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Triângulo de Quatro Lados


 

CAPÍTULO I
Ainda se ouviam os copos a tilintar na mesa de carvalho maciço, após o murro desferido pelo Maneta, quando retiniu a campainha da porta lateral e o coração lhe deu, instantaneamente, dois pulos descontrolados.
Quem poderia ser àquela hora que, embora não exageradamente tardia, não era habitual para visitas?
Seria ela?
Talvez fosse ele...
O seu coração baloiçava entre o desejo de a ver, de estar com ela, de poder, mais uma vez, desfrutar da sua agradável e estimulante companhia e a provável e receada hipótese de ser ele, aquele espinho cravado na sua vida. Àquela hora, era mais provável que a inesperada visita fosse a dele.
Entretanto, todos os presentes tinham levantado, em uníssono, a cabeça como resposta automática àquele som estridente e perturbante, porque imprevisível. Todos, não, que o Tó Marmelo era mais surdo que uma porta.
Ele pediu licença, levantou-se e dirigiu-se, em grande desassossego, para a porta lateral, pois fora de lá que ressoara a campainha.
Se era ela, o que a poderia trazer ali àquela hora a não ser um inesperado problema? Sim, ela não viria a horas tão inusitadas sem que a isso fosse levada por uma razão muito forte pois sabia que ele a não poderia receber sem correr sérios riscos de aumentar, ainda mais, o vendaval de instabilidade que grassava no seio da tumultuosa comunidade que pastoreava.
Por outro lado, se fosse ele, já podia adivinhar mais uma tentativa de ataques soezes e violentos, mais um episódio a suportar com paciência mas, também, com firmeza. Esta noite, porém, não poderia atender nem uma nem outro. Fosse quem fosse, teria que esperar por uma noite mais calma. O ambiente já era de tal maneira tenso que o seu cansado e abatido espírito não saberia suportar mais embates sem sucumbir. Eram nove horas da noite e, desde as sete da tarde que, intimamente, se debatia sobre a maneira de lhes fazer ver como estavam enganados. Porém, ainda não tinha conseguido coragem nem oportunidade para começar. Estava demasiado alquebrado. Por isso, já não tinha força nem vontade para atender...
A campainha soou mais uma vez e ele, que, sem se aperceber, tinha parado no meio do corredor sombrio, apressou o seu caminhar arrastado a fim de se livrar rapidamente da visita inesperada e, possivelmente, indesejada.
Quando pegou na maçaneta da porta, o seu pensamento baloiçava entre a ansiosa expectativa de que fosse ela e o inquieto receio de ser ele. Decidido a acabar rapidamente com a dúvida, abriu a porta, preparando-se para avançar com uma firme e, porventura, dolorosa recusa.
O choque foi tão grande que o deixou, literalmente, boquiaberto. Há pelo menos vinte anos que a não via. Nada sabia a respeito desse período da sua vida. É verdade que tinham tido uma história, um grande caso, quando eram os dois muito mais jovens. No entanto, após forte desacordo, as suas vidas tinham-se separado irremediavelmente e cada um tinha seguido o seu caminho sem notícias do outro. Ele ainda tinha tentado saber do paradeiro dela, seis anos mais tarde, mas em vão. Nunca mais lhe conseguiu descobrir a morada nem o rumo de vida. Vinte e três anos passados, ela estava na mesma: alta, esbelta, fresca, apesar dos seus quarenta (seriam quarenta e um). E o cabelo! Tão loiro como antes. Tantos momentos bons lhe passaram pela mente. Que fazia ali? Que quereria? Como o descobrira? A garganta ficou seca, o coração partiu à desabrida, o estômago contraía-se espasmodicamente, o seu pensamento entrou em círculo...
Foi ela, mais uma vez e como sempre, que tomou a iniciativa e perguntou:
- Vais-me deixar aqui a ganhar raízes?
Ele apercebeu-se da figura que estava a fazer e, desculpando-se embaraçado, cumprimentou-a fugazmente e convidou-a a entrar. Não sabia o que dizer. A sua resoluta vontade de mandar a visita de volta desvaneceu-se num ápice. Ficou, como sempre ficara, sem vontade própria. Não conseguia reagir. O seu mundo interior começou a tremer...
Não podia ser verdade. Ela não tinha o direito de aparecer agora, quando ele estava mais desprotegido e abalado. Já tinha sofrido muito por causa dela e, nesta tão conturbada fase da sua vida, não tinha capacidade para resistir a mais embates e tormentas. O seu barco ameaçava já, há muito, naufragar. Pensou em abrir, de novo, a porta e indicar-lhe o caminho da saída, mas foi incapaz. Ela sempre prevalecera sobre ele. Sempre fora muito mais forte. Bem... quase sempre. Uma vez, uma única vez, ele tinha dito não e ela esfumara-se da sua vida para sempre. Pelo menos até àquele momento. Agora, não sabia o que o esperava. Seria outro período conturbado e cheio de dúvidas? Nem ele nem ela tinham, agora, dezoito anos. Ele já tinha quarenta e cinco invernos e muito tempo de solidão robustecedora. Não se deixaria, de novo, enredar na teia por ela urdida. Teria sido ela a urdir a teia ou foi ele que ajudou a erguer um monumento ao amor? Fosse como fosse, não voltaria a acontecer.
Embasbacado, retorcia as mãos sem nada dizer e, de olhos cravados nela, não conseguia articular qualquer palavra. Ainda se sentia subjugado pela sua presença. Ela, por seu turno, também não parecia muito à vontade. Como nós mudamos com o tempo!
- Desculpa este meu ar atarantado, forçou-se ele a dizer. Não contava contigo. Que te traz por cá? Por onde tens andado? Que fazes na vida?
- Espera, retorquiu ela. Respira um pouco e deixa-me, também, olhar para ti. Estás com um ar abatido o que, dados os problemas com que te tens debatido, não admira nada.
- Onde moras? Por onde tens andado? Há quanto tempo sabes de mim? Como sabes dos problemas que tenho tido? Quem te contou?
- Continuas com esse teu costume de fazer dez perguntas sem esperar pela resposta. Acalma-te! Ainda agora cheguei e já queres saber tudo de uma assentada?! Vamos ter muito que contar e vamos ter tempo para isso, não te preocupes. Por agora, vim apenas dizer-te que estou aqui para te ajudar a tentar salvar o que me parece a caminho do descalabro. Não posso permitir que isso te aconteça.
Fez uma pausa como que a aguardar que ele dissesse mais alguma coisa, mas ele estava mudo. Admirava-se do mutismo que nele não era nada habitual. Lembrava-se, com nitidez, de como ele era falador. Era, dizia ele então, com receio de que ela se fosse embora e, assim, falava e inventava assuntos para a poder prender mais tempo junto de si. Ela, agora, também não sabia como continuar a conversa e, por isso, deixou arrastar, languidamente, o tempo e aproveitou para olhar bem para ele. Estava, de facto, mais abatido, mas havia uma coisa que não tinha mudado: aqueles olhos vivos. Apesar de todo o esmorecimento que o subjugava, os olhos continuavam ardentes como sempre, embora algo menos brilhantes.
Visto que ele nada dizia, ela decidiu, com grande dificuldade e mágoa, retirar-se. Por isso, acrescentou:
- Estou hospedada na pensão da Henriqueta e ninguém sabe que te conheço. Espero que assim continue. Agora, vai lá enfrentá-los de novo e não te deixes vencer. Mas presta atenção porque nem todos estão contra ti. Olha bem para o Alfredo da Margarida e para o Xico da Antónia que eles estão contigo. Já agora, quando te perguntarem quem era diz-lhes que era um desconhecido a inquirir onde podia passar a noite. Espero ver-te amanhã.
E saiu por onde entrara, sem qualquer sinal de despedida a não ser aquele terno e doce olhar que ele, apesar do tempo decorrido, ainda recordava e lhe continuava a causar frémitos no peito. Fez a íntima promessa de não usar, junto dos seus convivas, o argumento por ela indicado quanto à identificação da visita. Já havia mentiras suficientes naquela terra.
Quando regressou para junto dos seus comensais, não se verbalizaram as perguntas que lhes ensurdeciam as preocupações, mas isso também não foi necessário. Os seus olhares eram mais expressivos que qualquer questionário que pudesse ser feito. Assim, sentiu-se compelido a dar uma explicação, pese embora a grande agitação em que mergulhara.
- Era um desconhecido a perguntar por um lugar onde pernoitar. Claro que lhe indiquei a pousada da D. Henriqueta, visto que é a mais limpa e a mais acolhedora. – Lá se fora a promessa...
“E a que lhe dá mais lucro” quase se ouviu a maioria deles a pensar “e, para ser um forasteiro, a conversa foi bem longa”.
No entanto, todos pareceram aceitar a explicação com a maior das naturalidades. Bem, quase todos...
- Era alguém conhecido? Gritou o Tó Marmelo.
- Não, respondeu-lhe o Alfredo.
- Era ou não?!
- Não, respondeu o Alfredo, agora em tom bem mais alto.
- A conversa foi bem comprida!...
- E depois? É crime?!
- Não. Era só p’ra saber. Aparecer na porta lateral, a estas horas...
- Vamos ao que interessa que isso não nos diz respeito.
Num tom mais sóbrio, acrescentou:
- É claro que todos nós sabemos o que aqui nos trouxe. No entanto, até agora, ainda ninguém foi capaz de pôr o dedo na ferida. Só ali o Maneta é que ia começar a conversa quando a campainha nos interrompeu. Vamos lá, Maneta, começa outra vez, mas vê lá se não dás cabo da mesa de carvalho que ela é do tempo dos nossos avós e não é para destruir a murro. – Tentava amenizar o ambiente mas sem resultado aparente.
O Maneta mexeu-se na cadeira, agora menos à vontade, pigarreou e preparava-se para recomeçar a conversa quando o Xico o fez parar com um gesto brusco e autoritário para lhe recomendar:
- Vê lá se dizes coisa com coisa e se tens os pés bem assentes na terra. Está na hora de nos deixarmos de tretas e dizer ao que viemos para ver o que levamos.
- Que é que queres dizer com isso?
- Só o que disse. Não te deixes levar por fantasias nem por ideias feitas. Fala só daquilo que conheces e de que tens a certeza. Boatos e mexericos não são para aqui chamados.
Ele bem sabia do que falava. De há um ano a esta parte que aquela terra vivia mergulhada em mentiras, invenções, maledicências e “conversas secretas”.
Tudo tinha começado por alturas da festa da Senhora do Calvário, no mês de Setembro passado. Alguns tinham, ainda, bem presentes os primeiros rumores: “O padre anda metido com a Rosária!”. O que muito poucos sabiam era a razão desses boatos. Uns diziam que lhes tinham dito que a tinham visto a sair da sacristia a abotoar a blusa. Outros afiançavam que alguém tinha dito tê-la visto sair da casa paroquial mais corada que um tomate maduro. Outros ainda asseveravam que era voz corrente ela estar muito mudada. Outros... Enfim, uma algazarra tremenda de “ouvir dizer”. Ninguém, no entanto, assegurava ter visto fosse o que fosse. Diziam apenas: “Se é o que eu vi, não é nada, mas se é o que eu oiço, Deus nos acuda!”.
Ainda levou algum tempo até que o boato fosse generalizado. Pelo Natal, ainda havia muita gente que nada sabia a esse respeito. Pelo Carnaval, no entanto, as quadras que era costume colocar no peito do Entrudo já referiam abertamente o “enrolanço”. Uma das quadras dizia:
“Andamos todos ceguinhos
E não vemos o enrolanço
Dizem os nossos vizinhos:
‘Olha que povo tão tanso! ‘”
A partir desse dia, começou a ser comentada, por toda a freguesia, a famosa quadra e o boato que lhe dera ser. Ninguém sabia quem tinha sido o autor. As suspeitas recaíram, sempre, no Maneta, mas como ele era viúvo e morava sozinho na sua casa escondida para lá do monte do Espigueiro, ninguém podia dizer se tinha sido ele ou qualquer outra alma danada. Fosse quem fosse, tinha prestado um rico serviço à paz da aldeia. Andava tudo, desde essa data, em alvoroço constante. “Então não querem lá ver... A lambisgóia... Quem havia de dizer! Até parece mentira. Toda falinhas mansas e olha no que ela deu! Ele há cada coisa!...”. É claro que o padre também não escapava aos comentários. “Não se admite! Alguém o obrigou a ser padre?! Porque se ordenou se queria andar na pouca-vergonha?”. Alguns, para se mostrarem mais “ideias largas”, ainda contemporizavam: “Ele é um homem como os outros. Também tem as suas necessidades. Mas, é claro que bem podia ter mais cuidado e, se queria fazer uma coisa dessas, devia esconder-se para não dar tanto nas vistas. Assim, é um desaforo. Mesmo nas nossas barbas!”.
Assim corriam as frases e as vozes sempre em voo picado. Até esta noite, porém, ninguém tivera a coragem de, olhos nos olhos, dizer o que pensava.
Esse era o tema que tinha juntado à volta da mesa do pároco aqueles que eram os opinion makers da aldeia.
Também eles, tal como o resto da freguesia, estavam divididos nas opiniões e nas soluções a adoptar para ultrapassar aquele entrave à paz que ali sempre prevalecera.
O Maneta, Frederico da Silva Rosmaninho, de seu nome, devia a alcunha ao facto de ter ficado sem a mão esquerda numa rixa travada, há muitos anos, com um forasteiro que, com a agilidade com que se tinha apresentado, também se retirara. A briga incluíra navalhas de ponta-e-mola e o Frederico tinha sido gravemente ferido. Como se não tinha curado convenientemente, a gangrena fizera o resto do trabalho.
Na opinião dele, mandava-se o padre embora e a rapariga que fosse também que se não perdia grande coisa. Desde que ela se deixara embeiçar pelo padre, nunca mais o recebera. Ele nunca tivera sorte com ela, mas o Marmelo gabava-se de ter tido este mundo e o outro e a vez dele, Frederico, também haveria de chegar. Antes de os mandar embora, porém, havia uma coisa que ele gostaria de fazer: metê-los numa gaiola, em cima de um carro de bois e passeá-los pela aldeia, num Domingo à tarde. Devia ser um espectáculo e peras. E se fossem nus?! Isso é que era bestial!
O Alfredo da Margarida, Alfredo Cavalcanti de Novais e Sousa, cuja avó materna era brasileira, era, talvez, o mais calmo e mais ponderado do grupo. Os muitos invernos também o ajudavam a manter a serenidade. Comedido como era, preferia ouvir, primeiro, as explicações e, só depois, tentar encontrar uma solução que fizesse retornar a serenidade à aldeia e ajudasse a, calmamente, aquietar o passado recente. Nada de precipitações. As coisas poderiam muito bem não ser o que pareciam.
O Tó Marmelo, António Lourenço Boavida, devia o seu cognome ao facto de sempre se fazer acompanhar de um pau de marmeleiro, o que, de algum modo, indiciava o seu temperamento violento. Quanto a ele, a coisa resolvia-se em dois tempos: aqueciam-se bem as costas ao padre, ia-se falar com o bispo (mandava-se ir, que ele não punha lá os pés!) e ele que mandasse o padre para onde quisesse, desde que fosse bem longe dali. A rapariga, essa podia voltar ao que era antes que não lhe desagradava, muito embora, em boa verdade, nunca tivesse provado nada. Mas, com tempo, haveria de saborear e, de qualquer maneira, os outros não tinham nada que saber do seu insucesso. Era preciso não deixar a sua imagem degradar-se.
O Xico da Antónia, Francisco Rodrigues de Bemposta, comerciante e, muitas vezes, confidente e conselheiro dos moços da aldeia, estava mais a par da vida amorosa da terra do que o padre acerca da vida religiosa da sua comunidade. Na sua perspectiva, o assunto não era tão simples como queria parecer. As coisas, por aquilo que os rapazes lhe contavam, estavam mesmo sérias. A moça tinha fechado a porta a todos e agora só via o padre. Não é que ele se preocupasse muito com o que o padre fazia mais a moça, mas os rapazes tinham o sangue na guelra e eram capazes de não perdoar ao padre a safadeza. Se é que ele tinha feito alguma coisa de errado porque as coisas poderiam não ser favas contadas. Às vezes, o que é não parece e o que parece não é. Hoje é que se ia tirar tudo a limpo, assim ele se não chamasse Francisco.
Estes quatro membros da aldeia estavam, a convite do Pe. Josias, pároco da aldeia havia 17 anos, reunidos à volta de uma mesa bem abastecida e bem regada. A refeição, no entanto, não tinha servido para aligeirar os espíritos sombrios pese, embora, a sua quantidade e excelente qualidade.
A tensão e constrangimento iniciais ainda se mantinham, visto só agora se ir passar ao assunto principal do encontro.
O Maneta, agora mais calmo por força, em parte, das palavras do Francisco, aclarou de novo a garganta e começou:
- Diga-me Pe. Josias, quando o senhor se formou como padre fê-lo depois de pensar bem no que se ia meter ou foi empurrado por alguém?
- Meu amigo Frederico, retorquiu o Pe. Josias, a opção pelo sacerdócio não é um passo que se possa dar de ânimo leve e, muito menos, para fazer a vontade seja a quem for. A vocação não é algo que se possa forçar. Se alguém quiser seguir uma vocação qualquer só para agradar seja a quem for, arrisca-se a viver uma vida de mentira e de frustração. De qualquer maneira, a que propósito vem essa pergunta?
- Eu sempre pensei que os padres, quando se formavam, o faziam bem esclarecidos e avisados de que tinham que deixar alguma coisa de lado. No seu caso, porém, parece-me que o senhor quer ter “sol na eira e chuva no nabal”.
- Explique-se melhor, Frederico.
- Eu explico e bem depressa. Eu sempre ouvi dizer que vocês, quando vão para padres, deixam de lado aquilo que chamam os “prazeres da carne”. Ora, parece-me que o senhor quer ser padre e, ao mesmo tempo, ter quem lhe alivie o peso da carne.
- Não estou a perceber o que quer dizer...
- Ah não?! Como se nós fôssemos estúpidos! Então, a Rosária não tem nada a ver com os prazeres da carne?
- Mas, é claro que não. Como se atreve, sequer, a pensar uma coisa dessas duma moça tão recatada, tão interessada pelos autores sagrados, pelos grandes pensadores cristãos?!
- Tão recatada?! Ela?! Pelo que ela se interessa sabemos nós, não é Marmelo?
- Bem, responde o António avançando o queixo, eu não sei se é tanto como dizem, mas que da fama se não livra lá isso é verdade. Ò senhor padre, explique-nos lá como é que ela, assim de repente, deixou os namorados que tinha e que eram mais de meia dúzia e se começou a interessar tanto por essas coisas dos livros e da igreja? Ninguém me tira da cabeça que aquilo por que ela se interessa está bem mais perto do seu cinto do que do seu pescoço.
- Alto lá, bradou o Pe. Josias desferindo forte palmada na mártir mesa de carvalho. Aqui nesta casa não admito baixezas. Isso que o António acaba de dizer é de uma indignidade a toda a prova. É claro que cada um só fala daquilo que lhe vai na cabeça, mas posso assegurar-vos que, comigo, nunca a Rosário teve qualquer tipo de atrevimento ou de conversas menos próprias, a não ser para se instruir. É verdade que, às vezes, os temas das nossas conversas deixam os terrenos espirituais e mergulham em aspectos bem mais mundanos, mas isso é normal. Ao fim e ao cabo, o ser humano é carne e é espírito. É e será sempre uma dicotomia.
- Uma quê?!
- Uma dicotomia, um ser composto de duas facetas: a material e a espiritual.
- A faceta espiritual da Rosária deve andar muito escondida.
- Estais enganados! Já alguma vez algum de vós se preocupou em lhe perguntar o que a fazia visitar-me?
- Ò senhor padre, interrompeu o Alfredo, há certas coisas que não é preciso perguntar. Estão à vista de toda a gente.
- Aí é que reside o grande problema! Não temos coragem, nem humildade, para perguntar aos interessados o que realmente se passa, mas somos capazes de levantar as maiores calúnias sem qualquer remorso e sem pensar no mal que isso pode causar. Pela parte que me toca, fico muito triste pois isso faz-me compreender como a minha missão no vosso meio tem sido mal sucedida.
- Estou convosco há dezassete anos e, apesar de todas as homilias que vos fiz, de todos os pensamentos que convosco partilhei, da vida que convosco convivi, a mentira, a maledicência, os ódios e as discussões continuam a medrar no vosso seio. No entanto, não é isso que vos tenho tentado transmitir ao longo de todos estes anos.
- Isso, disse o Marmelo, é por causa daquela história do frei Tomás: “Fazei o que ele diz e não o que ele faz!”. O seu exemplo não tem sido lá grande coisa. As noitadas na pousada do Carvalheira, as conversas, às escondidas, com a Rosária, as escapadelas todas as Quintas à noite para ir sabe Deus aonde...
O Pe. Josias ficou sem fala. Como era possível haver tanta maldade? Como se pode descer tão baixo no julgamento do nosso semelhante? Como podemos de tal modo aviltar acções tão nobres? É verdade que nunca tinha dito a ninguém onde ia todas as semanas, mas também nunca lhe passara pela cabeça fazer isso. A sua privacidade não podia desaparecer completamente e a explicação não merecia muita publicidade. Pelo menos era o que ele tinha pensado
Valeria a pena, agora, preocupar-se com isso ou já seria tarde demais? O seu coração pulsava frenética e atabalhoadamente, o seu espírito quase parou com o choque, o seu corpo esmoreceu totalmente. Este deve ter sido o golpe mais rude da sua vida. Depois de tantos anos a tentar levar àquela gente a mensagem do Amor, da Paz, do Perdão, da Partilha, o resultado era o inverso.
Teria sido tudo em vão? A sua missão tinha sido um fracasso tão rotundo? Talvez...
No entanto, mantinha a esperança de que nem toda a gente assim pensasse. Estes quatro homens, que, de certa forma, representavam as tendências mais significativas da sua comunidade, também não estavam todos de acordo. Parecia-lhe ler divisões entre eles, o que significava que, no seio da sua comunidade, também haveria quem dele não fizesse tão negro juízo. Tinha a impressão de que o Francisco e o Alfredo, como ela lhe tinha dito, eram sinceros no seu desejo de esclarecimento e o António, apesar do seu ar violento, não deixava de ter um bom coração. Tentou reagir ao torpor em que tinha mergulhado e compeliu-se a lançar alguma luz sobre os temas que o António tinha lançado para cima da mesa. Pelo menos sobre alguns deles. Veria se seria capaz de preservar algum sem necessidade de esclarecimento. O seu cérebro recomeçou a funcionar a uma velocidade cada vez maior a fim de encontrar a melhor forma de acalmar os ânimos exaltados. A tarefa, porém, afigurava-se-lhe hercúlea.
