obnubilados, foram pouco a pouco retornando ao estado de vigília e mostrando-lhe um espaço familiar: o seu quarto onde dormira sozinho desde que a esposa morrera. Fazia muito tempo que não dormia em casa!
No travesseiro que era da esposa, repousava uma folha de papel e sobre esta uma flor de Liana.
Aquela folha era uma das páginas do caderno onde arquivava seus poemas e o que ali estava escrito era o seguinte poema:
ROMANCE NOTURNO
Beijei a boca da noite,
e ela contou-me os segredos:
de amores, esperas e vinhos;
de perdas, encontros e medos.

Quando ela me veio tão lânguida,
a pus nos meus braços de herói,
senti o seu corpo de cosmos
a me abrigar por inteiro.

Correram minhas mãos pela Noite,
corri o seu corpo inteiro,
despi sua veste de dama
fechada por sete botões.

E ela dançou para mim,
qual gata que brinca no cio,
no palco imenso dos astros,
suas formas de constelação.

E como tormenta perfeita
sorvi seu pescoço e seios,
perfumes, cabelos e colo,
calores, frios e raios,

girando em órbitas várias,
em êxtases, vórtices, vértices,
formas, não - formas, grandezas
luas, Quasares e estrelas

até uma nova explosão
que fez um outro universo,
selado por nossa união,
fechado por nossos SEGREDOS.

Para seu espanto, embora a letra fosse a sua, a última palavra estava escrita em uma graciosa letra e destacada em escrita maiúscula que não era a sua.
Alguém lhe pedia segredo. Ele sabia bem o que tinha vivido. Não contaria a qualquer mortal!
A lenda da Cruviana permaneceu como tal! Ninguém sabia que ele fora capaz de olhar à medusa e não ficar petrificado!
O último poema do caderno foi publicado! Mas ninguém suspeitava que ele o vivera!

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segunda-feira, janeiro 2, 2012 - 18:06

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Chico Costa

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