- Parece-me, começou por dizer, que tenho algumas culpas na falta de esclarecimento, mas isso deve-se, tão-somente, ao facto de nunca me ter apercebido das diversas interpretações que os meus actos poderiam ter. Enquadra-se aqui o velho ditado que diz que “quem não deve, não teme”.
- Vamos, então, começar por uma ponta para ver se deslindamos o fio à meada.
- As minhas noitadas na pensão do Carvalheira têm como único objectivo o de tentar aproximar-me dos membros da minha comunidade que andam mais afastados da igreja. Como é que posso atrair as pessoas para a casa de Deus se fugir delas? Só estando no meio do povo consigo fazer com que esse mesmo povo ouça a minha voz. Se eu me fechar na sacristia, nunca verei mais ninguém a não ser aqueles que por lá passam. Como é que posso compreender e tentar ajudar um irmão que necessite de mim se me encontrar longe dele? O pastor deixa as noventa e nove ovelhas no redil e vai à procura da única que lhe falta. Que lhe parece, Frederico?
- Bem... realmente... mas aquele ambiente não é lá muito próprio para os padres...
- Pois não. Mas, também não é muito próprio para os pais de família que lá se deslocam à noite, nem para os maridos que deixam as suas esposas em casa e se entregam, lá, a outras mulheres. Não foi isso que eles prometeram no dia do casamento. Ao dizer isto, olhava insistentemente para o António que, entretanto, tinha perdido muito do seu inicial ar arrogante.
- Vocês mesmos são testemunhas de que, embora muito lentamente, tem valido a pena. É ou não verdade?
- Como é que vocês querem que eu saiba ajudar os meus paroquianos se não conhecer os problemas que eles enfrentam?
- E, já agora, o dinheiro que a Henriqueta, da outra pensão, lhe dá todos os meses? Perguntou o Maneta. Serve para ela comprar o céu? Ou é para calar a sua consciência?
- Nada disso! Antes de mais, esse dinheiro não é para mim.
- Para mim é que ele não é, diz o Marmelo. Ao fim e ao cabo, o envelope vai para o seu bolso.
- Pois vai, mas no dia seguinte sai do meu bolso e segue para a farmácia da Leopoldina para abater às contas dos medicamentos da Maria da Costa, do Álvaro Cunha e do Fernando Melo, entre outros. Ou vós pensáveis que a Leopoldina lhes oferecia as sacadas de medicamentos que eles, todos os meses, levam para casa?
- Porque é que vós não sois capazes de aceitar que os outros também podem ser bons? Que nem tudo se pode medir pela vossa cabeça? Que há espaço no mundo para outras formas de pensar e de viver? Que outros valores podem representar muito para outras pessoas?
- Espere lá, disse o Xico, quer dizer que esse dinheiro, que toda a gente sabe que a Henriqueta lhe dá, não segue para a sua conta bancária?
- É claro que não! Nem um único tostão. Esse dinheiro vai todo para a Farmácia da Leopoldina e, a maior parte das vezes, não chega.
- E quando não chega, pergunta o Marmelo, o que é que faz? Vai com um saco pedir?
- Não, António, vou às minhas poucas economias e tento completar o que falta. É muito mais importante a saúde dos meus paroquianos do que o dinheiro na minha conta bancária.
- Dos seus paroquianos, é como quem diz... O Álvaro não deve ser lá grande paroquiano...
- Porque dizes isso? Só por ele não frequentar a igreja? Isso quer dizer que já não é filho de Deus e, portanto, já não merece o nosso amor? Sabes, António, “são os doentes e não os sãos quem precisa de médico”.
- Lá isso é verdade...
- Bem, tornou o Alfredo, essa questão do dinheiro está esclarecida, mas e essa história com a Rosária? Quer-me parecer que deve estar muito mal contada. Vamos lá a ver se a gente entende o que se passa.
- O que se passa, diz o Maneta, está à vista de toda a gente. A rapariga gosta dele, ele gosta dela, ainda por cima são ambos solteiros...
- Está calado! Deixa falar quem vive o assunto por dentro!
- Ó Pe. Josias, explique-nos lá essa apetência pelas coisas do céu numa rapariga daquelas. É que, aquilo que a gente conhecia nela, pelo menos por aquilo que se ouvia, não tinha lá muito a ver com as coisas do espírito. Aparentemente...
- Bem, o que se passa é o seguinte:
- A Rosário, quando se me apresentou pela primeira vez, vinha, ao que me disse, com um problema por causa dum namorado que queria ir longe demais com ela e ela não estava pelos ajustes
- Só se estivesse muito doente, disse o Maneta virado para o Marmelo.
- Maneta, já te mandaram calar essa boca, ripostou o Xico.
- Continuando...
- Quando ela me apareceu com essa conversa, eu não a conhecia nem me lembrava de a ter visto ali na igreja. Quando lhe disse isso mesmo, ela afirmou-me que costumava ir à missa à igreja do Pe. Ferreira e que, se calhar, era por isso que me não lembrava de a ver aqui na igreja, mas que, sim senhor, de vez em quando, também aqui vinha. Sendo assim, perguntei-lhe porque é que, agora, se tinha lembrado de me visitar. Porque, disse ela, tinha ouvido a minha homilia no Domingo anterior e isso despertara-lhe muita confiança em mim. Como não conhecia a moça, limitei-me a aceitar a explicação embora, a verdade tem que ser dita, me tenha custado a acreditar. É que, nesse Domingo em particular, eu nem me tinha sentido muito inspirado. Ficámos a falar mais algum tempo sobre coisa nenhuma e cada um seguiu o seu caminho.
- A partir desse dia, as visitas da Rosário passaram a ser muito frequentes e eu comecei a ver que ali havia terreno para lançar a Palavra de Deus de uma forma mais profunda. As conversas foram-se desenrolando (e o Maneta a pensar: “E vocês foram-se enrolando...”) e comecei a ver que, embora os conhecimentos da doutrina e da vida da igreja não fossem nada de espantar, a vontade de aprender parecia-me sincera. Está bom de ver que não podia desperdiçar a oportunidade de ajudar mais uma pessoa sedenta de encontrar a Verdade (“A gente sabe...” pensava o Marmelo).
- Comecei, então, a transmitir-lhe os ensinamentos mais importantes da vida cristã. Pouco a pouco, fui-me apercebendo que a Rosário tinha, por mim, um sentimento que se não podia chamar exactamente “confiança”. (“Cá está!” gritou o Maneta para os seus botões, “eu tinha razão!”). No entanto, eu já não era criança, tinha a minha fé bem estruturada e alicerçada e senti que não corria perigo pois tinha toda a confiança em mim e no suporte divino. Sabia até onde podia ir sem correr perigo de me perder. (“Pois…”, pensou o Marmelo)
- Continuei a apresentar a doutrina cristã e a aprofundar cada vez mais os ensinamentos bíblicos de molde a desviar-lhe as ideias para coisas bem mais importantes do que aquelas que ela pretendia. Se me perguntais se isso foi sempre um mar de rosas, é claro que a resposta é completamente negativa. A Rosário não é nenhum mostrengo, nem nada que se pareça. Posso, no entanto, garantir-vos que os nossos encontros nunca tiveram nada que não pudesse ser presenciado por toda a comunidade. Uma vez ou outra, a Rosário tentou alguns avanços numa direcção que não era a que me interessava, mas eu sempre lhe fiz ver que a minha missão na paróquia não era essa mas, apenas, anunciar o Evangelho e levar o amor de Deus aos meus irmãos. Nem sempre foi fácil, mas todos vós sabeis que a vida raramente é fácil.
A história continuou a desdobrar-se, os argumentos foram-se sucedendo e o Pe. Josias espraiou a sua alma diante daqueles quatro paroquianos sedentos da verdade. Pelo menos alguns deles. Os homens estavam mudos e quedos. Seria mesmo possível que, aquilo que estavam a ouvir, correspondesse à verdade? Não seria, antes, mais uma artimanha para desviar as atenções do pessoal? No entanto o Pe. Josias parecia absolutamente sincero. Seria um actor assim tão bom? Podia ser. Realmente, a rapariga tinha deixado os namorados todos e o Xico estava bem a par disso. Só que, toda a gente pensava que isso era por causa da paixoneta pelo padre. Seria verdade ela ter mudado assim tanto? Não seria a primeira... Estes pensamentos atropelavam-se nas cabeças do Alfredo e do Xico.
Nas mentes do Maneta e do Marmelo, a confusão estava instalada. Não cabia na cabeça de ninguém, pensavam eles, que um homem e uma mulher estivessem juntos num sítio privado sem que isso metesse sexo pelo meio. Só essa faltava! Quando a ocasião aparece, não se pode perdoar. Pelo menos, era o que eles faziam quando podiam. Para que é que o homem foi feito?! Da parte do padre, seria só o interesse pela parte espiritual dela? Essa era difícil de aceitar. Como ele próprio tinha dito, ela não era nenhum estafermo e “um homem não é de ferro”. Ele devia-se ter aproveitado bem da fraqueza dela por ele. Eles eram todos uns manhosos de primeira. Olá se eram!
Mas, o raio do padre parecia sincero de mais e eles já tinham visto de tudo na vida. Às tantas tinham andado a julgar o homem por aquilo que ele não tinha feito. Era quase impossível terem estado juntos, sozinhos, e não terem aproveitado. A não ser que lá no seminário lhe tivessem feito alguma coisa. Vá-se lá saber. Os padres são capazes de tudo...
Quando o Pe. Josias se calou, ficou tudo no mais profundo e estrondeante silêncio. Até a própria noite se parecia ter calado de forma gritante.
No meio deste silêncio ensurdecedor, ninguém se atrevia a olhar directamente para o Pe. Josias. De repente, todos tinham descoberto um qualquer problema nas unhas das mãos, nos botões da camisa ou na ponta das botas. Não era fácil enfrentar um homem que tinha exposto tanto o coração. A uns ainda lhes custava a acreditar, aos outros doía-lhes por não terem tido a coragem de, há mais tempo, confrontarem o pároco com as dúvidas que os assaltavam. A situação estava a tornar-se embaraçosa e o Pe. Josias, que aguardava outro tipo de reacção, talvez mais explosiva ou mais interrogativa, também não sabia muito bem como devia continuar a conduzir o encontro uma vez que o esforço a que se sujeitara o tinha deixado muito debilitado.
Para tentar ultrapassar esta barreira de mutismo que se tinha instalado, pegou na garrafa de bagaço e começou a oferecer aos seus comensais que, um a um, foram apresentando os seus cálices. O Alfredo, que tinha sido o iniciador deste desabafo, bebeu um longo, vagaroso e pensativo gole da bebida espirituosa e, olhando para o seu pároco, disse:
- Ainda me custa a acreditar naquilo que oiço e mais me pesa por não ter tido a franqueza de, logo ao princípio, vir ter consigo para, directamente, perguntar o que hoje perguntei. Não me sinto bem de mais comigo mesmo nem diante dos meus conterrâneos.
- Não é nada que não possa ser remediado, diz o Xico. Ao sairmos daqui, (e já são bem horas) levamos material mais que suficiente para meter ordem no meio desse povo que anda tão exaltado, quer seja para dar sossego aos mais confiantes quer para calar as bocas mais sujas. Não é Maneta?!
- Não sei o que queres dizer com isso. De qualquer maneira, o povo não é completamente cego e bem vê o que se está a passar.
- Ò homem, tu ainda não percebeste que o que se está a passar, não é o que parece ser?!
- Eu sei lá. Já não sei o que hei-de pensar...
- E, diz o Alfredo, não tens nada a pesar-te na consciência? Nem tu Marmelo?
- Deixa cá o Marmelo em paz que eu já estou como o tolo no meio da ponte. Não sei para que lado me hei-de virar. Aquilo que se vê, realmente, também dá para ser aquilo que aqui o padre diz que é, mas é muito difícil. Olha um homem e uma mulher juntos e... Mas, pode ser, sei lá.
- Quando a consciência nos pesa, por vezes ficamos assim.
O Pe. Josias, entretanto, ia bebericando pausadamente do seu copo enquanto passeava, demoradamente, o arguto olhar pelos quatro convidados. Ficou convencido que as suas palavras tinham calado bem fundo na assembleia presente.
Esperava, por isso, que o problema que ainda faltava abordar ficasse para outra vez. Agora tinha um outro assunto a ocupar-lhe o pensamento e não se sentia com muita vontade de adiar, por mais tempo, a reflexão que se propunha fazer.
Assim, quando lhe pareceu que tinha chegado o momento mais oportuno, levantou-se e deu a entender que a reunião tinha chegado ao fim.
O Maneta ainda abriu a boca para levantar a questão que tinha ficado em aberto mas, quando olhou para o Alfredo, perdeu a vontade de prolongar o encontro. Os olhos, muitas vezes, são muito eloquentes.
Levantaram-se todos e, quase sem palavras, despediram-se do Pe. Josias, cada um perdido nos seus pensamentos.
Quando fechou a porta nas costas do António Lourenço, Josias permaneceu quieto e imerso em pensamentos galopantes.
Porque teria ela escolhido esta noite para lhe aparecer? Como é que ela sabia que, hoje mais que nunca, ele precisava de apoio? Teria, como disse, vindo para o apoiar? Até que ponto estaria ela informada? Ainda manteria a vivacidade de outros tempos? Lembrava-se, como se fosse hoje, da rapidez do seu raciocínio, da perspicácia daquela mente brilhante. Hoje, talvez por causa do seu próprio estado de espírito, pareceu-lhe mais quebrantada. Como não sabia nada dos últimos anos da sua vida, não fazia a mínima ideia das peripécias que teria vivido. Por onde teria andado? Estaria casada? Teria filhos? Nem sequer lhe tinha olhado para a mão esquerda. Continuava o mesmo distraído de sempre para estas coisas. Uma vez que ela estava hospedada na pensão da D. Henriqueta, não seria difícil de contactar. Mas, ela tinha dito que gostava de continuar incógnita e, por isso, tinha de descobrir uma maneira de fazer com que o encontro parecesse fortuito. Para problemas já tinha os suficientes. Não precisava de mais. Tudo teria que ser muito bem planeado, mas agora estava demasiado esgotado para isso.
A noite costumava ser boa conselheira. Deixaria para amanhã o planeamento, se já tivesse forças suficientes. Talvez durante o sono o seu subconsciente lhe encontrasse uma boa saída. Não seria a primeira vez.
Foi para o quarto, rezou as suas orações da noite e meteu-se entre os lençóis de linho de que a sua irmã tão carinhosamente cuidava.
O sono, porém, teimava em se manter arredado. Dava voltas e mais voltas e a vigília mantinha-se dado que ela teimava em manter-se-lhe diante dos olhos. O sonho e a vigília foram-se confundindo e, por fim, ele apenas via uma cabeleira loira e aveludada a envolver o seu corpo como um lençol macio. Foi com esta imagem que, tardiamente, mergulhou num sono agitado e pouco retemperador.

CAPÍTULO II
Quando se retirou da sua presença, quase teve um desmaio devido ao tremendo esforço que fez para se controlar enquanto conversava com ele. Ainda agora não sabe como conseguiu reunir forças para aparentar o ar sereno que, pensa, conseguiu fazer passar.
Já suspeitava que ele, aquele adorado Josias, ainda poderia, após tantos anos, exercer a mesma influência estonteante. No entanto, o esforço que teve que desenvolver foi maior que o esperado.
Todo o seu corpo fremia. Mal se aguentava nas pernas. Teve que parar, encostada ao que lhe pareceu ser o muro do jardim, para recobrar as forças que se esvaíam do seu corpo torturado. Esperava que as suas pulsações regressassem para mais perto do normal, muito embora, desde que, há um mês, tomou conhecimento, casualmente, da localização do homem dos seus sonhos, elas nunca mais estabilizassem num ritmo normal.
Tantos anos tinham passado sem que os seus devaneios deixassem de estar povoados por aquele corpo que nunca foi seu, embora, esporadicamente, o tenha possuído. É estranho como a vida dá tantas voltas e, a maior parte das vezes, nos leva para bem longe dos nossos planos.
Ainda hoje é, para ela, um milagre a forma como tomou conhecimento do paradeiro do homem da sua vida. Não que ela acreditasse em milagres...
Na cidade vizinha, quando passava um fim-de-semana diferente da rotina diária e tentava respirar um pouco afastando-se da sua companheira dos últimos anos, a Zeza, encontrou, acidentalmente, a sua amiga de longa data, a Maria do Amparo, à saída do centro comercial onde tentara gastar o tempo até à sessão de cinema que tencionava frequentar naquela tarde.
A sessão de cinema foi, imediatamente, adiada pois havia muita conversa para pôr em dia e a sua amiga dispunha de tempo para isso.
Conversa vai e conversa vem, eis que surge a informação:
- Sabes, encontrei o teu amigo, o padre Josias?! Por acaso até vive bem perto daqui.
Não foi preciso mais nada para ela esquecer tudo o resto e procurar, cautelosa mas ansiosamente, saber muito mais a respeito daquele que era, ainda hoje, a luz dos seus olhos.
Agora, mais uma vez, a sua vida dos últimos vinte e poucos anos desfilou, vertiginosamente, na sua frente.
Lembrava-se tão nitidamente como se tivesse sido ontem, do dia e da hora em que o conheceu, ainda ele era estudante no seminário maior. Após a missa dominical, naquele primeiro Domingo de Janeiro (eram onze e quinze), passou casualmente, como tantos outros dos paroquianos, pela venda de natal que a paróquia realizava a fim de angariar fundos para a construção do centro para os jovens da paróquia. Ele era um dos encarregados de atender os visitantes que quisessem comprar ou pedir esclarecimentos. Quando os seus olhos se encontraram, saltaram centelhas de todas as cores (pelo menos foi a impressão com que ela ficou) e o mundo ficou a andar à roda, fazendo dançar diante dos seus olhos centenas de arco-íris. Pareceu-lhe (e ele mais tarde confessou que foi verdade) que ele se sentiu, também, meio aturdido e confundido. Ele era bastante acanhado, mas, naquele momento, encheu-se de coragem e foi ter com ela para lhe perguntar se desejava alguma coisa. Ela, apanhada de surpresa, balbuciou que andava apenas a ver e ainda não pensava comprar nada. No entanto, ele queria alongar aquele momento e iniciou um pequeno interrogatório com o intuito de saber como se chamava, onde vivia, se era da área da paróquia, se conhecia os movimentos e confrarias da comunidade, o que a tinha levado até ali… Ela respondeu apenas, admirando-se de tantas perguntas juntas, que tinha passado por ali casualmente e, por mera curiosidade, tinha entrado para ver o que se passava. Visto que a sua curiosidade estava satisfeita, disse, estava na hora de se retirar (embora a sua vontade fosse permanecer ali até a quermesse encerrar). Ele não desistiu e, para poder manter a conversa durante mais algum tempo, pegou numa pequena bola de borracha dizendo que mal pereceria ela ir-se embora sem nada levar pelo que, ele, lhe oferecia aquela pequena lembrança e que voltasse mais vezes que era sempre um prazer receber visitas tão simpáticas.
Foi, então, desviado por outros visitantes e ela, a muito custo, retirou-se do salão não sem antes ter olhado, mais uma vez, para aquele ser misterioso e frágil mas de olhos vivos e alegres.
No dia seguinte voltou à venda de natal, mas ele não estava. Durante o resto da semana passou por lá todos os dias, mas nunca mais o viu. Só no domingo seguinte o descobriu, novamente, como organista do grupo coral. Não era lá grande executante, mas isso era pouco relevante. Ele não se apercebeu da sua presença e, por isso, ela resolveu apresentar-se ao pároco, no fim da missa, para saber se a aceitariam como membro do grupo coral. Muito embora a sua preparação vocal não fosse muita, pensava não ser muito inferior ao que tinha tido oportunidade de apreciar. Foi recebida de braços abertos, que sim, senhora, que fazia muita falta, que era pena os jovens, actualmente, terem medo de cantar, que os ensaios eram às quintas-feiras às 21 horas e que, já agora, a ia apresentar, desde já, ao organista e preparador do grupo.
O coração, tresloucado, lançou-se à desabrida e matraqueava-lhe dentro do peito com tal intensidade que ela teve medo que o pároco o ouvisse, tal era o estrondo que lhe ecoava nos ouvidos. Suspeitava, até, que se notasse por fora do peito o bombear violento do sangue, tanta era a pressão que sentia nas pulsações. Aparentemente, porém, o pároco de nada se apercebeu e, quando se cumprimentaram, ela descobriu, envaidecida, que ele ainda se lembrava dela e disso deu conhecimento ao seu superior. Perguntou-lhe se já tinha perdido a bola que dali levara e ela, tirando-a da bolsa, mostrou-lha dizendo que, por acaso, nunca mais lhe tinha pegado (o que era mentira), mas que a conservava como uma recordação (na verdade, ainda hoje conserva esse objecto de culto). Notou, ao dizer isso, que os olhos dele brilharam ainda mais e se abriram ligeiramente.
A partir desse dia, os encontros entre eles passaram a ser cada vez mais frequentes e ela notou que ele, com o decorrer dos dias, se estava a enamorar por ela correspondendo, desse modo, à paixão intensa que nela tinha desabrochado.
A paixão dele foi-se soltando e foi crescendo e os pequenos gestos do dia a dia foram sendo cada vez mais explícitos. Primeiro era apenas conversa de bons amigos. Depois apareceram os primeiros contactos físicos, tímidos e fugazes. Cresceram para carícias mais desenvoltas e para gestos mais abertos e loquazes.
Ainda hoje recita, como se de uma oração se tratasse, a primeira poesia que ele, ainda meio tímido mas com um ar feliz, lhe ofereceu.
E as palavras fluíram na sua cabeça como se tivessem vida própria:
Tu és minha musa
Da lua o sol
Ideia difusa
Meu barco e farol
Poeta não sou
Palavras não sei
Pintar-te não vou
Por ti cantarei
Palavras suaves
Acorde perfeito
São penas de aves
Que voam do peito

A esta, muitas outras se seguiram durante aqueles quase dois anos mágicos e a todas elas guarda, religiosamente, naquela pasta que nunca larga. A pasta já não é a mesma e os papéis originais, amarelecidos e gastos pelos anos, encontram-se, por uma questão de segurança, guardados no seu cofre. Faz-se acompanhar de cópias que relê, frequentemente, embora já as saiba todas de cor.
Os contactos físicos eram cada vez mais prolongados, mais ousados, mais íntimos e, inevitavelmente, apareceu o primeiro beijo. Foi demasiado rápido, demasiado superficial mas deixou-os momentaneamente inconscientes. Cresceram, os beijos, para contactos mais longos, saboreados demoradamente, para um mais completo reconhecimento dos corpos que, tanto um como o outro, faziam com cada vez maior sofreguidão e vontade de ir mais além. Era o princípio, para ambos e, para ele e até agora, o fim
Ao aproximar-se o fim do terceiro ano de seminário maior, ela tomou a mais destruidora atitude de que, até ao fim dos seus dias, se arrependerá e recriminará.
Quando, sob um impulso repentino e incontrolável, depois de sentir que ele estava dividido nas suas paixões, ela “exigiu” ao seu homem que escolhesse, estava demasiado segura (e, infelizmente, demasiado errada) da resposta que ele ia dar.
Ficou destroçada quando ele a rejeitou, a “trocou” pela outra, a vocação. Era inconcebível que a escolha dele tivesse sido essa. Ela tinha a certeza que, mais uma vez, seria a vontade dela a prevalecer. Ele já tinha dado provas de que ela era extremamente importante para ele ao revoltar-se contra os seus superiores, ao não se preocupar muito com as opiniões dos membros da comunidade de que fazia parte, através das pequenas coisas do dia a dia, das pequenas lembranças, das poesias, das canções que para ela compunha amiudadas vezes.
Ele estava subjugado por ela e, assim, a sua resposta nunca poderia ser outra que não a de deixar tudo e segui-la. Ficou ligeiramente preocupada, quando ele lhe pediu algum tempo para reflectir, mas absolutamente confiante no resultado favorável, para ela, dessa ponderação. Quando, após esse curto período de análise, ele disse que o chamamento da sua vocação era mais forte que a paixão que nutria por ela, o mundo desabou. Ele tinha escolhido ser padre!
Para ela, foi a coisa mais impensável que alguma vez lhe sucedeu. Ele não lhe podia fazer isso. Era o único homem que a deixava sem respiração, que lhe tolhia os movimentos, que lhe aturdia o pensamento, que lhe fazia sentir cãibras no estômago, que lhe tirava a força das pernas, que lhe punha o coração em louca correria, que lhe punha as orelhas em fogo, que lhe fazia afluir o sangue às faces, que lhe esmorecia todo o corpo, que lhe punha poesia nos olhos e música nos ouvidos, que, em suma, lhe dava uma razão para viver.
Pediu à terra que se abrisse e a fizesse desaparecer, às montanhas que a sepultassem, ao mar que a engolisse, ao céu que escurecesse, às trevas que cobrissem a terra, mas a natureza não lhe respondeu. O mundo seguiu o seu curso normal como se nada de extraordinário tivesse acontecido e, no entanto, a catástrofe tinha sido incomensurável, embora, aparentemente, só para ela. Claro que nada sabia do sofrimento dele e não podia imaginar qual seria. Ou poderia?!
Após o choque inicial, a ideia do suicídio pairou ominosamente sobre a sua vida sem sentido. Durante o resto do ano (o terramoto tinha-se verificado em Junho), a sua existência tinha decorrido como a de um zombi. Não conseguia viver e não se decidia a morrer. O suicídio, até àquela data, sempre lhe parecera uma enorme cobardia e uma atitude de desistência inaceitável para quem tinha o privilégio de viver. Durante muitos meses, porém, já não estava tão certa de que fosse realmente assim, tanto mais que a vida tinha perdido totalmente o sentido. Quando já nada nos prende à vida, nada temos de que desistir, nada de que queiramos fugir. A nossa vida passa a ser nada e apenas nada. Um vazio total. Ao fim de, aproximadamente, um ano, estando ele algures na cidade de Roma, ela tentou reagir. Inicialmente, parecia-lhe estranho que a vida pudesse voltar a ter sentido. Começou por frequentar locais semelhantes, mas não os mesmos, aos que visitara na companhia tão grata do ingrato. Ao princípio, sentia-se deslocada e estranha. Muito por força do seu espírito voluntarioso que, apesar de tudo, ainda se mantinha, conseguiu vencer a resistência inicial e reganhar o gosto pela vida e pelos contactos públicos. Depois de, praticamente, um ano sem qualquer tipo de actividade social, a sua reinserção foi mais difícil e dolorosa do que imaginara.
Claro que não fora apenas a sua vida social que morrera. Simultaneamente deixara de ter vida afectiva e, claro, sexual. Nunca mais se interessara por qualquer homem, por qualquer pessoa.
Queria, pois, recuperar o tempo perdido, atenuar essa carência emocional e física. Ao princípio com escrúpulos e cuidadosamente e, depois, com uma sofreguidão avassaladora, entregou-se completamente à satisfação do seu corpo sem grandes preocupações quanto aos parceiros que usava. Qualquer um servia, desde que fosse homem. O seu ego, no entanto, mantinha-se vazio e frio. O seu interior mantinha-se estéril, o seu coração era um grande e árido deserto.
Depressa concluiu que não seria desta maneira que iria preencher e encontrar um sentido para a sua vida. Foi um furacão passageiro mas devastador. Começou a criar aversão às companhias masculinas. Desistiu de encontrar novos parceiros e começou a repelir os que, entretanto, tinha habituado. E eis que surge novo interregno na sua actividade sexual, que não na social. Assim viveu dez longos, vazios, escuros e secos anos. Frequentou a faculdade de belas artes e concluiu, sem grandes dificuldades, o curso que sempre sonhara abraçar. Começou a trabalhar, por conta própria, como decoradora de interiores, tendo angariado ampla e proveitosa clientela, mas continuava a vaguear pela vida.
Não sentia necessidade de homens, mas o seu corpo reclamava uma libertação qualquer e que ela não tinha, até então, conseguido definir.
Foi numa das visitas para um estudo de decoração que ela pressentiu uma alma gémea. Era a sua cliente. A ideia de que poderia ter tendências homossexuais apanhou-a desprevenida, mas decidiu dar uma oportunidade ao seu corpo. Não era nada que a repugnasse. Não sabia, porém, qual seria a reacção da sua cliente e, por isso, avançou muito cautelosamente. Tendo encontrado a receptividade desejada, passaram a viver juntas no novo lar, mantendo, embora, o seu andar-estúdio onde continuava a trabalhar e a preparar os seus projectos decorativos.
A sua vida passou a decorrer sem grandes sobressaltos e, emocionalmente, andava estabilizada mas como que adormecida. Não sentia um vazio completo, mas também não se extasiava com a vida que levava. Era uma espécie de limbo, muito embora a Zeza fosse uma rapariga meiga e carinhosa que a tranquilizava e acalmava afectivamente. No entanto, não era uma vida bem preenchida. Havia uma parte de si mesma que queria mais. Não sabia bem o quê, embora desconfiasse. O Josias nunca tinha abandonado, completamente, o lugar que ocupara no seu coração. Ocupara, não; Ocupava! Apesar de, após aqueles anos todos, a sua presença ser mais discreta, mais diluída, ainda se fazia sentir. Essencialmente nas horas de maior isolamento. Aqueles olhos nunca mais se apagaram na mente dela. Permaneciam ali aqueles dois luminares como que a indicar-lhe qual o caminho a seguir para o reencontrar. Não sabia se da parte dele existiria a mesma sensação de vazio ocupado. Ela sentia-se assim. Nunca mais fora a mesma moça verdadeiramente alegre. Nunca mais se entregara tão completamente como antes o fizera com ele. Apenas entregava o seu corpo e uma pequena parte da mente. O seu coração ficava indiferente, ou melhor, estava comprometido e ocupado com outro e, por isso, não podia repartir-se. Estava fechado e a chave desaparecera ou ela a deitara fora, já nem sabia bem.
Após dez anos de coexistência com a Zeza, começava a ser um pouco cansativa a sua presença constante e avassaladora. Por vezes chegava a pensar que já nem conseguia respirar adequadamente tal era a intensidade da presença da moça na sua vida.
Era nesta fase que se encontrava quando, casual e inesperadamente, lhe chegaram as notícias que lhe alteraram a rotina do seu dia a dia insulso. Foi ao chegar a esta parte da evocação da sua vida que ela se apercebeu do sítio onde se encontrava e do aturdimento em que tinha mergulhado. Afinal nem se chegara a encostar ao muro do jardim. Encostara-se à porta por onde momentos antes (ou seriam anos) tinha saído. Parecia-lhe que tinha decorrido uma eternidade desde que deixara com saudade aquele que a tinha abandonado. Pouco passava das nove da noite e, no entanto, tantos anos lhe tinham perpassado diante dos olhos.
Agora era necessário voltar a pôr os pés na terra e preparar os passos seguintes. Ainda não podia fazer uma ideia do que a esperava pois, muito embora tivesse feito aturadas pesquisas sobre o seu homem, havia demasiadas lacunas, demasiados espaços por preencher, para que pudesse traçar um plano com algumas hipóteses de realização.
Dirigiu-se lentamente para a casa onde estava hospedada a pensar como abordaria a sua concorrente na disputa do coração que amava. Certamente que não deveria ser um encontro fácil, essencialmente porque a outra não deveria fazer a mínima ideia da sua existência. Ou seria que ele a tinha posto ao corrente daquele período da sua vida? Não sabia até que ponto ela era importante para ele e, assim, ignorava até onde ele se teria exposto. Se a sua maneira de ser não se tivesse alterado muito em relação ao tempo em que o conheceu, a sua vida inteira deveria ser, para a outra, um livro aberto. Não era homem que conseguisse esconder o seu interior a quem amava verdadeiramente. E, se era verdade o que diziam, ele devia amá-la muito. A ser assim, já deveria ter esquecido aquele amor da juventude e a outra seria sabedora de tudo até ao mais ínfimo pormenor. No entanto, pareceu-lhe, ainda há bem pouco tempo, que os seus olhos mostraram que ali ainda havia uma centelha de paixão. Haveria mesmo ou seria ela a imaginar o que gostava que fosse verdade? Já não sabia o que havia de pensar. Nunca imaginou, porém que, após ter optado por seguir a sua vocação ainda pudesse haver lugar para outra naquele coração tão terno. É verdade que, na nossa vida, nada é definitivo. Não há nada que seja “para sempre”. Nem o amor, nem o ódio, nem a alegria, nem a tristeza, a dor, a saúde ou a doença. A nossa vida é uma constante sucessão de altos e baixos. Não era isso mesmo que a sua existência provava à saciedade?
Contudo, depois da paixão tão intensa que ele sentira por ela (e disso não tinha qualquer dúvida), não imaginava como poderia haver lugar para outra de igual grandeza.
A não ser que fosse verdade o que também se dizia na aldeia: que entre ele e a outra não existia uma paixão física mas tão só uma coincidência de ideais, uma conjunção de vivências espirituais e religiosas. Se assim fosse, ela ainda tinha uma hipótese de recomeçar o que há demasiado tempo se tinha interrompido. Haveria de lutar para reaver o que, anteriormente, tinha deixado fugir sem resistência. Desta vez, as coisas seriam diferentes. Pelo menos no que a ela dizia respeito.
O seu coração começava, agora, a adquirir novamente a luz e a despertar da letargia em que tinha mergulhado. Bem sentia, pelas reacções involuntárias mas bem vindas do seu corpo, que ainda tinha muito para dar, que ainda havia muito terreno para explorar. Afinal, o sol ainda poderia voltar a brilhar, o céu poderia voltar a ser azul, a natureza poderia voltar a ser colorida. Os seus quarenta anos ainda lhe permitiam sonhar com o dia de amanhã. A vida poderia, ainda, ter a plenitude de outros tempos e, até, um sabor mais acentuado pois os anos dão mais profundidade e intensidade aos sentimentos embora, talvez, menos agressividade.
Era necessário agir com cuidado para não deitar tudo a perder, novamente, levada por outro impulso repentino uma vez que isso já lhe tinha causado dissabores suficientes para uma vida inteira.
Sabia que o campo por onde ia avançar estava completamente minado e não tinha o mapa das minas nem sequer dos acidentes do terreno. Antes de avançar, ainda tinha que se documentar muito mais. Para isso, era forçoso promover mais encontros com o Josias (não era capaz de lhe chamar padre) e de se informar cuidadosamente do passado dele, fosse por intermédio dele próprio ou de algumas pessoas da aldeia.
Teria que descobrir até que ponto a outra tinha ocupado, no coração dele, o lugar que lhe pertencera e, se fosse esse o caso, procurar expulsá-la de lá. Tinha sido preterida uma vez e isso já era demasiado. Duas vezes, nunca! Mas isso não dependia só de si própria. Ele tinha uma palavra muito importante a dizer a esse respeito. Por agora restava-lhe ir para a cama e sonhar com ele como tinha acontecido em quase todas as últimas noites. Esperava, no entanto, que os sonhos fossem menos angustiantes, agora que já tinha conversado com ele. Nas noites anteriores, sempre que tinha sonhado com ele, tinha sido para descobrir que ele lhe fugia, que não conseguia aproximar-se dele, que havia sempre um riso feminino trocista e estridente a gargalhar da sua desolação, da sua infelicidade por não o poder vislumbrar, por não poder acercar-se de quem amava verdadeiramente. Acordava sempre com uma terrível sensação de pânico, de angústia, de infelicidade, para descobrir que, felizmente não tinha passado de um sonho. Mas, seria mesmo?
Há bem pouco tempo, ele não tinha fugido mas estava intranquilo. Seria, apenas, por causa dos problemas que tinha e do momento que atravessava?
Mergulhada nestes pensamentos, admirou-se de ter chegado à pensão sem se dar conta. Entrando, encontrou a D. Henriqueta na sala de estar, sozinha. Parecia não haver muitos hóspedes por ali. Pelo menos nesta altura do ano.
A dona da pensão, após as saudações habituais da sua hóspede, interrogou, mais para meter conversa do que por curiosidade:
- Então, gostou do passeio?
- Têm aqui uma terra muito linda, muito embora de dia seja muito mais encantadora. No entanto, este sossego da noite é tão repousante! Cria-nos a disposição para uma tranquila noite de sono retemperador. É espantoso como a calma da natureza se nos transmite e nos influencia. Estou, de facto, ansiosa por me estender na cama e mergulhar num sono profundo e sem sobressaltos. Se me dá licença, vou-me deitar.
- É uma óptima ideia. Eu também só estou à espera que cheguem aqueles hóspedes alemães que estão cá há uma semana, para me ir deitar. Então, tenha uma muito boa noite e um sono sossegado.
- Boa noite. Até amanhã.
A sua cama, no primeiro andar, pareceu-lhe tentadora, de facto. Ela sabia, no entanto, que o sono tardaria a fazer a sua aparição. Pelo menos, nas últimas noites tinha sido assim. Demorava a surgir e, quando o fazia, era extremamente agitado e iluminado por dois olhos tão brilhantes que a cegavam. Era difícil descansar com tanta luz. E, para perturbar ainda mais, aquele riso, que lhe fazia lembrar uma hiena, sobressaltava-a constantemente. Tinha medo de não ser capaz de aguentar, assim, muito mais tempo. Sabia, por experiência própria, que o ser humano é muito mais resistente do que aquilo que pensa, mas tudo tem um limite. Ela ainda não tinha atingido o seu, mas tinha medo que isso pudesse acontecer.
Seria diferente esta noite, depois de o ter visto de perto, de ter estado com ele, de ter falado com ele, de o ter tocado ainda que brevemente? Ou seria ainda pior? O conhecimento da sua localização tinha-a deixado em grande agitação e com o sono ainda mais perturbado. Será que a sua visão a deixaria mais sossegada ou ainda a perturbaria mais? O facto de não ter conseguido prolongar a sua visita certamente que não iria facilitar muito o aparecimento do sono e, ainda por cima, a sua proximidade sem aproximação ainda se tornara mais dolorosa. Tinha estado perto dele e não lhe tinha podido tocar à vontade. Ele tinha-se retraído completamente e ela, por seu lado, também se não sentira livre para o abraçar, para o beijar como antigamente o fizera tantas vezes. O vazio que ocupava o seu coração tinha-se expandido ainda mais. O sufoco que lhe oprimia o peito desde que ele partira e que nunca tinha desaparecido completamente agora tinha recrudescido. O peso no coração era maior, a falta de ar mais acentuada, o aturdimento agigantou-se.

CAPÍTULO III
Na casa situada no lugar da Raposeira, alguém se preparava, também, para dormir. Era aquela que era conhecida como Rosário ou Rosária e que, de facto, se chamava Maria do Rosário Vieira Travassos. Embora o seu sono não fosse, igualmente, dos mais sossegados, esse facto não se devia a qualquer retrospectiva feita sobre a sua vida. Não havia, nela, grande coisa para recordar, que valesse a pena ser lembrado. É verdade que os anos ainda não eram assim tantos que lhe permitissem ter um passado tão preenchido, mas a razão era, essencialmente, outra.
Ela não era natural dali e não queria, para já, voltar para a sua terra natal nem lembrar-se dela. As recordações que de lá trazia eram demasiado dolorosas, ou melhor, demasiado revoltantes para que lhe apetecesse lá voltar ou, conscientemente, lembrar-se dela.
A sua vida tinha decorrido sem grandes sobressaltos até aos dezanove anos. A escola, a família, as práticas religiosas habituais, os namorados usuais... Nada que sobressaísse, que se destacasse.
Para ocupar algum do seu tempo livre, tinha-se tornado catequista dos mais pequenos porque isso lhe permitia contactar com crianças, facto que ela adorava. No primeiro ano tinha sido gratificante. As crianças gostavam dela e, pela sua parte, ela adorava-as. Esses encontros semanais eram uma constante fonte de alegria e um impulso para o resto da semana. Até o tempo de que dispunha para a preparação desses encontros lhe parecia mais breve que o normal. De repente, surge o inesperado. Ainda hoje sentia uma terrível dor no peito quando, involuntariamente, o pensamento lhe deslizava para esse tormento. Os factos reportam-se ao passeio de encerramento da catequese, no ano do seu vigésimo aniversário. Crianças e catequistas tinham ido à praia, naquele fim-de-semana fatídico, acompanhadas por ele (não era capaz de pronunciar, ainda que em pensamento, o nome do Pe. Ricardo). O dia tinha sido bem divertido e a alegria tinha pontificado ao longo de todo o dia. A missa tinha sido celebrada na praia e até muitos dos veraneantes nela tinham participado e se tinham associado à alegria geral que dali emanava. Os jogos e as canções, durante o resto do dia, tinham contagiado quem, com eles, partilhava a praia.
Ao fim do dia, quando regressaram a casa, ele tinha-lhe pedido que o acompanhasse ao escritório paroquial porque tinha necessidade que ela o ajudasse... Já nem se lembrava de qual a desculpa que ele tinha engendrado.
Entraram no escritório e ele fechou a porta, o que, manifestamente, ia contra todos os procedimentos habituais nele. Como a boa disposição do dia ainda persistia, ela nem se apercebeu desse pormenor. Só mais tarde se lembrou de que algo lhe tinha parecido estranho. Aproximou-se dela, pôs-lhe o braço à volta do corpo, abraçou-a, quis beijá-la e, quando ela recusou, estupefacta perante o inusitado e insultuoso da situação, ele perdeu, completamente, a cabeça. Segurou-a pelos braços, encostou-a à secretária e, ali mesmo, tentou violá-la. Meteu-lhe aquela mão nojenta debaixo da saia, rasgou-lhe as cuecas e, chamando-lhe nomes, tentou, à força, abrir-lhe as pernas para a penetrar. Ela conseguiu libertar-se daqueles braços que a apertavam como tenazes e, sem saber como, conseguiu evadir-se daquela breve mas violenta câmara de tortura. Não se lembra do que lhe aconteceu a seguir. Apenas sabe que ficou afónica durante três meses e, durante esse período, nasceu e cresceu em si uma raiva enorme contra os padres em geral e contra aquele em particular. Jurou a si própria que teria o resto da sua vida para tentar destruir todos os padres que encontrasse pela frente. E, se os não encontrasse, iria à procura deles. Haveria de lutar, com todas as armas de que dispunha, para os desacreditar, para os humilhar o mais que pudesse, para os fazer cair no ridículo, para os fazer tombar do seu pedestal de hipocrisia em que, muitos deles ou até, talvez, todos, se alcandoravam. A sua vingança duraria uma vida inteira: a sua. Nunca chegou a contar à sua família o que lhe tinha acontecido nem tinha dado qualquer explicação para abandonar a catequese e a vivência religiosa. Apenas lhes comunicou, quando pôde falar, que estava a precisar de mudar de ambiente e de encontrar um emprego. Não queria estudar mais e, por isso, iria procurar uma forma de ganhar a vida por seus próprios meios. Escreveu uma carta ao facínora (o nome dele continuava a não ser pronunciável) a ameaçá-lo com a publicação e publicitação da sua atitude para com ela, a intimidá-lo com a participação do sucedido ao bispo e aos colegas de ministério, a dizer-lhe, ainda que não fosse verdade, que possuía uma cassete gravada com tudo o que ele tinha dito naquele dia e que iria enviar uma cópia para os órgãos de comunicação social locais bem como para as autoridades eclesiásticas.
Essa carta, escrita em termos invulgarmente violentos, e a recordação do acto irreflectido e tresloucado que tinha praticado, provocaram, no Pe. Ricardo, uma reacção de tal maneira brutal, que lhe causaram um esgotamento cerebral e o atiraram para uma cama de hospital e, posteriormente, para uma casa de saúde mental.
A Maria do Rosário sentiu-se meio vingada. No entanto, ainda havia muitos padres para agredir e muita luta para travar. A sua vingança tinha de ser muito mais abrangente. Foi procurando, pelos jornais, um emprego que pudesse aceitar e para o qual se sentisse preparada, até que lhe apareceu, na vila perto da aldeia onde actualmente vivia, a solicitação de um(a) empregado(a) de escritório com conhecimentos de... Eram exactamente as suas habilitações e, por isso, foi fácil, após a entrevista a que teve de se submeter, conseguir ficar com o emprego. O trabalho não era exagerado, o ambiente era agradável e o salário era amplamente suficiente para poder levar uma vida com dignidade. Encontrou a casa onde actualmente morava e gostou dela imediatamente. A renda que tinha de pagar era perfeitamente suportável e ainda lhe permitia receber, quase sempre no jardim mas com alguma privacidade, as pessoas que a visitavam.
Os seus primeiros meses, naquela terra, foram de completo isolamento e de estudo do meio onde, a partir de então e por algum tempo – não sabia quanto – ia passar a estar inserida. Era, por natureza, uma moça de trato fácil e relacionamento agradável com as pessoas, muito embora, após o ataque de que tinha sido vítima, isso passasse a ser bastante mais difícil. De facto, era uma pessoa popular, alegre, bem disposta consigo e com o mundo. Não fora aquele acto insano e ela teria continuado a ter uma vida de bem-estar físico e psíquico. Como tinha acabado os estudos secundários, tencionava ingressar na Universidade na área de Comunicação Social ou Relações Públicas. No fim do secundário ainda estava numa fase de indecisão. A deliberação também não era premente uma vez que tencionava parar um ano para se dedicar a uma coisa com que sempre sonhara: viajar. Os pais eram funcionários numa companhia de aviação e isso facilitava-lhe a realização do seu desiderato. Sempre tinha aproveitado as férias para o fazer mas, devido ao pouco tempo das mesmas, as viagens eram sempre mais curtas que o que ela desejava. Já se via a visitar as grandes capitais europeias, os monumentos da civilização helénica, as Caraíbas, o Oriente exótico... A África não constituía grande atracção para si, não sabia muito bem porquê.
Infelizmente, tudo tinha ruído como um castelo de areia assolado pelas vagas alterosas da existência atribulada. A sua viagem era outra, as suas descobertas muito diferentes, os seus estudos de relações públicas focaram-se numa perspectiva muito distinta.
Apesar de tudo, mau grado os problemas que a apoquentavam, não deixou de se tornar na moça mais simpática da aldeia. Os moços quase não viam as outras raparigas da terra ainda que as houvesse bem interessantes. Alguns deles até se gabavam, para espanto dos outros, de que ela lhes fazia “grandes favores” e de que, para ela, cada um deles era um “rapaz especial”. Todos estes, no entanto, sabiam que isso não correspondia minimamente à verdade e que o único “favor” que ela lhes fazia era, tão só, recebê-los no seu jardim, aceitar os presentes que lhe levavam e entretê-los com conversa. Sempre que eles queriam ir mais além, ela indicava-lhes, gentilmente, a porta de saída. A cultura machista da aldeia, porém, obrigava-os a fazer passar uma imagem muito diferente, mesmo que isso se fizesse à custa da boa reputação da rapariga. Desde que isso os fizesse ficar mais bem vistos perante os outros homens...
É evidente que este assunto não era apregoado em cima dos telhados, mas antes se tratava de um segredo contado ao canavial. Todos sabiam e ninguém tinha visto nada. De qualquer modo, era isso que ela queria.
Fora já com este estatuto que ela se apresentara ao Pe. Josias. Uma vez que a sua imagem pública era, tinha a certeza, a de uma moça “fácil” e leviana, era chegado o momento de se apresentar ao padre. Ela não sabia que esse tipo de “segredos” ainda não tinha chegado aos ouvidos do pároco e que, portanto, ele desconhecia a sua reputação. Isso não a impediu, no entanto, de se aproximar dele com toda a facilidade. Era um homem de braços abertos para todos os que o procuravam, independentemente das intenções com que o faziam. Se precisavam dele, ele dizia: “Presente!”. Quanto a ela, pensava que, depois do causador da sua tortura ter sido castigado, estava na hora de passar aos mais próximos dele. Ela descobrira, nas pesquisas entretanto efectuadas, que este era um dos mais próximos do outro. Tinham sido professor e aluno e, entre eles, tinha surgido e crescido uma amizade sólida a que os anos apenas deram mais robustez. Se assim era, “os amigos dos meus inimigos meus inimigos são”. Se o ditado não era assim, agora passava a sê-lo. Investira muito de si mesma na preparação do terreno para o bom desempenho da sua “missão” e, por isso, “peito à bala e vamos em frente”.
A tarefa, contudo, não se revelou nada fácil. Ao princípio ainda pensou que isso se devesse à sua inexperiência no campo da manipulação de outros seres humanos e, por isso, insistiu com a certeza de que havia de ser bem sucedida. Não se considerava estúpida e saberia encontrar o melhor caminho para a meta que se tinha traçado. Os seus ardis eram cada vez mais estudados, os seus planos cada vez mais pormenorizados mas o raio do homem não se deixava descair. Às vezes ficava inquieto mas, mesmo nessas ocasiões, parecia de outra escola. Não tinha aprendido as lições todas do seu professor. Este era muito diferente do outro. Parecia demasiado honesto, demasiado sincero, demasiado íntegro. Não se deixava enredar com conversa nem com actos declarados ou esboçados. Momentos havia em que ela já duvidava de si própria e das suas capacidades de levar avante a sua tarefa. Aqueles olhos tão límpidos, quase a queimavam e faziam com que vacilasse seriamente e claudicasse na sua determinação de o destruir. A sua fúria inicial começou a esmorecer, o seu desejo de vingança esfriou. Até os seus planos eram cada vez mais desordenados como se a sua mente, na elaboração dos mesmos, fosse atraiçoada por um inimigo desconhecido e abrigado dentro de si.
O ardor com que ele defendia os seus pontos de vista, a sua fé, as suas convicções, tinham tal vigor, que ela começou a duvidar seriamente da validade dos seus argumentos, pelo menos intermitentemente. Poderia ela confundir a árvore com a floresta? Seriam todos culpados? Por causa da monstruosidade de um deles, mereceriam todos ser castigados? Aparentemente, este era muito diferente daquele que ela odiava. A dúvida foi-se instilando e ela não sabia já muito bem o que fazer. Deveria continuar o seu propósito de vida ou haveria alguma outra alternativa?
Só porque este parecia diferente, não queria dizer que, no fundo, não acabasse por ser igual. Afinal, a escola tinha sido a mesma. Lá vinha, para confirmar essa realidade, o ditado que dizia: “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. Eles tinham saído todos do mesmo molde, por isso deveriam ser todos muito parecidos e com ideias muito próximas.
No entanto, há sempre a excepção para confirmar a regra. Seria este essa famosa excepção? Seria possível que nem todos fossem exactamente iguais e algum houvesse que se desviasse do padrão? Antes do que lhe tinha acontecido, ela tinha uma ideia positiva dos padres. Valeria a pena modificar completamente essa ideia por causa dum só? Ela continuou a estudar, atentamente, o homem com quem, agora, pelejava e balançava entre a dúvida da validade dos seus propósitos e a fúria cega contra o clero. Cuidado… estava a amolecer!
Mas, as conversas com este padre foram-se tornando cada vez mais frequentes e ela começou a sentir alguma admiração e, depois, respeito pelo seu interlocutor. Para ela acabou por se tornar muito difícil enfrentar aqueles olhos vivos e cristalinos sem fraquejar. Não conseguia perceber como ele podia manter a serenidade, pelo menos aparente, diante de toda a bateria de artimanhas que ela usava. Em vez de se revoltar contra ela ou, pelo menos, de a mandar embora, ele continuava a tentar convencê-la da futilidade da sua atitude, fazendo-lhe ver que ele não tinha escolhido a vida de sacerdócio de ânimo leve e, portanto, não seria fácil fazer com que a sua fé cedesse. Certamente que ele desconhecia os motivos que a levavam a agir como o fazia mas intuíra os sentimentos dela e concluiu que a sua vontade primitiva estava a esbater-se, que a agressividade inicial abrandara. Era perfeitamente compreensível que, perante esse cenário, ele não desistisse da sua ideia de a “converter” ou seja, de a fazer inverter o rumo da sua vida. Seguramente que seria capaz de fazer com que a raiva inicial se sublimasse em algo muito mais positivo quem sabe, até, numa revolução interior que a levasse a transformar em dedicação e amor aquilo que primeiro era desprezo e ódio puro. Ele ia-se interrogando, diante dela, e tentando descobrir de onde lhe viria aquela raiva tremenda contra a igreja em geral e os padres em particular. Porque lhe parecia que ela se queria vingar de alguma coisa ou de alguém ele tentava, por todos os meios, fazer-lhe ver que a vida era muito mais que inimizade e vingança.
O ser humano não foi criado para a malquerença mas para o amor. Ela deveria tentar descobrir a beleza da vida em ambiente de benevolência. Tinha a obrigação de responder àquilo para que nascera, a saber: “completar em si a obra da criação”. O ser humano é, por natureza, um ser gregário logo não faz qualquer sentido usar as nossas faculdades para impedir esse mesmo espírito de sociabilidade. Devemos contribuir para que cada vez haja mais paz, para que o espírito de fraternidade se robusteça, para que os homens se sintam irmanados no ideal de desenvolvimento completo de todos os povos, a começar por nós próprios e pelos nossos vizinhos. A vida só tem sentido se for vivida no seio do amor. Não é o ódio que leva ao amor. Um erro não se pode combater com outro erro. Era claro que algo de grave lhe deveria ter acontecido, mas não era desta forma que se iria desfazer o mal que estava feito. O tempo não volta para trás a fim de podermos fazer novos “takes” da nossa vida...
Com estes e muitos outros argumentos ele foi amolecendo aquela vontade de destruição. Não estava, no entanto, a par do que teria acontecido de tão grave com aquela moça ao ponto de a levar a deformar tanto a sua personalidade. Ele tinha concluído que estava perante um ser humano com uma capacidade de doação muito grande mas que, por um acontecimento qualquer, tinha alterado completamente as suas balizas norteadoras, os seus pontos de referência comportamentais. Importava descobrir o que se tinha passado. Talvez, assim, se pudesse repor aquela personalidade nos carris. O tempo foi fluindo e ela foi mudando a sua postura perante ele e perante a vida em geral. Pouco a pouco, ele conseguiu que ela se abrisse e lhe contasse muito da sua vida passada. Os seus tempos de menina feliz, viajante com seus pais, boa estudante, adolescente querida por todos os que a rodeavam, com uma vida social saudável e preenchida, jovem benquista por todos à sua volta, catequista adorada pelas crianças. E por aí se ficou. Ainda se não sentia preparada para avançar mais. Ele, desconfiou que a história não estava completa, mas não quis forçar a revelação daquilo que voluntariamente não saiu. Isso teria que ser um acto espontâneo e surgiria quando ela se sentisse preparada. Por aquilo que ela tinha contado, não havia nada que a pudesse ter levado ao ponto em que se encontrava quando o procurou com os sentimentos com que o fez. A conclusão era, pois, óbvia. Havia uma parte que ainda não tinha amadurecido suficientemente para poder ver a luz do dia. Como em tudo na vida, era preciso dar tempo ao tempo.
Na cabeça daquela que, no lugar da Raposeira, agora se preparava para se deitar, a ideia de levar as suas confidências até ao fim estava cada vez mais forte. Já há muito que tinha concluído que nem todos os padres eram, afinal, iguais. Conhecia poucos e, dos poucos que conhecia, só este se aproveitava. Mas não deixava de reconhecer que este era, de facto, um homem com H. Apesar de todas as tentativas que ela tinha feito para o vergar, ele tinha-se mantido fiel e, mais ainda, tinha levado até ao fim a sua missão de ajudar quem dele precisava. E ela bem tinha necessitado dele. Disso não havia dúvidas. Ele tinha passado a ocupar, na vida dela, um lugar muito importante. Era um verdadeiro amigo e, aos amigos, não devemos esconder nada. Teria que o pôr ao corrente de tudo o que tinha sofrido, de como alguém, de quem ele era amigo, tinha destruído a sua vida que, agora e a muito custo, tentava recuperar e reconstruir. Era merecedor dessa confiança. Era um verdadeiro porto de abrigo contra as tormentas da vida. As tempestades do dia a dia não conseguiam ultrapassar a barreira de serenidade que ele interpunha entre o mar encapelado da vida e os outros, através das suas palavras de sabedoria, de tranquilidade, de amor. Se não houvesse muitas alterações no seu dia a dia, amanhã mesmo, à tardinha, ela iria, mais uma vez, ter com ele para lhe contar toda a verdade. Estava na hora de abandonar, de vez, o seu plano primordial de vingança contra os padres. Afinal, isso não levava a lado nenhum. A única coisa que a vingança gerava era ainda mais vingança. O ódio só gera o ódio. A doutrina de amor que ela, até uma determinada altura, tinha abraçado, ainda continuava bem dentro dela, apesar de tudo aquilo por que tinha passado. O amor é a única arma para fazer um mundo melhor e para acabar de vez com o sofrimento nosso e dos outros. Sem amor, a vida não merece ser vivida.
Tentou adormecer com a recordação de muitas das conversas que tinham tido. A recordação dessas conversas dava-lhe uma doçura e uma paz interior tão grandes que a faziam deslizar para um sono que, ultimamente, se estava a tornar mais retemperador e regenerador da coragem necessária para enfrentar o dia a dia de trabalho e, ainda, de dúvidas.
O que aconteceria quando ela lhe contasse o que o seu antigo professor tinha feito? Acreditaria nela ou o espírito corporativista iria prevalecer sobre a amizade que, entretanto, despontara entre ela e ele? E se ele a rejeitasse e se pusesse ao lado do outro? E se, depois de todos estes meses de conversas, de confidências, não acreditasse nela? Ela tinha confiado completamente nele, ainda que, há bem poucos meses, isso lhe parecesse completamente impossível. Se ele, agora, lhe faltasse com o apoio, não sabia se seria capaz de aguentar nova desilusão.
Esta dúvida fez com que o aparecimento do sono fosse muito mais custoso. Nos últimos tempos, as suas noites tinham sido muito mais serenas e sossegadas. Ao serão já não tinha que aturar os seus admiradores. Apenas o Alberto continuava a aparecer ainda que, a maior parte das vezes, para rezingar. Agora, já não precisava de cultivar a imagem de leviandade que, antes, tinha querido fazer passar. Já não precisava de viver uma vida de duplicidade. A calma tinha regressado à sua mente, devido, essencialmente, à atitude do Pe. Josias. Hoje, porém, estava a ficar tudo muito mais confuso. Começou a angustiar-se ante a perspectiva de poder ser rejeitada por aquele que tinha recolocado as peças do seu puzzle existencial. Isso seria, certamente, muito nefasto, senão mesmo fatal, para ela. Não lhe parecia possível que ele lhe fizesse isso. Ele acreditava nela e ela nele. A amizade dele com o outro, porém, era muito mais antiga. Mas ela não tinha cometido o crime que o outro tinha perpetrado, muito embora também tivesse tentado, voluntária e conscientemente, provocar muitos estragos contra ele próprio e tivesse levado o outro à ruína psíquica. O Pe. Josias teria percebido porquê? Os motivos teriam, para ele, o peso que tinham para ela? Compreenderia e desculparia, verdadeiramente, a sua atitude?
Este início de noite estava, afinal, a ser muito mais complicado que aquilo que gostava que fosse. O sono não vinha e nem a grata recordação das conversas havidas entre eles era, agora, lenitivo para a insónia. Estava demasiado agitada e nem a lembrança dos encontros mais recentes com o Pe. Josias, da postura digna que ele sempre assumiu perante ela, lhe facilitavam a vinda do sono. Como era possível que ainda sobrassem homens como ele, dignos e correctos, sem segundas intenções na relação com ela, apenas com o intuito de a ajudar, de a orientar, de lhe transmitir os ideais em que acreditam sem se aproveitarem da fragilidade psíquica em que ela se encontrava? Havia algum tempo que ele tinha passado a ocupar um lugar muito especial na sua tribuna de notáveis, melhor dizendo, que ele tinha passado a ocupar O lugar de destaque da sua tribuna de notáveis. Ele era, de facto, único. O mais espantoso, no meio disto tudo era que, muito embora o seu aspecto físico não fosse desinteressante, não havia, da parte dela, o mais pequeno interesse por essa parte da sua pessoa. Aquilo que, verdadeiramente, fazia vibrar todas as cordas sensíveis do seu ser era a parte imaterial do homem: o seu carácter, a sua bondade, a sua cultura, as suas fortes convicções, em suma, a sua postura. Tudo isso fazia com que ele, de facto, sobressaísse de entre todos aqueles que tinha encontrado ao longo da sua vida. Sempre que se encontravam, essa admiração por ele aumentava. Ele deveria ter qualquer coisa de divino. Se fosse numa das antigas culturas, grega ou romana, ela diria que ele era filho de um deus qualquer. Era tão superior a tudo quanto ela conhecia! Tornou-se no seu verdadeiro e único ídolo. Sempre que pensava nele, sentia um êxtase tão grande, tão completo que lhe parecia ficar a flutuar num mar de felicidade e se tornava difícil respirar. Se não fosse pela natureza demasiado física do pensamento, diria que a sua presença era de uma plenitude orgásmica.
Com estes pensamentos, morfeu fez a sua serena aparição.

CAPÍTULO IV
Quando se retiraram da presença do Pe. Josias, os quatro habitantes daquela aldeia iam demasiado ensimesmados para darem largas à sua verbosidade habitual.
O Maneta foi o primeiro a apartar caminho, visto a sua casa ficar mais desviada e a via mais directa para lá chegar derivar do adro da igreja, por onde agora passavam, para a esquerda.
Enquanto atravessava o monte do Espigueiro, ia pensando com os seus botões que era agora ou nunca que tinha que provar se a Rosaria era ou não o que ele pensava. O padreco tinha querido que eles acreditassem numa coisa que ele, Frederico, tinha muita dificuldade em engolir. Ainda há bem poucos dias o Marmelo tinha dito que aquela rapariga era fogo e que quando se rebolavam, ela guinchava como uma doninha. Atirava com qualquer homem para as nuvens. Por isso, agora era uma ocasião tão boa como outra qualquer. Ele tinha que ficar a saber quem ela era realmente e ela também ia ficar a saber que o Maneta não se despede apenas com palavras. Uma vez tem graça, mas tudo o que é demais é erro e por isso ele não estava para aguentar mais os rodeios dela. Quando voltasse a casa dela, tinha que deixar tudo em pratos limpos. Há coisas que não se devem adiar demasiado.
O diabo da moça andava a gozar com a cara dele e isso era coisa que não tolerava. Apenas tinha aguentado até agora, a ver se conseguia o que queria por bons modos. Não era muito do seu agrado mas nem sempre as coisas podem ser feitas à nossa maneira. Para se levar a água ao moinho, nem sempre podemos ir a direito. Mas, agora estava na hora de pôr tudo às claras. O Marmelo já se tinha gabado tantas vezes, que lhe parecia impossível ele próprio nunca ter provado nada. Só palavrinhas doces. Só que ele era mais dado ao bagaço que ao melaço. Se o Marmelo conseguia, ele também iria ter o que queria. É verdade que o Marmelo era outro tipo de pessoa, menos manhoso mas mais ameaçador. O marmeleiro de que se fazia acompanhar era capaz de fazer alguns milagres. Quem sabe?! No entanto, começava a duvidar de tanta gabarolice. No entanto, se era isso que ela queria, ele também era capaz de ser bruto. E nem ia precisar de marmeleiro. Mesmo só com uma das mãos ele era bem capaz de a amansar. Ela ia saber como elas mordem.
Os outros avançaram juntos ainda um bom troço do curso mas cada um mergulhado nos seus pensamentos.
Durante todo esse tempo, as conversas entre eles não eram muito prolixas. Algumas frases soltas ocuparam-lhes o tempo decorrido até chegarem ao largo da mercearia, onde ia ficar o Xico. Este despediu-se dos colegas sem grandes algaraviadas mas com uma pequena recomendação, que também já tinha dirigido ao Maneta:
- Pronto, rapazes. Vou ficar por aqui a dar voltas ao miolo e a tentar esclarecer as minhas ideias. Se calhar era bom que todos fizéssemos o mesmo. Não vos parece? As coisas que a gente pensa nem sempre são um retrato da realidade. Nunca pensei que fosse tão verdade aquilo de que "quem vê caras não vê corações"
- Lá isso é verdade, disse o Alfredo. Eu vou direitinho para casa e vou tentar aproveitar o serão para deitar um pouco de luz sobre esta refeição e o que ali se viu e ouviu. Garanto-vos que nunca me passou pela cabeça que as coisas fossem assim tão emaranhadas.
- Lá emaranhadas são elas, disse o Tó Marmelo, mas eu ainda me custa a aceitar que ele seja o santinho que diz ser. Vamos ver no que param as modas. Vou passar ali pelo Carvalheira a ver se a noite ganha alguma alegria. Depois desta refeição bem comida e bem bebida, a gente precisa de desanuviar um pouco.
- Eh pá, disse o Xico, eu, depois de o ouvir falar, nem me apetece voltar ao Carvalheira. A gente fica a modos que baralhada com aquela conversa toda sobre família, altares, promessas, fidelidade, etc. e tal. Esta noite vou para casa a ver se consigo passar um serão sossegado. Vamos lá a ver se não me aparece por lá nenhum mocetão, com as ideias destrambelhadas, para aturar. Boa noite e até amanhã.
- Até amanhã, responderam os outros dois em coro.
Retiraram-se, cada um para seu lado. O Xico, para sua casa, que ficava ali ao lado, o Tó Marmelo para a pensão do Carvalheira, a dois passos ali à direita e o Alfredo um pouco mais além para perto do rio onde a sua casa de lavrador rico estava situada.
Quando chegou a casa, porém, o Xico teve uma desilusão. À sua espera estava o Berto, o tal que o padre não conseguia já aturar. Ainda chegou a abrir a boca para o mandar dar uma curva, mas o rapaz parecia-lhe tão desamparado, tão desesperado, tão tenso, que não teve coragem de o mandar embora. Além disso, teve receio que o moço se descontrolasse de vez e fizesse alguma asneira, cometesse algum acto tresloucado.
Depois das habituais saudações, os dois retiraram-se para uma salinha que o Xico já tinha de reserva para poder conversar com os que o procuravam sem que o resto da família estivesse toda a ouvir. Nem de outra forma podia ser, por causa dos temas que ali eram, amiudadas vezes, tratados.
- Ora então, senhor Francisco, conte-me lá. O que é que se passa entre aqueles dois? Ela está mesmo embeiçada por ele e ele por ela, não é verdade? Eu não sei se me vou aguentar muito mais tempo sem partir os cornos àquele gajo sem vergonha. Ele é padre, não é para se andar a atirar às mulheres, sejam elas solteiras ou casadas. Estou quase a perder a tramontana e a dar-lhe cabo da fuça.
- Ò Berto, tem calma, rapaz. Primeiro, não devemos saltar dos carretos com essa facilidade. Depois, esta noite fiquei com uma ideia muito diferente e preciso de digerir bem o que ouvi e o que vi lá sentado àquela mesa. Se te contasse já, podia estar a omitir coisas importantes ou a adulterar o que ouvi. Antes de ter uma conversa mais prolongada contigo, deixa-me amadurecer as ideias e apurar os pensamentos e depois poderemos ter uma conversa mais longa e, quem sabe, mais esclarecedora. Está bem?
- Se o senhor Francisco o diz, tenho que aceitar, não é? Mas olhe que bem me custa esperar mais alguns dias. Estou a ferver e parece-me que se não fosse por si o caldo já estaria, há muito, entornado. De certeza que um de nós estava no cemitério e outro na cadeia.
- Oh homem, tanta violência! Não devemos ser assim precipitados e, mais a mais, ninguém, que eu saiba, te deu posse sobre ninguém para poderes reclamar com tanta veemência o que pretendes. Ela ainda é uma pessoa livre e sem compromisso, tanto quanto eu sei. Mas vamos deixar isso, por agora, que eu preciso mesmo de estar sozinho. Anda, bebe aqui um copo comigo e vai para casa sossegadinho. Amanhã ou depois vamos ter a nossa conversa e vais ver que fica tudo muito mais claro.
- Está bem, senhor Francisco.
- Então o que é que queres beber? Uma cerveja, um bagaço...
- Agora não me apetece nada, obrigado. Se começo p'r'aqui a beber ainda desatino mais e fico pior que estragado. Assim, prefiro ir para casa e esperar que o senhor Francisco me possa voltar a receber. Então muito boa noite e até amanhã.
- Até amanhã, rapaz e vê lá se tens calma, está bem?
O Alberto saiu em direcção à sua casa, que ficava para lá da casa do Carvalheira, e o Xico ficou, ainda um pouco, agarrado à maçaneta da porta, mergulhado em farto diálogo com os seus botões. A noite costuma deixar-nos mais tranquilos quando a procuramos em busca da paz, mas esta...
Veríamos se, agora, ia amainar, muito embora lhe parecesse que a quietude ia ser de pouca dura em face do muito que tinha para analisar.
Com estes pensamentos juntou-se à família que estava à volta da lareira e ficou silencioso a olhar para as chamas alaranjadas. O resto da família, porque já lhe conhecia essa necessidade de encontro com ele próprio mesmo estando no conjunto, não lhe interrompeu a meditação. A noite, afinal, prometia ser calma. Para maior certeza, fez saber a todos os presentes que não estava em casa para ninguém, mas mesmo para ninguém; "Nem que seja o Rei!".
O António Lourenço teve, também ele, uma noite diferente do que esperava e procurava. A última frase do Xico tinha abalado ainda mais a sua auto-confiança e a vontade de entrar naquela casa que conhecia bem demais. Enquanto durou a curta caminhada para a pensão, as frases do padre e do Xico foram-se insinuando cada vez mais e ele começou a andar cada vez mais devagar e a hesitar. Como não costumava desistir tão facilmente, lá seguiu a caminhada em direcção ao que se tinha proposto.
Mal entrou na pensão do Carvalheira, este nem o deixou sentar. Acercou-se dele com o seu andar bamboleante e sondou-o imediatamente:
- Então? Sempre o ides mandar embora ou não? Pela demora, a coisa foi difícil. Mas, vós todos de volta dele e o teu marmeleiro a fazer faíscas, sempre lhe fizestes ver que isto assim não pode continuar. Ele anda pr'aí todo enrolado com a outra e depois vem pr'aqui dar-me cabo do negócio. Sabes que algumas das moças que eu aqui tenho já se querem ir embora? Dizem que esta vida não leva a lado nenhum, que vão tentar arranjar um emprego decente, como se este não fosse um emprego decente. Fazer os homens felizes é bem decente. É o que lhe tenho dito e ele. Se ele prega que nós devemos trabalhar para o bem dos outros, as minhas raparigas são as que mais trabalham para isso. Ele bem me tenta dar a volta, mas a mim não me engana. Às tantas o que ele queria era que elas fossem ter com ele. Tenho a certeza de que as não mandava embora sem primeiro lhes tirar as medidas. Olha se não! E logo com ele! Mas, conta lá...
Depois desta tirada bem grande e pouco habitual no Carvalheira, o Tó Marmelo ficou um bom bocado em silêncio pois viu que, afinal, o padre era bem capaz de ter razão em estar magoado com eles por só verem a coisas por um lado.
Passado um longo silêncio, virou-se para o homem da pensão e disse:
- Olha lá, ó Carvalheira. Tu já me conheces há muito tempo, não é verdade?
- Eh pá, já nem sei há quantos anos te vejo aparecer por aqui. És um bom cliente. Mas...
- Então, agora diz-me: já alguma vez me viste recuar perante alguma dificuldade ou problema maior?
- Não, pá. Sempre te vi enfrentar os problemas sem medo e, se não vai duma forma, vai da outra, como tu costumas dizer. O marmeleiro resolve muita coisa
- Ora aí está! Mas, desta vez, não tenho certeza nenhuma e não sei o que hei-de fazer. Sinto-me perdido. O homem aparenta uma coisa e diz outra completamente diferente. Pelo menos… parece. Ele diz que não é nada diferente, que os nossos olhos é que são maliciosos. Mas, que diabo, se a gente vê um marmanjo com uma cavala, o que é que vai pensar? Que estão ali os dois como anjinhos? Percebes o que eu quero dizer? Se eu o vejo vir aqui à tua pensão, claro que vou logo concluir que ele não veio aqui por causa da linda cor dos teus olhos, não é verdade? No entanto, ele assegura que nunca usou dos serviços das tuas raparigas. Eu nunca te tinha perguntado, porque achava que nem era preciso, não é. Mas, pergunto-te agora: ele, quando aqui vem, vai para algum quarto ou não?
- Nem por sombras, pá. Porque julgas que eu gosto cada vez menos da cara dele? É que ele só me quer dar cabo do negócio. Fala com as raparigas, quando elas não estão de serviço, conversa com os clientes que estão no bar, olha com aqueles olhos de carneiro mal morto para os que acompanham as raparigas, bebe o seu sumo e não passa disso. Nunca o vi beber um copo de vinho, uma cerveja, um brandy... nada. Só sumo ou água. Mas ele, lá na igreja, bebe vinho, segundo me dizem.
- E em casa dele também. Nada demais, mas bebeu. E até nos acompanhou num bagaço dos dele. E que rico bagaço!
- Pois aqui nunca vi nada disso. Só a porcaria dos sumos.
- Mas, então com as tuas fêmeas nunca... nada?
- Nada!
- Vês? É por isso que eu nem sei o que hei-de pensar. Se me perguntasse, eu jurava que ele já as tinha experimentado todas. Quem vem aqui a tua casa não é para outra coisa, não é verdade?
- E pá, também não é bem assim. Aqui cada um consome do que quer. Há carne e há bebida. Ninguém é obrigado a usar o que não quer. Até porque eu não posso obrigar ninguém a comer do que não gosta. Se ele não gosta, não come. Já alguma vez te obriguei a usar o quarto quando estavas em dia não?
- Não. Lá isso é verdade. Mas, a maior parte dos que aqui vêm é por causa das fêmeas. Ora, eu pensei que ele, como é um homem como os outros, também precisava de mudar a água às azeitonas de vez em quando, como qualquer homem que se preze. Mas, segundo tu dizes, estava completamente enganado. Pois, digo-te mais, vou-me embora para casa. Hoje vai ser uma noite diferente em minha casa. A minha mulher até vai ficar assarapantada de me ver chegar a esta hora. Ainda vai pensar que eu enlouqueci ou que o padre me deu alguma coisa. Até vai ser engraçado...
- Espera aí. Já te vais embora? Então hoje não queres a ruiva?
- Não, pá. A ruiva é uma brasa de todo o tamanho, mas hoje vou passar sem ela. Não me sinto nos meus melhores dias. Esta noite não está a ser nada do que eu tinha pensado. Vês aqui este amigalhaço? - Mostrava o marmeleiro. - Bem pensei que as costas do padre iam hoje experimentá-lo, mas... nada. Nem isso me passou pela cabeça enquanto lá estive. Vê lá tu como eu estou hoje! Nem me conheço. Até amanhã, pá.
E saiu porta fora a olhar sempre em frente. Cabeça bem levantada, marmeleiro a marcar o caminho e... ala que se faz tarde.
O Carvalheira ainda esboçou um gesto para lhe lembrar que nem tinha bebido nada, mas arrependeu-se rapidamente ao ver o ar decidido com que o homem saía. Se nem a ruiva o fazia olhar para trás quando chamou por ele, nada mais o faria voltar. (Claro que o Marmelo podia nem a ter ouvido. Afinal era surdo, mas ela tinha estado bem perto dele). Amanhã era outro dia. E os outros clientes também precisavam da sua atenção. Ainda bem que estes não tinham ido falar com o raio do padre. Ai, ai... este padreco já o estava a fazer ficar com os azeites. Um dia destes ainda o ia pôr porta fora. Que fosse lá pregar para a igreja que era o sítio para isso. Não tinha nada que vir a estes lugares chatear as pessoas, desassossegar os clientes, encher a cabeça às fêmeas que ali trabalhavam. Já não o estava a ver bem...
Estes pensamentos estavam a alterar-lhe o sentimento e ele até já se estava a esquecer das encomendas que lhe faziam, a baralhar os preços e os artigos, tal era a desconcentração a que tinha chegado.
Bem, vamos lá a acabar com esta inquietação, pensou de si para si, e quando ele cá voltar, falamos.
Agora há que olhar para o que aqui temos que esta clientela não pode ser abandonada. Calma e olho vivo. Um homem quer-se mau e fino, para poder levar o negócio avante. Sai um duplo ali pr'à mesa sete...
O António Lourenço mal tinha andado alguns metros quando se cruzou com o Berto. Este, quando o reconheceu, estacou e saudou:
- Boa noite, Senhor António. Então, já vai para casa a esta hora?
- É verdade, rapaz. Esta noite vou madrugar em casa. E tu? Vais mais uma vez discutir com o padre?
- Não. Hoje vou para casa, também. Estava com ideias de acertar o passo àquele gajo, mas ali o senhor Xico fez-me prometer que esperava mais algum tempo. Não é que me apeteça muito. Estou farto de ver aquela besta a aproveitar-se do que é bom sem ter esse direito.
- Bem, não sei se ele tem esse direito ou não e, agora, também não sei se ele se tem, de facto, aproveitado. A gente, às vezes, engana-se. Esta noite ouvi coisas que me deixaram baralhado, sabes.
- Já o senhor Xico me disse a mesma coisa. Que é que se passou, afinal? O seu marmeleiro não estava bom das pernas, hoje? Estou a ficar admirado consigo. Mudar de opinião, dessa maneira...
- Admirado também eu estou. O meu marmeleiro, hoje, não quis cumprimentar as costas ao padre, já viste bem?!. Mas, se queres a minha opinião, acho que fazias bem em manter a promessa de ir para casa. Deixa o Xico explicar-te melhor as coisas e vais ver que tudo se resolve da melhor maneira. Ainda vais ser um rapaz cheio de sorte. É preciso é ter calma...
- Por agora vou cumprir o que prometi, mas não respondo, muito mais tempo, por mim. Boa noite, senhor António.
- Boa noite.
E seguiram em direcções opostas, cada um para sua casa, embrulhados em interrogações, em espantos, em dúvidas.
O Alfredo, em vez de se dirigir imediatamente para a sua casa apalaçada, como tinha alvitrado, deixou-se levar pelo chamamento da margem do rio. Era um passeio que ele, para meditar, costumava dar muitas vezes e, hoje, era mais necessário que nunca. Nem se apercebeu da hora tão tardia para tal caminhada. A sua mente rodopiava e tornava a girar, as suas ideias não se conseguiam fixar, o seu intelecto não achava um ponto seguro de apoio.
Como era possível que tivesse deixado passar tanto tempo sem tirar a limpo esta questão que ensombrava a paz da terra? Mais uma vez se recriminou por ter sido tão lento a reagir e a tentar esclarecer o que realmente se passava. Não era nada seu costume ser assim leviano nos juízos que fazia e na aceitação bona fide dos boatos que lhe chegavam aos ouvidos. Como se podia reparar o mal que, entretanto, tinha sido feito? Ou não teria havido assim tanto mal e as coisas poderiam, ainda, ser diferentes? Mas, que raio de situação! Porque é que nos preocupamos tanto com a vida dos outros, com as convenções sociais, com o comportamento ético...
Que me interessa a mim que o padre ande a consolar a moça ou ela a satisfazê-lo a ele, ou os dois a aproveitar a situação? Acaso isso é problema meu? São ambos maiores e vacinados, ou não?
Por outro lado, nós não somos uma ilha. Vivemos inseridos num grupo que se rege por costumes, leis, tradições, juízos morais e sociais, convenções... Não podemos fazer tudo o que nos dá na real gana sem termos em consideração o ambiente em que nos inserimos, sob pena de sermos rejeitados pelo grupo, pelo clã, pela aldeia, pela família de que fazemos parte e assim se desmoronar um dos pilares da preservação da espécie que é a coesão do grupo.
Vai ser preciso um bom passeio à beira rio para dar espaço à reflexão. Será possível que o que parece passar-se entre aqueles dois deva ser visto sob um outro prisma? Se sim, é preciso ter uma conversa mais séria com o Maneta e até com o Marmelo. Eles ainda não estão nada convencidos de que as coisas se passem como o padre diz. Além disso é preciso avisar o Xico para falar com os moços, especialmente com o Berto, para eles terem calma e darem tempo ao tempo. As coisas voltarão a ser serenas como no princípio e até é bem possível que a moça volte a ter olhos para algum deles (o Berto?), quem sabe...
Não podemos consentir que as coisas se resolvam pela via da violência. Isso não leva a lado nenhum e esta terra não tem essa tradição, pelo menos desde que me lembro. Sempre foi uma terra pacata, os seus habitantes sempre se orgulharem de ter um clima de paz entre eles, muito embora, às vezes, lá aparecesse um ou outro mais rezingão, mas isso era sempre passageiro. A norma era que houvesse paz entre todos eles.
Nos últimos tempos isso não era um dado adquirido. A paz andava um pouco arredia e a serenidade andava a eclipsar-se há bastante tempo. Há coisas que se não podem resolver sem se fazer o que hoje tinha sido feito, isto é, sem nos sentarmos em "mesa redonda". Essa ideia já há algum tempo que fervilhava na sua cabeça. Aliás, a conversa que há pouco tinha decorrido, na casa paroquial, tinha sido sugerida e preparada por si. Foi ele que convenceu os outros três a dirigirem-se a casa do padre e a exporem lá os seus motivos de revolta ou a colocarem as suas interrogações. Foi ele que incentivou o Pe. Josias a aceitar esse encontro, aliás, com grande contentamento por parte deste como atesta o facto da oferta do jantar ter partido do próprio padre.
Agora havia que promover mais algumas conversas a dois.
Essas conversas não podiam ficar para depois uma vez que quanto mais tarde, pior. Se é preciso fazer, faça-se já.
Quem estava mais à mão era ali o Xico, uma vez que o Marmelo tinha ido para o Carvalheira e ele, Alfredo, não gostava muito de frequentar aquela casa e o Maneta morava lá bem do outro lado do monte. Assim que, ainda que lentamente, deu meia volta e começou a dirigir-se para a casa do Xico. Era preciso juntar as ideias a fim de lançar mais luz sobre esta situação. Duas cabeças pensam melhor que uma.
Claro que o Alfredo estava longe de imaginar que o Xico estivesse tão ansioso por mais esse encontro como um rato por se encontrar com um gato. Enquanto voltava, foi preparando a conversa mentalmente, pelo menos nos seus preliminares. Depois, dançaria de acordo com a música.
Ao chegar junto da casa do amigo, admirou-se de ver tudo às escuras. Que se passava? Nem se tinha apercebido que era tão tarde: já passava das onze. Não chegou a bater à porta pois não eram horas de incomodar ninguém mas, sim, de ir para a cama. Afinal o seu desiderato não poderia realizar-se hoje. Tinha que ficar para o outro dia a tal conversa a dois, quer com o Xico quer com qualquer dos outros colegas de repasto. Estava na hora de repousar. Atrás de um dia vem outro.
Dirigiu-se, paulatinamente, para a sua granítica mansão e, em vez de ir directamente para a larga cama de casal do andar de cima, como tinha delineado, dirigiu-se para a recheada biblioteca no andar térreo a fim de espairecer a sua mente em tropel num policial de cordel de que tanto gostava nestas horas de turbilhão. Não o faziam pensar, antes o ajudavam a acalmar e preparavam bem o aparecimento de repousante sonolência, desviando-lhe a revoltosa torrente de ideias para areais imaginativos, para lagoas bonançosas, para horizontes voláteis, para ocasos serenos...
Era aqui que ele se elevava, que se esquecia do mundo, que dava largas ao seu poder de criação quando mentalmente visualizava os cenários do crime, do encontro de amor, do escritório do advogado, da esquadra da polícia, do quarto de hotel, da cara do criminoso, do carácter da vítima, da inteligência do detective.
Era aqui que tomava conhecimento do progresso da medicina, da evolução das ciências, das descobertas da bioquímica.
Era aqui que transmitia ao seu caderno de apontamentos as ideias, as dúvidas, os anseios, os ideais, os sonhos, as preocupações.
Era aqui que se encontrava, consigo mesmo, especialmente quando o tempo lhe não permitia confidenciar com o rio.
Era aqui que recuperava animicamente dos dias mais difíceis, dos estados de alma mais cinzentos.
Hoje, porém, só precisava de se entregar à leitura de Rex Stout para, embalado pela inteligência de Nero Wolf e pela perícia de Archie Goodwin, poder repousar mais tranquilamente.
Quando deu por si, já cabeceava acentuadamente o que o levou a fechar o livro e a dirigir-se para o meio do linho retemperador.

CAPÍTULO V
Ela ainda se não tinha encontrado com a Rosário, a outra, a “rival”, mas, mais por ter evitado esse encontro do que por mera impossibilidade. Já a tinha vislumbrado, mais que uma vez, no seu local de trabalho ou a caminho dele sem que disso a outra se apercebesse. Parecia-lhe, no entanto que o terreno começava a ficar pronto para esse encontro.
No seu espírito continuava a pairar a dúvida sobre os verdadeiros motivos que tinham levado a outra a aproximar-se do “seu” homem. Se fosse a paixão que a isso a tivesse levado, a situação tornava-se muito mais complicada uma vez que, lutar contra uma mulher apaixonada é uma tarefa quase impossível, a não ser que quem luta também seja movido por idênticos sentimentos. Ao sentir-se atacada ou ver perigar o seu território, a mulher apaixonada defenderá o seu terreno com todas as armas de que dispõe e são muitas. Se, por outro lado, o motivo da aproximação da outra ao Josias fosse apenas de cariz espiritual, como também se admitia na aldeia, então, tudo seria bem mais fácil. Não haveria colisão de interesses. Cada uma podia, pensava ela, ocupar livremente o seu espaço próprio.
Isso, no entanto, só durante o encontro entre as duas se tornaria completamente transparente, esperava. Por isso, era necessário preparar muito cuidadosamente esse frente-a-frente.
Antes de mais: deveria parecer casual ou premeditado?
Possivelmente, teria mais espaço de manobra se o encontro parecesse provocado por ela. Nesta, como noutras guerras, a melhor defesa é o ataque. Ao dar a entender que o encontro tinha sido propositado, ela assumiria o controlo da situação; as brancas pertenciam-lhe e isso facilitava a escolha da estratégia a adoptar. Claro que, a partir daí, o jogo estava lançado e haveria que acompanhar com muita atenção as jogadas atacantes ou defensivas da outra. A primeira jogada, porém, seria sempre sua. A não ser que a outra também pensasse de igual maneira. Mas, para isso, era forçoso que a outra soubesse da sua existência o que lhe não parecia muito provável por aquilo que ouvira na aldeia. Mas, era possível!
No entanto, mesmo que planeado, qual seria a melhor forma de começar? De uma forma agressiva, como quem sabe bem o terreno que pisa ou em jeito de explorador de floresta virgem?
Se a outra soubesse da sua existência, uma entrada demasiado branda poderia resultar na perda do factor surpresa e, portanto, dar à rival vantagens desnecessárias. Se, por outro lado, ela de nada soubesse, uma entrada demasiado agressiva poderia provocar uma resposta desnecessariamente violenta.
Antes de avançar, teria de indagar junto de Josias sobre as verdadeiras intenções da outra. Isso, porém, poderia ser também arriscado. Se ele estivesse apaixonado pela outra, certamente que a iria pôr de sobreaviso e, mais uma vez, se perderia o factor surpresa. Se, no entanto, entre eles mais não houvesse que uma partilha de ideais, isso deixar-lhe-ia, a ela, o caminho livre para poder avançar na senda da reconquista daquele coração dilecto. Averiguar na aldeia de nada servia, uma vez que isso já ela tinha feito sem resultados fiáveis. Haveria, antes de mais, que promover um encontro com Josias e, a partir daí, jogar de acordo com as cartas que fossem saindo. Como ele era o cerne da questão, era por ele que todas as respostas tinham que passar e era nele que todos os planos se deviam centrar. Esse encontro, porém, não podia (não devia) ser feito de maneira leviana nem em ocasião de demasiada exposição. Ela deveria continuar incógnita, se é que ainda o era. E se, eventualmente, fosse feito às claras, deveria ser (parecer) inteiramente fortuito.
A situação estava a complicar-se mais do que, à primeira vista, lhe parecera possível e desejável. Os intervenientes eram mais do que os esperados e, assim, o puzzle tinha muito mais peças aumentando, por isso, o número possível de combinações.
Qual seria a melhor hora? Às dez?... Tarde de mais. Era mais recatado, mas, simultaneamente, mais perigoso. Se alguém se apercebesse da sua presença, àquela hora, na residência paroquial, certamente que não iria ficar com uma impressão muito favorável e o ambiente já era suficientemente agitado dispensando, por isso, esse tipo de ajudas. Naquela aldeia, as dez da noite já não é uma hora muito própria para que um padre receba, em sua casa, uma mulher sozinha e desconhecida. Assim, tentaria, amanhã mesmo, deslocar-se à casa paroquial a uma hora mais decente. Não seria muito avisado fazê-lo na hora normal de expediente pois, assim, o seu anonimato poderia esfumar-se e, para isso, ainda era cedo. Logo a seguir ao jantar parecia-lhe uma boa ocasião. Com base nestes pressupostos, decidiu esperar pelo dia seguinte, pela hora habitual do passeio posterior ao jantar, para se aproximar da casa paroquial e, então, suscitar o encontro.
Ela não sabia, nem podia saber, que a Rosário tinha decidido a mesma coisa. Claro que, se o soubesse, o seu passeio do dia seguinte teria tomado um rumo diferente.
Como não sabia, adormeceu com este propósito e, durante o sono, várias vezes sonhou com o planeado encontro com o homem da sua vida e com as várias facetas que o seu atormentado cérebro tinha previsto para ele: Amor, paixão, desconfiança, luta, mansidão,...
O mesmo se passava com a Rosário, sem que, no entanto, os termos Amor e paixão tivessem o mesmo conteúdo. A desconfiança também lá morava, mas muito mais esbatida.
O sono de ambas não foi nada retemperador: já tinham conhecido melhores dias, quer dizer, melhores noites.
No dia seguinte, após um normal dia de trabalho e de lazer, respectivamente, ambas se dirigiram, depois de jantar, para o local de véspera definido. Ambas chegaram quase ao mesmo tempo, muito embora a Rosário tivesse aparecido ligeiramente mais tarde. Como não precisava de estudar o terreno (conhecia-o como as palmas das suas mãos), aproximou-se apressadamente da porta lateral, como sempre fazia, e preparava-se para tocar à campainha quando se apercebeu da figura de uma senhora relativamente jovem e de aparência bem cuidada junto à referida porta. Admirou-se dessa presença, ainda por cima àquela hora, uma vez que as visitas “de trabalho” não apreciam na porta lateral às 20,30h, nem eram constituídas por caras desconhecidas e, para cúmulo, nada de deitar fora. Afinal, tratava-se de uma completa desconhecida para ela. Quem seria? Alguém da família dele? As semelhanças físicas não eram nenhumas, embora isso nada significasse. Uma amiga? Ele nunca lhe tinha falado de nenhuma. Aliás, ele nunca tinha revelado nada da sua vida passada. Apenas da sua vida pública, da sua missão, do seu papel na sociedade, na Igreja. Hesitou: deveria interrogá-la ou não? Não! Arriscou um tímido “boa noite” e esperou pela resposta. Esta apareceu suave e calma:
- Boa noite. É a menina Rosário, não é verdade?
A admiração aumentou e isso foi evidente para a que tinha chegado primeiro. Daí extraiu a conclusão de que a sua existência era, também para a Rosário, uma incógnita. Ainda bem. Havia, então, que avançar.
- Vejo que o facto de eu conhecer o seu nome lhe causou estranheza uma vez que sou para si, penso, uma completa desconhecida. Mas, não se admire. Todos nós somos muito mais conhecidos do que aquilo que julgamos e, ainda mais, quando nos relacionamos com figuras publicamente expostas. Antes ainda de lhe dizer o meu nome, devo anunciar-lhe que sou uma grande e antiga amiga do Josias a quem conheço há mais de vinte anos. Muito me admira que ele lhe não tenha falado de mim nos diversos encontros que vocês têm tido. É sinal de que esses encontros não têm sido tão profundos nem tão íntimos como por aí se diz.
- Essa sua ilação é inepta e incompleta. Antes de mais, ainda ninguém disse que eu nada sabia a seu respeito. Depois, mesmo que isso fosse verdade, não é forçoso concluir que os nossos encontros, como lhes chama, não fossem profundos. Para que um encontro seja profundo, não é necessário nem prioritário que seja passado a falar sobre a vida dos outros. Pode e deve incidir sobre a nossa própria existência, a nossa maneira do nos situarmos no mundo, na sociedade, na vida, sobre as nossas motivações, ideais, metas de vida.
- Concordo plenamente. No entanto, quando duas pessoas são verdadeiramente amigas, como parece ser o vosso caso, é muito natural que as nossas vidas sejam partilhadas em toda a sua extensão, com um profundo conhecimento e simbiose do mais íntimo de nós mesmos.
- Isso, porém, não implica que deixe de haver momentos e recordações não partilhados, que tudo seja transparente. Mas, quando fala sobre encontros íntimos, parece querer atribuir-lhes um sentido bem diferente daquele que eu lhes confiro. Para si, pelo tom que usou ao falar de encontros íntimos, creio poder concluir que se trata de uma intimidade mais limitada ao lado físico da questão do que à faceta imaterial. A intimidade física, porém, não engloba a intensidade da intimidade espiritual. Esta é muito mais abrangente, muito mais completa. Engloba o ser humano em toda a sua extensão mais profunda.
- Estamos a entrar em campos filosóficos de mais para o meu gosto. Isso, no entanto, deixa-me com a ideia de que o seu interesse pelo Josias não é pelo homem mas pelo padre. Estarei certa?
- Ao contrário do que várias pessoas da aldeia parecem pensar, a minha amizade com o Pe. Josias é de uma profundidade incomensurável, mas coloca-se num plano muito acima dos interesses meramente terrenos e carnais. Para responder à sua pergunta, o meu interesse pelo Pe. Josias é pelo homem, mas pelo homem enquanto padre, enquanto portador duma mensagem de salvação, enquanto evangelizador, enquanto mensageiro da Boa Nova, d’A Mensagem.
- Ainda bem para todos. Creio que assim se torna muito mais fácil a minha apresentação sem que da sua parte seja de recear uma reacção violenta.
- Reacção violenta?!
- Sim. Quando duas pessoas disputam o mesmo terreno, dificilmente uma cede pacificamente em favor da outra. A não ser que isso lhe traga outras vantagens. Entre nós, porém, não antevejo colisão de interesses, pelo que me parece podermos viver todos pacificamente.
- Vai ter que me desculpar, mas estou a ficar muito confusa com as suas palavras. Gostaria, antes de mais, de saber com quem estou a falar para, depois, tentar perceber o sentido daquilo que me está a querer transmitir.
- Acho justo! Eu apresento-me.
Junto à porta lateral do jardim, aquela mesma porta que ainda havia bem pouco tempo tinha servido de tela, mais uma vez se projectou o “filme” de uma vida. Desta vez, porém, embora o “actor” fosse o mesmo, havia assistência. Com o desenrolar da “fita”, a Rosário ia ficando cada vez mais assombrada. Porque é que o Pe. Josias nunca lhe tinha falado desta que, agora e inexplicavelmente, lhe espraiava uma parte da sua vida? Ele, afinal, não era tão transparente como aparentava e como ela imaginava. Havia uma parte da sua vida que ele mantinha resguardada e fechada a sete chaves. Como é que ele, tão firme na sua vocação, tinha podido sentir uma paixão tão exuberante na sua juventude? Não há dúvida que, como dizia o filósofo francês, “o coração tem razões que a razão desconhece”. Poderia ele manter, ainda, num recanto do seu coração, um lugar em aberto para esta que, na sua frente, entreabria a alma? Iria, ele, ter mais problemas do que aqueles que agora tinha, por sua causa? A ser verdade aquilo que os seus ouvidos captavam e o seu cérebro registava, os problemas causados pelas suas relações com as mulheres já vinham de longe. Seriam para manter? Ela, por aquilo que lhe dizia respeito, quase se arrependia da sua atitude inicial, pela forma como tinha entrado na vida dele embora ainda hoje pensasse que nunca nos devemos arrepender de nada do que fazemos. De nada serve o arrependimento. Nada modifica ao que está feito e em nada nos beneficia. No entanto, se tivesse agido de outra forma, se não se tivesse deixado levar pelo coração, se tivesse dominado as suas emoções e se tivesse limitado a viver a sua vida noutro lado, ele não teria tido tantos problemas como aqueles que, de há uns tempos a esta parte, enfrentava por sua causa. Mas, se tivesse abafado as suas emoções, se não tivesse dado ouvidos ao seu coração, a sua vida como ser sensível não teria nexo. Além disso, ela teria ficado apenas com uma visão única dos padres e da hierarquia toda da igreja católica. Uma visão que era, possivelmente, deturpada, como são todas aquelas que nos apresentam a realidade por um único prisma. E a sua vida seria, certamente, muito mais cinzenta e monótona. Acabaria por perder todas as motivações para viver. Uma vida sem emoções é uma vida morta, passe a contradição dos termos. Uma vida só tem sentido se tiver um motor emocional uma vez que o ser humano não é só cérebro, não é só intelecto, raciocínio mas é também, (deve ser), coração, sentimento, paixão, emoção.
Pela descrição que agora ouvia, o Pe. Josias era, de facto, coração, sentimento, paixão, emoção. A sua vida, pelo menos em determinado momento, tinha transbordado com todos esses estados de alma. A sua entrega à vocação do sacerdócio era disso a prova evidente. Era, possivelmente, uma sublimação dos sentimentos, mas, fosse como fosse, a sua vida era uma vida preenchida, uma vida que, pelo menos na opinião dela, valia a pena ser vivida. Ele tinha-se libertado dos laços da paixão, pelo menos aparentemente, e tinha dado uma dimensão nova, diferente, à sua existência. Agora, contudo, em face do reaparecimento da sua interlocutora, como seria? O que dominaria mais, agora? O coração dele, para que lado iria pender? Desta vez, como vinte anos antes, ele seria capaz ou quereria dizer não a uma paixão unipessoal ou não saberia resistir? E ela, a anterior apaixonada? Iria desistir tão facilmente como da primeira vez? O tempo, embora cure todas as feridas, também costuma dar mais consistência à nossa personalidade e esta que tinha na sua frente não lhe parecia ser pessoa para desistir com facilidade. O que se teria passado da outra vez para ela ter baqueado com tão aparente docilidade? Será que não estava preparada para essa possibilidade? Se assim era, então, desta vez, isso certamente não aconteceria pois ela teria precavido muito melhor o seu estado de alma e teria previsto todas as hipóteses e a maneira de lhes dar saída.
A narrativa tinha, entretanto, chegado ao fim. Ambas se mantiveram em silêncio por um largo espaço de tempo. Era necessário tempo para assimilar tudo o que tinha sido dito, espaço para deixar escoar a torrente de emoções que jorrara daquele coração exposto.
Os segundos foram escorrendo lentamente até se transformarem em minutos que acabaram por parecer muito mais do que aquilo que de facto eram: simples fluir de vidas. Pareceram horas de tempo suspenso. A Rosário, por fim, sentiu-se compelida a interromper esse hiato silencioso e disse:
- Afinal, tinha razão. Eu nada sabia a seu respeito, nada sabia desse período da vida do Pe. Josias. Bem, também não tinha qualquer necessidade de saber. Ele tem todo o direito à sua vida privada. (As palavras saíram da boca que não do coração). Aquilo que nos une não é um sentimento de partilha de vida mas uma comunhão de ideais. Não sei se já falou com o Pe. Josias a meu respeito, mas, se o não fez, terá oportunidade de descobrir que ele teve na minha vida uma importância extraordinariamente superior à simples presença física ou amorosa. Isso é demasiado redutor para aquilo que ele representa para mim. A minha vida, antes dele nela aparecer, não tinha qualquer sentido, limitava-se a um encadear de momentos vazios ou apenas preenchidos com uma ideia fixa de ódio e vingança, pelo menos a partir de um determinado momento que não quero recordar. Era uma existência demasiado amarga para valer o nome de existência. Quando o Pe. Josias apareceu, quando eu o fiz aparecer, tudo se tornou diferente. O meu rumo de vida passou a ser outro, as minhas motivações voltaram a ganhar uma dimensão humana. O ódio e a raiva deram lugar ao amor, à compreensão, à dedicação aos outros. É ainda um estado jovem mas muito bem encaminhado, que pretendo fazer frutificar a muito breve trecho.
- Deixe-me ver se nos situamos. O seu interesse pelo Josias não tem nada a ver com aquela paixão que nos cega e nos tira o fôlego, que nos faz sentir tremores nas pernas e cãibras no estômago, que nos coloca um suave mas enorme peso no peito e nos dificulta a respiração?
- Muito pelo contrário. O meu interesse não é pelo Pe. Josias mas pelo ideal de vida que ele divulga, pelas ideias que ele nos comunica, pela mensagem que anuncia. E, antes que pergunte, o interesse dele não é por mim mas pela minha personalidade, pela minha vida que estava perdida e ele ajudou a recuperar. Há, ainda, uma parte dessa vida que ele desconhece e, aquilo que aqui me trouxe, hoje, foi o propósito de partilhar com ele esse naco negro do meu passado. Não me sinto bem se o não puser a par desse meu pedaço de vida. Se me é permitido perguntar, o que a trouxe aqui, hoje, a esta hora?
- Por incrível que possa parecer, foi a Rosário, ou, melhor, a tentativa de clarificar o seu papel na vida do Josias. Como não sabia o terreno que pisava, relativamente a esse aspecto da vida dele, queria documentar-me junto de um dos intervenientes. Afinal, os nossos planos cumprem-se, muitas vezes, de forma bem diferente da idealizada sem que os fins deixem de ser atingidos. Neste caso, o esclarecimento que eu procurava, acabou por ser muito mais completo do que aquilo que eu tinha augurado e, ainda que vindo de uma fonte bem diferente daquela que eu conjecturava, tornou-se muito mais abrangente que o esperado. Creio, pois, poder avançar para a outra parte dos meus planos. Se o seu interesse não é pelo homem Josias mas apenas pelas suas ideias, isso quer dizer que eu posso tentar recuperar e reacender aquela paixão antiga e intensa que já ardeu naquele peito.
- Poder, pode. Parece-me, no entanto, que não deve. O Pe. Josias sente-se realizado, tem o seu mundo estabilizado, a sua vida decorre de acordo com os ideais que defende e não creio, por isso, que tenha o direito de destruir ou, pelo menos, de abalar essa construção que tanto custou a erguer. Nós não temos o direito de destruir os ideais de ninguém.
- Mas, eu não quero destruir nada! Eu quero é construir. O que poderá ser mais importante que uma vida a dois baseada num amor tão intenso como aquele que nos une, ou, pelo menos, que nos uniu?! A vida fora do amor não tem qualquer sentido!
- Nesse ponto estamos completamente de acordo. O que nos separa é a ideia que fazemos do que será o amor. Para si, tanto quanto me é dado perceber, o amor só tem sentido se nascer entre duas e só duas pessoas.
- E pode haver outro sentido para o amor?
- Claro que pode. Pode e há. É esse amor que o Pe. Josias vive; o amor desinteressado e que tem como realização a entrega aos outros, a doação de si mesmo em prol da comunidade que serve e orienta sem esperar outra recompensa que não seja o crescimento do seu rebanho. É um amor feito de entrega de si mesmo aos outros como consequência duma fé profunda e uma vivência abrangente dos ideais da mensagem evangélica. Pastor que dá a vida pelo seu rebanho.
- Já vi que as ideias do Josias já encheram essa linda cabecinha. Não estará a ficar cega e a ver uma coisa que não tem nada a ver com a realidade? Não será que ele quer, antes, aproveitar esta cabritinha que eu tenho na minha frente?
- Não seja insolente! O Pe. Josias dedica-se com amor a todas as pessoas que compõem a comunidade de cristãos que se sentem atraídos e são orientados por ele. Para isso é que ele é padre.
- Ora, ora... deixe-se de coisas. Isso não é amor. Isso é estupidez! Ele apenas é padre porque... nem sei bem porquê.
- Ele é padre porque tem um ideal em que acredita, porque se sente realizado como ser humano ao entregar-se à pregação e expansão da mensagem que ele sabe irá conduzir a humanidade para a sua realização plena, porque respondeu a um apelo que lhe foi lançado, porque deixou tudo, mesmo um grande amor, para seguir a Cristo, um amor ainda maior.
- Pois eu penso que ele é padre porque o ambiente em que foi criado o empurrou para isso, porque a família o educou nesse sentido, porque os seus pais o meteram nessa via e ele não quis ou não teve coragem para dizer não, porque ele não quis dar razão às vozes que lhe diziam que não tinha qualidades para ser padre. A vocação, o chamamento e essas tretas todas não são mais que desculpas para a pressão social.
- A sua paixão torna-a cega para realidades mais altas. Não consegue compreender e apreciar o valor e a dimensão da opção do Pe. Josias porque limita o ser humano à sua dimensão meramente temporal, ao seu estatuto de ser perecível. Esquece, no entanto, a qualidade intemporal do homem, o estatuto de filho de Deus que o coloca num grau muito superior na estrutura da criação.
- Essas conversas de religião, criação e outras que tais é um campo que não me interessa. A única coisa que verdadeiramente me interessa é o meu dia a dia, a minha vida vivida em contínuo e, se possível, com o maior grau de felicidade exequível. Afinal, o ser humano não é mais que o passado que já não existe, projectado no futuro que ainda não é através do presente que flúi. Daí que essas coisas de eterno, divino, sobrenatural, etc., me deixem indiferente. Eu apenas pretendo agarrar o presente, tendo em mente as lições aprendidas do passado a fim de prevenir erros no futuro.
- Repare que a nossa vida só tem sentido se alguém ou alguma coisa lho der.
- Concordo plenamente consigo e, quem dá sentido à minha vida, é o Josias, o seu Pe. Josias. Desde que ele desapareceu da minha vida, nunca mais tive ou senti alegria de viver. Limitei-me a vogar mais ou menos ao sabor dos apetites do meu corpo sem nunca ter conseguido qualquer grau de satisfação ou sentido de realização. Durante o tempo que a nossa paixão nos uniu, eu sentia-me leve como uma pena. Tudo tinha mais cor, mais brilho, mais sabor, mais intensidade. Quando ele desapareceu tudo se tornou frio, cinzento, baço, apagado. Assim que, tenho que concordar consigo quando diz que a vida só tem sentido se alguém lho der.
- Não era nessa direcção que eu levava o meu pensamento.
- Pois não, mas essa é a única via que o meu espírito segue. Nada mais me interessa a não ser a vida vivida ao lado do único homem que me fez sentir verdadeiramente viva, aquele que fez vibrar todas as cordas mais sensíveis do meu ser.
- Mas eu referia-me a um desejo muito diferente, a um sentimento muito superior à simples paixão carnal.
- Isso não existe. A paixão verdadeira envolve o ser humano completo. Só essa paixão é arrebatadora. Quando um ser humano se entrega e se sente absorvido por outro, ao ponto de só assim se sentir completo, é nesse momento que a paixão tem sentido. Quando os dois se sentem um só, quando um não tem sentido sem o outro, quando a simbiose é tão completa que a dualidade se unifica, então, o amor é grandioso. Esse estado estava em construção entre o Josias e eu. Compreende, agora, porque não posso deixar passar mais esta oportunidade de reaver a felicidade.
- Só que essa felicidade é demasiado egoísta. Vai, se conseguir os seus propósitos, privar uma comunidade inteira de um homem ao seu serviço, de um pastor, de um orientador carismático, para guardar tudo para si. Lembre-se que só da partilha nasce a abundância.
- Essa agora é nova. Quando se partilha há um empobrecimento e não um acréscimo.
- Puro engano e você mesma acaba de o dizer. Quando partilhamos o que somos com outra pessoa, isso vai enriquecer essa pessoa sem que nos diminua em nada; antes pelo contrário. Quando alguém se partilha connosco, isso enriquece-nos sem que essa pessoa fique mais pobre. Há, portanto, um acréscimo na partilha. Concorda?
- Nesse sentido, sim. Mas, se eu partilhar o meu homem com o que você chama “a comunidade”, em que é que isso me enriquece? Em nada. Só me vai empobrecer cada vez mais até ao ponto de me aniquilar. Por isso e em nome da minha sobrevivência, estou decidida a lutar para recuperar o que já foi meu e de nada valerão os seus argumentos. Contra uma paixão tão forte como a nossa não se pode lutar.
- Não se esqueça que, entretanto, já passaram vinte anos e, durante esse tempo, as pessoas mudam. Não creio que da parte do Pe. Josias essa paixão mantenha essa fogosidade da juventude. Muita água passou debaixo das pontes e muitas voltas deram as nossas vidas. O Pe. Josias é, agora, uma pessoa diferente... penso eu.
- Ainda há poucos dias estive ali com ele e não me pareceu uma pessoa muito diferente daquela que conheci há vinte anos. Aqueles olhos não me enganam. O fulgor não será tão abrasivo mas a luz ainda é límpida, o brilho ainda intenso e a cor cativante.
- Há quem diga que as nossas hormonas não nos permitem apaixonar-nos duas vezes pela mesma pessoa.
- Isso são tretas. Mas, mesmo que isso fosse verdade, aqui não se aplica esse princípio. Não se trata de o coração bater uma segunda vez pela mesma pessoa, mas, apenas, de restaurar, reconstituir, continuar e intensificar uma paixão que nunca morreu.
- Nunca morreu, da sua parte. E da parte do Pe. Josias?
- Não pode ter morrido. Era demasiado intensa para ter morrido. Apenas adormeceu, certamente. Não posso acreditar que o amor que ele sentia por mim pudesse ter morrido. Era um amor demasiado sincero, demasiado profundo, demasiado avassalador e demasiado vivo para morrer. Claro que a isso só uma pessoa pode responder e nós estamos bem perto dela. Parece-me que a maneira mais rápida e segura de dissiparmos essas dúvidas será confrontando o Josias com elas. Já agora creio que podemos aproveitar o facto de estarmos aqui para levarmos até ao fim os propósitos que aqui nos trouxeram. Concorda?
- De facto, parece-me o mais avisado. Se o que aqui nos trouxe foi, quanto a si, saber a verdade e, quanto a mim, dizer também a verdade, creio ser lógico levar as coisas até ao fim. Ficaremos, então, a saber em que pé nos encontramos todos.
- Vamos então.
Mas ambas hesitaram em tocar à campainha, agora mais receosas do resultado do encontro tão cuidadosamente preparado, pelo menos por um dos lados do triângulo. Cada uma delas preferia que a iniciativa partisse da outra.
A Rosário, agora inteirada das motivações e identidade da outra, (chamava-se Mafalda), temia o resultado desse encontro pois não sabia se a antiga paixão do Pe. Josias se reacenderia e, caso isso sucedesse, o que daí adviria. A Mafalda também receava mais uma desilusão. Não duvidava que, a acontecer, seria a última da sua vida. Mais desejosa de esclarecer rápida e definitivamente a situação, tomou a dianteira e tocou à campainha. O seu coração disparou em louca correria e as pernas enfraqueceram.
Também da parte da Rosário as coisas não estavam mais fáceis. O seu cérebro, que adquirira, gradualmente, a serenidade, estava novamente em turbilhão. O que sucederia? Teria hipótese de levar até ao fim o seu propósito? Não seria já tarde demais? O que pensaria, de si, o querido Pe. Josias? Como reagiria? Mais uma vez as dúvidas da véspera a assaltaram e assustaram. De qualquer maneira, agora era tarde para retroceder. Já que ali tinha chegado, havia que levar até ao fim o percurso iniciado.
A demora do Pe. Josias em abrir começava a parecer-lhes uma eternidade ainda que, de facto, tivessem decorrido os segundos habituais e necessários para a sua deslocação até à porta. Começaram a pensar que, talvez tivesse ido passar mais um serão na pousada do Carvalheira mas, aquela hora ainda era temporã para isso. Nenhuma delas sabia que, naquela noite, não poderiam ser recebidas pelo Pe. Josias porque ele tinha antecipado a sua saída semanal das Quintas-feiras. No dia seguinte a sua irmã fazia anos e ele não queria perder mais essa celebração em família, a sua família de sangue.
Foi essa irmã que lhes abriu a porta e, num esgar de desconforto, demonstrou a sua pouca simpatia para a já habitual visita que tantos problemas tinha levado àquela casa, a Rosário. Mas ao seu arguto e vigilante olhar não passou despercebida a presença de mais uma personagem feminina. Mais problemas? Ele nunca tinha tido problemas desses, que ela soubesse, até lhe aparecer a Rosário, para lhe criar um verdadeiro rosário de dificuldades. Desde que ela aparecera por ali nunca mais aquele querido irmão tinha sossegado. Não que ele se queixasse ou partilhasse com ela o que lhe ia na alma, mas ela não era cega e bem via que ele andava inquieto e mais desconcentrado. Ainda por cima, ela ouvia as pessoas da aldeia e os boatos que por ali circulavam. É claro que ela não acreditava neles pois conhecia o seu irmão como as palmas das suas mãos, mas isso não a impedia de se sentir desconfortável com aquele falatório e de hostilizar, ainda que moderada e dissimuladamente, a causa de tanto burburinho: aquela que agora estava, mais uma vez, na sua frente. Ela tinha toda a confiança no seu irmão e sabia que ele se não deixava desviar do rumo há muito traçado, mas não compreendia como ele parecia deixar-se manipular tão facilmente só para não magoar ninguém. Assim, acabava por se magoar a si próprio e, já agora, a ela, que sofria em silêncio e sem ver muito o que fazer para modificar aquele coração aberto a todos, mesmo que em prejuízo próprio.
De momento, porém, a sua tarefa custava-lhe pouco a cumprir, aliás, cumpria-a com gosto: ia mandá-las de volta sem que elas o pudessem importunar. Ainda bem que ele não estava. Ela não sabia porque teria ele escolhido aquela noite para a sua saída semanal, mas suspeitava que, mais uma vez, se não tinha esquecido do seu aniversário. Ele era, mesmo, um amor...
Estes devaneios passaram num ápice pela sua mente e ela, com um meio sorriso forçado e mais para a nova personagem do que para a já habitual e, para ela, indesejada visitadora, disse:
- Boa noite. Em que lhes posso ser útil?
- Boa noite D. Arménia, antecipou-se a Rosário. Gostaríamos de falar com o Pe. Josias se ele estiver disponível.
- E o Pe. Josias teria todo o gosto em as receber, mas não está. Saiu e vai voltar tarde.
E com esta tirada sentiu um gosto especial ao ver o desalento estampado no rosto das duas. Não bastaria uma para o atormentar? A que viria esta cara nova? Serviria para desviar a Rosária dali? Oh! Quem dera que isso fosse verdade. Deus fosse louvado se isso viesse a acontecer. O seu querido irmão já tinha tanto com que se preocupar! Aquelas mulheres não teriam mais nada para fazer? Havia tantos homens por aí. Fossem procurar noutro lado. Ele era, realmente, um querido mas, elas não teriam olhos na cara para ver que ele tinha outros ideais? Deixassem-no em paz!
- É pena mas voltaremos noutro dia, empertigou-se a Rosário. Por favor, diga-lhe que estivemos aqui
- Mas eu só a conheço a si. Não saberei dizer quem é esta outra senhora.
- E nem é preciso. Diga-lhe só que estive aqui eu e outra senhora que ele vai saber quem é.
- Assim farei. Boa noite.
- Boa noite
E, com a porta a fechar-se-lhes na cara, retiraram-se desalentadas mas com o propósito de voltarem tão breve quanto possível.
Enquanto a Mafalda se dirigia para a pensão da D. Henriqueta, conformada com a ausência, embora ansiosa por um encontro esclarecedor, a Rosário arrastou os seus passos para a casa da Raposeira. Não estava à espera desta desilusão. Onde teria ido? Não era habitual ausentar-se às quartas-feiras. A sua saída habitual para ir não sabia onde, era às quintas-feiras. O que teria acontecido hoje para ter saído e ‘voltar tarde’? Bem, deveria haver uma razão… Talvez algum paroquiano o tivesse mandado chamar, quem sabe? Os seus conselhos e a sua capacidade de ouvir, ajudavam muita gente a ultrapassar momentos de agrura que a vida muitas vezes nos traz. Graças a esses mesmos conselhos, a vida dela tinha, nestes últimos tempos, dado uma volta de cento e oitenta graus. Quando ali chegou tinha uma sanha enorme contra os padres e a sua única preocupação para com eles era encontrá-los para os destruir. Agora, após tantas conversas com aquele homem de Fé inabalável, a sua luta era para os ajudar a ampliar a sua influência na comunidade onde se inserissem. Estava apenas a dar os primeiros passos nessa difícil reviravolta, mas estava firmemente apostada em levar avante essa sua nova frente de batalha. Involuntariamente, tinha prejudicado aquele que agora tinha que ajudar a defender quer a nível da paróquia onde estava a trabalhar quer dos ataques exteriores que agora se perfilavam por intermédio da antiga paixoneta. Não sabia ainda como iria resultar esta luta pois os seus intentos para aquela noite tinham-se gorado. Amanhã seria outro dia, mas não pensava encontrá-lo em casa pois era quinta-feira. Esperaria por um dia melhor, talvez na próxima semana. A sexta-feira não era um bom dia. Ele tinha sempre muitas pessoas para receber, nesses dias, ou melhor, nessas noites.
O seu coração ainda baloiçava, muitas vezes, entre a nova perspectiva da vida e a antiga raiva contra os padres. Ainda não tinha conseguido esquecer, completamente, o drama que a tinha lançado nos braços da amargura e do desespero. Quando a vida lhe apresentava, como agora, obstáculos inesperados e intransponíveis, deixava-se arrastar novamente, para a margem negra do rio da vida. Claro que esses momentos eram cada vez mais raros e, por exemplo, hoje, apenas pressentiu que ia ficar abatida, rapidamente esbracejou para voltar ao centro da corrente e até nem ficou tão revoltada como anteriormente: apenas um pouco ansiosa. Claro que a presença da Mafalda tinha contribuído para a espicaçar e fez com que ficasse mais alerta.
Ia tão ensimesmada que nem se apercebeu que já tinha chegado a casa. Entrou sem que nada de anormal lhe despertasse a atenção: esta estava virada para outros pensamentos, para o filme de uma parte da vida da Mafalda de que, havia pouco tempo, tinha tomado conhecimento, para a acrescida preocupação que a vinda desta lhe tinha trazido, para a ausência do Pe. Josias. Seria apenas coincidência ou a outra teria ido apenas fingir para a porta dele, de conluio com a irmã, para agora estarem mais à vontade? Não era possível. Ele não lhe ia fazer isso. Não agora, que as coisas estavam a ficar tão incertas para ela. Mas, teria a antiga paixão desaparecido assim tão completamente? Quanto a ela, a amarga experiência por que tinha passado ainda se mantinha latente no seu espírito, mas o tempo decorrido também era muito menor. Ele já tinha vivido muito desde os seus vinte anos e, certamente, estava muito mais endurecido interiormente e precavido contra os efeitos do amor carnal; bastava ver o que tinha sucedido com ela. Nenhuma das suas artimanhas o tinha demovido. E ela sabia muitas!
Quando atingiu o princípio das escadas que levam do jardim ao patamar da casa ouviu uma voz dizer qualquer coisa e deu um salto tão grande e um grito tão estridente que lhe pareceu que até as estrelas se assustaram. Tinha sido apanhada desprevenida, caso contrário, não se teria assustado desta maneira: estava muito habituada a receber visitas naquele jardim e naquele patamar.
- Quem está aí? – perguntou ela quando recuperou a voz.
- Calma, Rosário, sou apenas eu, disse o Frederico. Já há muito tempo que lhe queria fazer mais uma visita. Parece-me que esta casa está a precisar da presença de um homem. Que me diz?
- Quem lhe meteu essa ideia na cabeça?
- Na minha cabeça ninguém mete ideias! Sou eu que lhe dou uso e não preciso que ninguém me venha dizer o que devo pensar, fazer ou dizer, está bem?
- Bem… está. Mas, se essa ideia é sua ou não também não interessa para nada. O que interessa é que se trata de uma ideia sem pés nem cabeça uma vez que só eu posso e devo decidir se esta casa precisa ou não de mais alguma presença e, neste momento, garanto-lhe que não estou a precisar de nenhuma companhia. Assim, queria pedir-lhe o favor de se retirar, porque já não são horas para andar a passear pelos jardins dos outros, ainda por cima sem ser convidado nem desejado. Boa noite!
Pensava desfazer-se daquela companhia indesejada com esta tirada dita em voz fria, distante e altiva.
A verdade é que ainda tinha as pernas a tremer do inesperado susto que a tinha colhido. A adrenalina tinha subido em flecha no seu organismo e, de certa forma, tinha-lhe dado uma coragem que, naquele momento, estava longe de sentir.
No entanto, o Frederico não se deixou intimidar com aquelas expressões agressivas. Estava já à espera de dificuldades. De qualquer maneira, era assim que ele gostava delas: bravias e resistentes. As que davam luta eram as melhores. Não era esta que lhe ia agora fugir. Havia de a amansar como se faz às éguas selvagens. A luta dava muito mais gozo. Ah mulher dum raio, já cá cantas…
- Calma, menina Rosário, não se exalte. É verdade que não fui convidado, mas uma boa surpresa dá mais gozo à vida. Aliás, já não é esta a primeira vez. Além disso, uma menina tão prendada como a Rosário não pode ser assim tão fria e tão insensível. Certamente que nesse coração escorre mais mel do que fel…
- Oh! Sr. Frederico, hoje não estou com disposição para ouvir galanteios desmiolados. Peço-lhe, mais uma vez, que faça o favor de se retirar do meu jardim, para não me ver obrigada a accionar o alarme que tenho instalado e que liga, directamente, ao posto da GNR. Boa noite!
Com esta do alarme é que ele não contava. Seria verdade?
Cá para mim não passa de mais uma aldrabice dela. Está tão habituada a fingir que esta é mais uma patranha! Mas, e se não for? Se calhar, é melhor deixar para outra vez. Parece impossível como é que ela arranja sempre uma desculpa qualquer para me mandar embora. Será que com os outros também faz isso e eles não querem dar parte de fracos? Parece mentira que eu nunca tenha conseguido nada e para os outros seja só facilidades. Vós quereis ver que o raio do Marmelo se tem andado a gabar de nada!... Filho da mãe… mentiroso dum cabrão… Vou-te partir a fuça, ai vou, vou…
Bem, mas o melhor é desamparar a loja antes que isso comece para aí a estrepitar sem ser preciso…
- Pronto, pronto. Não é preciso ser assim. Fique calma que eu já me vou. Só estava desejoso de poder conversar um pouco com uma pessoa tão simpática, tão instruída…
- Será para outra vez, talvez no dia de S. nunca à tarde…
- Não quero fechar uma porta ainda não abri. Boa noite. Fique bem e, já agora, sonhe comigo que não se vai arrepender. – E foi murmurando, mais para os seus botões do que para humanos ouvidos: Amanhã volto a passar por aqui para lhe servir de companhia numa boa parte do serão e, quem sabe…
Saiu de cabeça erguida para não se dar por vencido nem dar tempo a resposta. Uma retirada estratégica. Um passo atrás para poder dar dois em frente. Amanhã é outro dia.
Claro que não contava que no dia seguinte e nos outros dois se visse obrigado a ir e permanecer na cidade porque a sua mãe, muito enferma, o mandara chamar por cuidar, a todo o momento, entregar a alma ao criador. Os acasos da vida parecem, por vezes, que se riem dos nossos planos. Por muito que preparemos o futuro, sempre estaremos entregues ao fortuito.
Entretanto, a Rosário subiu apressadamente as escadas. Nem fez caso do que o Frederico disse. No entanto, o seu coração já estava muito mais calmo e o seu pensamento bem mais sereno. Ela sempre tinha tido muita coragem. Não era um badameco qualquer que lhe metia medo. O inesperado da situação é que lhe tinha causado aquele desassossego todo. Estivesse ela mais alerta e tê-lo-ia mandado com o rabo entre as pernas de uma forma muito mais airosa e até fazendo parecer que a ideia teria partido dele em vez de ser imposta por ela. Aliás, já lhe tinha feito isso algumas vezes e nem percebia como é que ele, agora, lhe apareceu assim de forma tão inesperada e algo belicosa. Sempre tinha conseguido que, tanto ele como todos os outros que por ali costumavam passar, se fossem embora iludidos por mais uma noite de conversa sem que se sentissem afastados. Mas, por agora, teve que ser assim. Quem sabe se haveria oportunidade de desvanecer um pouco a imagem de altivez que, certamente, tinha deixado. Não que isso fosse importante. Tinha, agora, muito mais com que se preocupar e assuntos muito mais candentes e importantes para analisar. Este era perfeitamente supérfluo e inócuo.
Porém, não gostava de deixar uma impressão negativa da sua pessoa perante os outros, mesmo que eles se chamassem Frederico, António ou qualquer outro estranho na sua vida. Impressão desusada tinha-lhe, no entanto, ficado do seu encontro com a Mafalda. Ainda não dava para acreditar que o seu amigo tão honesto, tão transparente, tão aberto, lhe tivesse ocultado aquela fatia da sua existência. Estava em pulgas para esclarecer essa omissão. Quando o poderia fazer? Onde estaria o Pe. Josias? Será que estaria na Pensão da Henriqueta à espera da sua antiga paixão e a ida dela à Residência paroquial não teria passado de um embuste para, depois, poderem ficar mais à vontade?
Não lhe parecia provável que ele se fosse expor daquela maneira, muito embora a Henriqueta ficasse, certamente, de boca calada mesmo que visse coisas estranhas. Mas, por aquilo que dele conhecia, até agora, isso não era compatível com a imagem de seriedade, rectidão, lisura, e honestidade que dele tinha. Esta indefinição, este desassossego, esta ansiedade, eram extenuantes e ela sentia-se, simultaneamente, inquieta e abatida. O que podia fazer? Como clarificar a situação, sem a presença do seu amigo?
Tinha que se acalmar. O seu amigo merecia muito mais confiança da sua parte do que aquela que, agora, estava a demonstrar. Por uma alteração de rotina, não podia abalar toda uma estrutura de confiança que tanto tinha custado a erguer.

CAPÍTULO VI
Na terça-feira da semana seguinte a Rosário deslocou-se à casa do seu amigo Pe. Josias para lhe abrir completamente o coração e o pôr ao corrente do que lhe tinha sucedido na que lhe parecia ser uma vida anterior. A sua vida actual parecia-lhe uma nova incarnação. Aquela vida anterior pertencia a uma outra pessoa que não a Rosário que agora se dirigia para a já usual porta lateral da casa paroquial. A decisão não foi fácil. O tema era demasiado doloroso para que se pudesse abordar de ânimo leve. No entanto, em face da grande amizade que tinha crescido entre eles, ela sentia uma necessidade muito forte e premente de partilhar com o seu amigo aquela parcela da sua vida que tinha desvirtuado tanto a sua personalidade. A acrescer a esta necessidade brotou a ânsia de saber até que ponto a aparição da Mafalda iria toldar a cordialidade que os irmanava na fé. Tinha ficado inquieta, insegura e impaciente com a lentidão com que as horas e os dias do resto da semana anterior e do início desta se arrastaram.
O dia tinha chegado, a tarde tinha-se desvanecido e a noite estendera lentamente o seu manto de negrume sobre a crueza do globo.
A Rosário aproximou-se, ansiosa e expectante e, como tantas vezes, apoiou o seu indicador no botão da campainha na perspectiva de um encontro que augurava reconfortante.
Foi, como sempre, o seu amigo a abrir-lhe a porta e, desviando-se para um lado, convidou-a a entrar na frescura nocturna do corredor lateral da casa paroquial.
Imaginava que a sua vinda seria, mais uma vez, para a continuação de um aprofundar cada vez mais explícito dos caminhos da fé e da vida em igreja. Na última vez que a Rosário ali tinha estado, ele tinha começado a abordar a questão do pecado original. Era um tema que, segundo ela dizia, a tinha deixado, desde muito nova, completamente baralhada. Ele tinha-se ficado pela formulação do conceito que o seu Professor de Moral lhe tinha incutido durante a sua formação teológica. A explanação parcelar desse conceito que tinha apresentado em largas pinceladas tinha ficado programado para um encontro posterior. Por isso pensou que hoje ia ser o dia indicado. Longe estava, do seu pensamento, o que a Rosário tinha para lhe contar. Uma vez que a amizade era cada vez mais profunda, já não eram necessárias muitas palavras de saudação entre eles. A simples presença era motivo de satisfação, de conforto e de diálogo interior. Um simples Boa-noite e uma pequena carícia eram, agora, suficientes para expressar o prazer da companhia mútua. A Rosário foi convidada a entrar no escritório paroquial, como tantas outras vezes e, sentando-se de frente para o seu amigo, ficou muda. Ele, no entanto, não estranhou muito esse mutismo porque a conversa havia de surgir quando estivesse madura. Passado algum tempo, foi ele que começou:
- Sabes que estiveram aqui quatro pessoas por tua causa?
- Sei. Já tiveram a amabilidade de me contar, no Domingo passado. Há pessoas que gostam de dar esse tipo de novidades para se poderem deleitar com a reacção dos outros. Foi a Elvira que me contou do encontro. Ela disse-me que foi o Sr. Frederico que lhe narrou o que aqui se passou. Pintou as coisas com umas cores bem carregadas: murros na mesa, berros, ameaças de idas ao bispo... Pelos vistos, eles não foram nada meigos consigo. Não sabia muito bem, mas parece que teriam chegado a ameaçá-lo de expulsão e não sei bem o quê sobre uma carroça… Ela não tinha bem a certeza do que o Sr. Frederico queria dizer com isso. Que conversa foi essa?
- Expulsar?! Bispo?! Carroça?! Que história vem a ser essa? Aqui não se falou de carroça nenhuma, de queixas ao Bispo, nem de expulsar ninguém. O que se passou foi que eu tive que lhes contar a minha vida toda desde que entrei aqui na paróquia. Falei-lhes das minhas idas à casa do Carvalheira e dos motivos dessas visitas. Expliquei-lhes o destino do dinheiro que a D. Henriqueta me dá todos os Domingos. Falei-lhes dos nossos encontros e tive de lhes mostrar como estavam enganados acerca das tuas intenções a meu respeito e sobre o conteúdo do nosso relacionamento. Pareceu-me que ficaram convencidos, pelo menos quase todos. Mas, asseguro-te que não foi uma exposição fácil. Nunca é muito fácil abrir completamente o nosso coração, especialmente perante pessoas que têm opiniões erradamente formadas a nosso respeito e a respeito dos nossos conceitos e dos nossos ideais.
- Pois não.
Que estranho! Hoje era necessário arrancar-lhe a conversa a saca-rolhas. Não costumava ser assim. Normalmente era ela a começar as conversas e a introduzir os temas de debate. Que se passaria?
- Parece-me que essa conversa da Elvira te abalou mais do que o normal. Já podias estar habituada a esse tipo de mexericos e não te deixar abater dessa forma por eles. Como sabes, nós nunca conseguimos ser bem vistos por todos e, assim, o melhor é que nos sintamos bem com nós mesmos. Isso é meio caminho andado para que a nossa passagem por este mundo seja profícua e sirva de conforto para os nossos irmãos. Claro que, se pudermos, devemos evitar o escândalo, mas essa não deve ser, certamente, a nossa principal preocupação muito embora o amor ao próximo também deva ter essa vertente em atenção. Se conseguirmos evitar dar azo a erradas interpretações, tanto melhor.
- Eu não estou abatida por causa da conversa da Elvira. Há outros assuntos bem mais importantes que eu gostava de abordar consigo.
- Bem, como sabes, sempre estive aberto para te ouvir e para partilhar contigo as minhas opiniões sobre o homem enquanto ser pensante e religioso. Por isso, aborda o assunto que quiseres que eu, dentro das minhas possibilidades, não me furtarei a tentar guiar-te em direcção à luz. Da última vez que aqui estiveste, deixámos pendente um assunto bem interessante…
- Mas, hoje não estava a pensar em ir por aí. Antes tenho, para abordar consigo, dois temas, e bem distintos um do outro. O primeiro é sobre uma senhora que encontrei ali fora, na semana passada, e que me contou uma parte da vida dela há vinte anos atrás. Mafalda… Esse nome diz-lhe alguma coisa?
Ao ouvir mencionar aquele nome, o coração do Pe. Josias saltou-lhe no peito como se uma descarga eléctrica o tivesse atingido brutalmente.
Já tinha chegado ali? Mas, a Mafalda tinha dito que queria ficar incógnita. Como se tinha dado a conhecer e, ainda por cima, logo à Rosário? Afinal, onde estava o segredo? Como se tinham encontrado? Mal tinha tido tempo de falar com ela mas, a Rosário, pelos vistos, já tinha tomado conhecimento do seu passado. Que lhe teria contado? Aquela parte da vida dele, que até agora tinha querido resguardar, já seria do conhecimento geral? Qual teria sido a intenção da Mafalda? Será que veio, como disse, para o ajudar ou, pelo contrário, teria vindo para o apoquentar ainda mais?
- Esse nome diz-me muita coisa. Nunca abordei, contigo, esse tema porque é uma parte da minha vida que não tem muito a ver com a minha realidade actual e que, embora tenha sido muito agradável, já é passado e, por isso, não vale a pena falar do que já lá vai. A Mafalda foi uma interveniente na minha passagem por este mundo que me fez conhecer uma parte da existência humana muito agradável, muito excitante. No entanto, foi uma pessoa que, acho que posso dizer infelizmente, desapareceu da minha vida até à semana passada. Nunca mais a tornei a ver ou tive notícias dela. Ela precipitou a minha decisão e ainda hoje estou firmemente convencido de que fiz a melhor escolha. Sinto-me completamente realizado como sacerdote, como pastor, como mensageiro da palavra de Cristo. No entanto, não posso deitar fora, sem mais nem menos, dois anos de vida movida por sentimentos de paixão mais terrena mas, também ela, intensa. Foi um período complicado mas, simultaneamente, criativo, cheio de motivações, enriquecedor, que me fez amadurecer muito. Ela dava asas à minha criatividade, punha-me o coração mais leve, enchia-me o peito de felicidade. A Mafalda foi uma musa, para mim, uma paixão que teve tanto de abrasadora como de passageira. Isso não significa que tudo passou. Há sentimentos que, ainda que esmaeçam, não desaparecem. Apenas ganham outros contornos e outra valoração. Ainda hoje, passados todos estes anos, sinto um frémito quando ouço pronunciar o seu nome. Na semana passada, quando a vi na minha frente, fiquei muito perturbado. O que eu senti por ela, não desapareceu como nuvem volátil. Deixou marca indelével no meu coração. Na altura em que conheci a Mafalda interroguei-me, muito seriamente, sobre o valor do celibato. Ainda hoje, em dias mais escuros, mais difíceis, de maior abatimento, essas dúvidas me assaltam. Continuo sem me decidir sobre a verdadeira bondade desse estado. Há dias em que, convictamente, lhe dou todo o meu apoio. Se eu tivesse uma família para amparar, sustentar, educar, em suma, para me preocupar, não conseguiria dispor de tempo para os outros meus irmãos; pelo menos, do tempo de que, sendo solteiro, consigo dispor. Outros dias, porém, pergunto-me se, sendo a sexualidade uma faceta tão importante em todas as culturas, a mesma deverá ser posta de lado em troca de uma missão que a não exclui, pelo menos em muitas das religiões do mundo. Os médicos, sendo agentes ao serviço da humanidade, não a excluem obrigatoriamente. Os cientistas, os bombeiros, sei lá, também são pessoas sempre ao serviço da humanidade. E, no entanto, são actividades que não excluem o casamento. Parece-me que teria muito mais sentido que o celibato derivasse de uma opção e não de uma imposição. Claro que nos evangelhos temos a frase sobre os eunucos que o são pelo reino dos céus, mas continuo a pensar que uma entrega aos irmãos não exclui uma renúncia a uma componente tão fundamental da pessoa humana. De qualquer maneira, no pé em que as coisas ainda estão, não tinha outra hipótese e, tal como dizia o grande poeta Camões: “valores mais altos se alevantam”.
- Nunca tinha falado sobre isso comigo.
- Pois não. Até agora, sempre apareceram temas mais importantes para serem tratados. Não me pareceu que esse período do meu passado tivesse, para os outros, qualquer relevância, uma vez que não tem muito a ver com o meu papel de hoje nesta comunidade e dentro da igreja. Não me envergonho dele, não tenho qualquer problema em falar dele, mas também não sinto necessidade de o recordar. Foi bom. Acabou.
- O nosso passado nunca acaba. Está lá, sempre. Aliás, é sobre uma parte do meu passado que eu quero falar consigo, hoje.
- Não tenho qualquer necessidade de conhecer o teu passado. Basta-me saber do teu presente e lançar o teu futuro. As águas passadas não movem moinhos.
- Pode não sentir necessidade, mas sinto eu. Tem de saber o porquê da minha presença nesta terra. Eu não vim para aqui, por acaso. Quando para aqui me desloquei, vinha com um propósito bem firme de dar cabo de si. Tudo começou há dois anos…
Com muita dificuldade, titubeando a cada frase, tropeçando em cada parágrafo, forçando-se a continuar a cada hesitação, a Rosário contou àquele seu dilecto amigo tudo o que lhe tinha acontecido:
A sua vida, os seus anseios, os seus projectos, as suas realizações, os momentos bons, os menos bons… e o péssimo. O momento mais negro da sua existência. Quando teve que relatar o que o outro lhe tinha feito, as suas entranhas tremeram, o seu cérebro ficou toldado, a sua capacidade de raciocínio enfraqueceu e ela teve uma enorme dificuldade em levar ao fim o relato de tão angustiante vivência. Quase se deixou ir abaixo. No entanto, a distância sobre o momento, o amadurecimento da sua personalidade e a coragem incutida pela presença daqueles olhos que a amparavam e a impulsionavam a cada passada, conseguiram levá-la até ao fim. Ficou exausta e expectante; com muita confiança mas, simultaneamente, com os antigos medos sobre a reacção do Pe. Josias.
No fim daquele relato tão íntimo, tão verdadeiro, tão sentido, instalou-se um silêncio estonteante, aflitivo mas cúmplice. O atordoamento parecia mútuo. Aquele silêncio estava prenhe de intensidade.
Quando ouviu, da boca dela, todos os pormenores da tentativa de violação por parte do seu mentor, amigo e irmão no sacerdócio, ficou atónito. Como era possível que aquele de quem era um verdadeiro amigo, pudesse ter descarrilado para uma atitude tão aviltante? Não compreendia como o seu professor pudera ter perdido a cabeça àquele ponto. Era quase inacreditável que um homem com a formação cultural, estrutura mental, arcaboiço intelectual e preparação moral do seu mestre, tivesse chegado ao ponto de cometer semelhante desatino. No entanto, tinha a certeza que a Rosário contara a verdade, sem adornos nem esquecimentos. O choque daquele acto atingiu-o em cheio, como um relâmpago que o cegou, como uma explosão que lhe retirou o ar dos pulmões, como uma pancada que o atordoou, um raio que o derrubou. E tanto maior foi o abalo quanto menos preparado estava para ele.
Ele, padre Josias, tinha sido assediado por aquela que tinha sido atormentada pelo seu maior amigo. Um amigo que ele visitava todas as quintas-feiras à noite na clínica e cuja sanidade mental tentava ajudar a recuperar sem que, até ao momento, os progressos fossem muitos, mas sempre com a esperança de que valesse a pena, como os médicos se não cansavam de afirmar. Não há dúvida que a vida é qualquer coisa muito complicada e intrincada. Pelo menos nós assim a fazemos ser com os nossos actos ou omissões. O que lhe restava agora fazer era tentar juntar as pontas daquela teia e, com muito carinho, com muita dedicação, com um profundo sentido de amor, tentar remediar um mal muito grande feito por alguém e a alguém que lhe eram, realmente, muito queridos; o seu mestre, Pe Ricardo, e a sua amiga, Maria do Rosário.
O que seria possível fazer, agora que tinha novos dados?
Como poderia (se poderia) servir-se destes novos elementos? Será que a Rosário poderia fazer alguma coisa? Uma luzinha começou a piscar, muito ao longe, no seu cérebro. A Rosário poderia ajudar a erguer aquele que derrubara? Estaria disposta a isso? O seu coração já seria capaz de dar tamanha reviravolta? Hoje, porém, não era a hora de pensar em nada a não ser em digerir o que acabara de ouvir. Levantou-se, dirigiu-se para junto da Maria do Rosário, que continuava abatida à espera da reacção, e pousou-lhe a mão na cabeça
- Minha querida amiga, o que esse teu coração suportou! Como compreendo, agora, a tua aparição na minha paróquia e como se me abrem as janelas do entendimento para a tua forma de entrar no meu mundo! Já sabes, certamente, que o Pe. Ricardo foi meu professor no seminário menor e que, posteriormente, me acompanhou no ano de noviciado e, durante algum tempo, no seminário maior. Não posso entender o que se passou naquela cabeça tão culta. Não consigo enquadrar esse comportamento com a ideia que tenho dele. Sabes que tenho continuado a visitá-lo desde, praticamente, a altura em que essa loucura sucedeu?
- Não fazia a mínima ideia, mas também não estou minimamente interessada. Ainda não estou preparada para relembrar essa pessoa, para querer saber alguma coisa dela, para querer ter algum tipo de contacto, ainda que mental, com ela. Não consigo esquecer nem perdoar a esse ponto.
- Compreendo isso, perfeitamente, de um ponto de vista puramente humano…
- E peço-lhe que, de momento, me não fale mais disso.
- Certamente. É perfeitamente compreensível. Apenas gostaria de, em nome de um irmão no sacerdócio, te pedir perdão por um acto tão hediondo.
- Podemos mudar de assunto?
- Podemos. Podemos e devemos. Melhor ainda… devemos retirar-nos para cada um se encontrar consigo mesmo e com o seu passado. Penso que é melhor ires até à Raposeira e eu ir rezar as minhas orações da noite para me aquietar e preparar para o sono. Que te parece?
- Parece-me bem. A sua conversa também me deu pano para mangas.
- Então, boa-noite e vai na paz do Senhor.
- Boa-noite para si, também.
E saiu acompanhada até à porta lateral pelo seu amigo. Ainda não estava bem. A recordação de um acto que tinha tentado, a todo o custo, enterrar bem no fundo da sua memória, tinha-a abalado ainda mais do que o previsto. Ia, certamente, levar muito tempo a serenar, a mergulhar novamente, no esquecimento, tão dolorosa experiência. Porque tinha feito aquilo? O Pe. Josias nem se tinha mostrado interessado! Tinha servido para alguma coisa? Certamente que seria um relato catártico mas, para já, essa catarse ainda se não manifestara, antes pelo contrário: a ferida estava reaberta e gotejante. Os próximos dias diriam se tinha valido a pena.
Encaminhou-se para a sua casa na Raposeira, mais uma vez embrenhada em pensamentos tumultuosos. Nos últimos tempos, isso estava a acontecer cada vez com mais frequência. Hoje, tinha esvaziado o seu armazém de recordações mas isso não lhe tinha aliviado a despensa das emoções. Só esperava que, esta noite, não tivesse nenhum Frederico à sua espera para lhe arruinar a noite. Não estava com muita paciência para disparates senis nem para arrufos desatinados. A sua capacidade de resistência, de paciência, de bonomia, estava a atingir o ponto zero a uma velocidade cada vez mais estonteante. Se hoje encontrasse algum desmiolado à sua espera teria que ser brusca e sem contemplações. Tinha mais com que se preocupar e não tinha muito tempo a perder com coisas irrisórias. Assim que, muito embora caminhasse lentamente, com a cabeça em tumulto, não deixava de estar alerta para o que poderia encontrar no seu jardim. Nunca se sabe se o Berto por lá apareceria. Ele até nem é mau rapaz, mas tem a cabeça um pouco virada do avesso. Vai ter que mudar muito se quiser continuar a conversar comigo. Mas, hoje, nem que tivesse as ideias todas alinhadinhas. Hoje não pode ser.

 

CAPÍTULO VII
Entretanto, ao longo da semana anterior, também três dos quatro comensais da casa paroquial tinham desenvolvido esforços, uns mais aturados que outros, para serenar os ânimos exaltados de alguns membros da paróquia, mormente de vários jovens que se sentiam enganados pelo padre. Nesse pormenor, a contribuição do Francisco não era nada despicienda. Tinha falado com vários dos moços mais afoitos e, especialmente com o Alberto, como, aliás, lhe tinha prometido.
Logo na sexta-feira mandou-lhe um recado para aparecer em casa dele, a fim de terem a tal conversa programada.
Quando o Alberto apareceu, mandou-o entrar para a sala particular e perguntou-lhe:
- Diz-me lá, Alberto, como tens passado estes dias?
- Ò Senhor Francisco, nem me fale nisso que eu tenho feito das tripas coração para manter a promessa que lhe fiz. Não me agrada nada que o raio do padreco se ande a atirar a uma moça como a Rosária, depois de saber que ela lhe não pertence.
- E diz-me lá… Achas que ela te pertence?
- Certamente que tenho mais direito a ela do que ele!
- Porquê?
- Porquê?! Essa é boa! Porque sou solteiro e gosto da Rosário, apesar do que os outros dizem a respeito dela. Ele é padre, não é para andar atrás das mulheres ou das namoradas dos outros.
- Mas a Rosário não é tua namorada, ou é?!
- Não é nem deixa de ser. Quando estou perto dela, até sinto o peito a rebentar. Ela dá-me a volta à cabeça e, depois, ela ainda me não disse que não queria namorar comigo. Nunca me mandou embora sem uma palavra de confiança e sem a promessa de pensar no assunto. Claro que, como já disse, não gosto muito das conversas que oiço. Parece que para os outros é só facilidades enquanto para mim não passa das palavras. Mas eu ainda não desisti.
- Antes de mais, não sei se para os outros as facilidades serão tantas como dizem (não podia trair a confiança que nele depositavam e alardear que era tudo bazófia). Já que és pescador, vou-te contar uma história que ouvi aqui há uns tempos da boca de outro pescador. Dizia ele que, um belo dia, foi pescar para o rio e fisgou uma truta tamanha que teve que lhe dar um puxão valente para a poder tirar da água. Tal foi o esticão que ela saltou uns bons metros na ponta da linha. Exactamente no momento em que a truta se elevou bem acima da superfície do rio a todo o comprimento da linha, foi embater numa perdiz que ia a passar justamente nessa ocasião e derrubou-a. O homem assustou-se com o choque do peixe com a ave e, desequilibrando-se, caiu de costas no meio do mato onde, por acaso, se encontrava um coelho na cama que acabou por morrer esmagado pelo corpo do homem. Três peças sem tiro nenhum! Que te parece?
- Ò senhor Francisco, já ouvi muitas histórias de caçadores e pescadores, mas como essa nunca tinha ouvido. Vê-se logo que foi inventada para dar nas vistas.
- Mas olha que não são só os pescadores e os caçadores que inventam coisas para dar nas vistas… E, quanto a isso, não te digo mais nada.
- Usa a cabeça, homem. Se a Rosário fosse assim uma jovem tão doidivanas achas que seria capaz de recusar um rapaz como tu, bem constituído, culto, simpático? As mulheres têm um sexto sentido muito apurado e, a maior parte das vezes, sabem distinguir muito bem o trigo da palha. Uma coisa te posso garantir: a rapariga e o padre não fazem nada do que muita gente anda para aí a pensar. Aquilo, meu rapaz, é mais no plano da religião do que no do colchão. Ali não há sexo. Posso-te garantir isso depois de ter ouvido o padre a falar e ter rebobinado todo o filme ao princípio. Ele é um homem que não vê uma fêmea numa mulher.
- Se tu, quando ias falar com ele, lhe tivesses dado tempo de se explicar e tivesses tentado ver as coisas da maneira que ele te dizia, se calhar, hoje, a situação entre ti e a Rosário era completamente diferente. Assim, como entravas sempre a matar, ele não tinha hipótese de te fazer ver nada nem tu lhe davas ocasião de se explicar fosse como fosse. É ou não verdade?
- Bem, nunca vi com bons olhos o facto de ele se andar a atirar à única moça de jeito aqui da terra.
- Vês?! Primeiro, não é a única moça e, depois, não é da terra. Tu ficaste cego e não conseguias ver muito à frente do teu nariz. Se a Rosário tivesse sentido em ti outros intentos que não os de lhe saltar para cima, como pensavas que os outros faziam, talvez as coisas tivessem levado outro rumo.
- Mas, eu gosto dela!
- Claro que gostas. E ela, se lhe deres oportunidade, também há-de gostar de ti. Mas, tens que pensar nela como uma companheira para a vida e não apenas como um corpo para o prazer.
Com estes e muitos outros arrazoados, o Xico da Antónia foi alterando a destemperança do Alberto para ideias mais razoáveis. O mesmo fez com vários outros mancebos mais extremistas
Por seu turno, o Alfredo tinha-se desdobrado em conversas com os seus botões, ao som do suave ronronar das águas do rio e do ciciar da folhagem das árvores que o bordejavam, bem como com uma boa parte dos seus vizinhos para, primeiro, assimilar o que tinha ouvido na casa paroquial, depois para, junto do Xico, tentar delinear um plano de reconversão e, posteriormente, junto dos mais exaltados, para lhes mostrar a nova faceta que as coisas tinham tomado.
Não tinha sido um mar de facilidades, mas ele também não estava à espera disso. A verdade, porém, é que, de cada vez que falava com algum dos seus vizinhos, tinha a certeza de haver instilado, senão uma certeza plena, pelo menos uma dúvida plausível. E, isso, era um bom prenúncio de mudança de atitude. Até na missa dominical isso tinha sido palpável: houvera uma muito maior afluência. E a formação, sem preconceitos, de um inusitado número de grupos em amena cavaqueira no fim da mesma era um bom augúrio. As pessoas começavam a murmurar menos e a falar mais. Isso, Deus seja louvado, era bom… muito bom. Ainda como fruto dessas conversas entre o Alfredo e vários dos seus vizinhos apareceram, no cesto dominical das ofertas, vários envelopes anónimos com a designação de “para remédios” e com algumas notas do banco no seu interior.
Quem continuava a não estar satisfeito era o Carvalheira.
- Não querem lá ver?! Não bastava aquele padreco vir para aqui azucrinar-me a cabeça às moças para agora me roubar a clientela. Vejam lá que até o Marmelo deixou de usar as minhas gatas! Agora, diz ele, sou um marido responsável e um bom pai de família! Como se os que para aqui vêm o não fossem…
- Veio aqui duas ou três vezes desde aquela patuscada lá na residência e limitou-se a beber uma cervejola. Absolutamente mais nada. Como raio é que vou conseguir manter a clientela com aquela ave preta por aqui sempre a pairar?
- O que lhe vale é estarmos num país livre e eu não o poder pôr porta fora enquanto ele não causar distúrbios. Se não, onde é que ele já ia...
Claro que a clientela não tinha diminuído assim tão drasticamente, mas a falta de alguns clientes habituais, ou, pelo menos, o seu aparecimento mais raro, começava a bulir com os nervos do Carvalheira, já de si exaltados.
Por seu turno o Maneta tinha, sem contar, ficado retido na cidade até ontem, segunda-feira e, por isso, nada pudera fazer. Não é que estivesse muito interessado em fazer fosse o que fosse, para além de tentar convencer a Rosário, mas, mesmo que o quisesse, tinha sido impossível. A sua mãe, entretanto, tinha melhorado muito substancialmente e ele voltou para a sua casa na outra encosta do monte do Espigueiro onde começou imediatamente a planear uma nova tentativa de convencer a Rosário a deixá-lo entrar. Depois ele trataria do resto. Claro que não lhe parecia ser uma tarefa muito fácil uma vez que, afinal, o padre tinha baralhado um pouco as coisas, mas isso não era nada que ele, Frederico, não resolvesse. A vida tinha-lhe ensinado muita coisa e ele estava preparado para o melhor e para o pior. Ela que se cuidasse porque, desta vez, a coisa não se ia ficar só pela conversa. Pelo sim pelo não, era preciso passar por lá mais uma vez, assim como quem não quer a coisa, para verificar melhor aquela história do alarme. Onde raio é que ela foi buscar aquela ideia? Alarmes, nesta terra?! Ná! Isso é peta e das grandes. Mas, como o diabo é tendeiro, vamos jogar pelo seguro.
E foi assim que, nesta Terça-feira, se dirigiu para a casa da Raposeira, sorrateiramente, como quem vai ali e já vem. Quando lá chegou a Rosário não estava. Tinha ido, mas ele não sabia, conversar com o Pe. Josias. Como não viu ninguém, entrou no jardim e começou a rondar a casa. Não viu, em nenhum lado, qualquer sinal do alarme.
Eu bem me parecia que aqui havia marosca. Com que então a gatinha quer baloiço?! Pois, espera lá, que não perdes pela demora. Quando voltares para aqui, vais apanhar outro susto e, desta vez, não te livras de mim com tanta facilidade como das outras vezes. Tudo tem um limite e, comigo, nunca ninguém levou a brincadeira tão longe. Anda cá minha pombinha que eu trato-te dessas penas.
Foi-se embrenhando cada vez mais profundamente em pensamentos lúbricos, dando largas à sua imaginação e despindo mentalmente aquele corpo jovem que, a acreditar no vozeario, tinha pertencido a quase todos menos a ele. Hoje ia ser a sua vez.
Quando aquela carninha estiver entre estas minhas mãos, até na igreja se vão ouvir os gemidos de prazer. Vais ver o que é bom. Tu ainda não experimentaste nada, rapariga. Para isso é necessário um homem bem madurinho, para tirar partido de tudo o que o corpo pode dar. Mas, um homem a sério. Vais ver…
O António Lourenço, por seu turno, não tinha sossego naquela cabeça. Como é que havia de encarar a situação? O padre não era lá grande peça e, por isso, como é que se podia ter a certeza de que, o que ele dizia, era verdade? E como se podia afirmar que não era?
Mas que grande trapalhada aquele homem me arranjou! A minha mulher nem quer acreditar que não estou doente. Tem-me moído o juízo a perguntar o que é que eu tenho. Já um homem não pode andar a matutar e a dar voltas ao miolo que ela fica logo toda alvoroçada! Anda a gente a tentar ver as coisas de outra maneira, vem logo ela apoquentar-me com lamúrias de doença, médicos, medicamentos…
Valha-me Deus, que estou a ficar sem paciência. Se saio de casa é porque não gosto dela nem dos filhos, se não saio é porque estou muito doente. Preso por ter cão e preso por não ter. Foi a linda situação que o padre me arranjou.
No entanto, não deixou de aproveitar a ocasião para, de vez em quando, mandar umas bocas aos rapazes dizendo-lhes que a vida nem sempre é o que parece e que há mais coisas para além daquilo que nós conseguimos ver. Às vezes, dizia ele, estamos a olhar e não vemos um palmo à frente do nariz. Olhai que nem tudo o que reluz é ouro.
Oscilava entre a família e o Carvalheira, entre o padre e a cerveja. Andava tão baralhado que, às vezes, até se esquecia do seu arbóreo companheiro de longa data, o marmeleiro.

CAPÍTULO VIII
Na pensão da Henriqueta, Mafalda viveu, também ela, o resto da semana em inusitado estado de ânsia. Depois de se afastar da Maria do Rosário, frustrado que foi o encontro com o seu amor antigo e ainda em dúvida sobre a bondade do gesto que tinha protagonizado ao revelar-lhe o seu passado de amor com o Josias, o final da semana anterior e o princípio desta que, titubeando, se tinha escoado até à terça-feira, passaram em polvorosa à espera do dia mais indicado para procurar a outra metade do seu coração e tentar convencê-lo a encetar nova etapa da vida agora com ela como complemento.
Saiu no fim do jantar para mais um passeio, como sempre tinha feito desde que para aqui viera. Agora, porém, tinha um propósito definido, um percurso planeado, uma ideia delineada: ia falar com Josias e estava preparada para esse encontro que teria que ser definitivo. Há coisas que se não podem adiar eternamente, um dia têm que tomar um rumo e o adiamento da vida em comum com o Josias já tinha ultrapassado todas as balizas do tolerável. Agora era a hora.
Já a noite de Terça-feira deixara de ser criança quando a Mafalda se apercebeu da saída da Maria do Rosário da casa paroquial. Ela sabia que a outra estava lá dentro porque a tinha visto entrar. Há muito que se acercara da casa do seu amor para ver e estudar o ambiente. Já calculava que a outra quereria esclarecer alguns aspectos do passado e, por isso, aguardou que ela saísse para, assim, ter o caminho livre para poder atacar.
A Maria do Rosário saiu e o Pe. Josias ficou à porta a vê-la afastar-se pensativa e cabisbaixa.
Antes que tivesse tempo de fechar a porta, Mafalda adiantou-se e, saindo da escuridão em que se abrigara, apresentou-se ao seu amado.
Quando a viu, Josias sofreu, novamente, um baque no peito e sentiu o chão a fugir-lhe de baixo dos pés; Só isto me faltava para completar a noite. Virgem Maria, ajudai-me!
- Olá, Mafalda. Não contava contigo a esta hora. Já não é nada cedo. Mas, entra, entra que, para ti, a minha porta, continua sempre aberta.
Esta entrada nada titubeante deixou-a momentaneamente surpresa. Estava à espera de uma recepção mais próxima da que há uma semana lhe tinha sido feita: indecisa, atrapalhada.
- Boa noite, amor. Desculpa vir tão tarde, mas estive à espera que a tua amiga saísse. – Era preciso entrar em força. Voltou, como sempre, a sentir o calor a subir-lhe no peito como uma onda avassaladora e a ruborescer-lhe a face, entontecendo-a um tudo-nada.
- Não precisavas de ter esperado. Podias ter entrado. A porta do meu escritório está sempre aberta. Mas, espera lá, disseste aí uma palavra que não sei se concordarei plenamente com ela.
- O que é?! Já te esqueceste do nosso passado, do nosso amor?
- Esquecer não esqueci, mas, como tu mesma disseste, é passado. Como sabes, nunca a mesma água passa duas vezes debaixo da mesma ponte. O meu amor, agora, é muito mais abrangente, mais universal.
- Essa treta do universal tem muito que se lhe diga, Josias. Essa faz-me lembrar aquela história de que quem tudo quer, tudo perde. À força de querer amar toda a gente, acabas por não amar ninguém. Passas a ser um mero funcionário do folclore religioso, da fachada da religião e do exterior. Repara: a vida religiosa destas pessoas limita-se à fachada, ao exterior, às aparências.
- Quando é preciso demonstrar o tal espírito de amor de que tanto falas, aquilo que aparece é o interesse particular, o coçar para dentro. Isso de dar a outra face é muito bonito no papel mas, na prática do dia a dia, o que se dá é o outro punho.
- O que tu vês nessas pessoas que aqui te aparecem todos os domingos na tua igreja não é mais que tradição. As pessoas vêm à missa e saem daqui a murmurar umas das outras, a pensar na melhor maneira de enganar o seu vizinho, na forma mais prática de roubar mais uns cobres, de deitar por terra o bom nome dos outros. Roídos pela inveja, só pensam em ter para si o que não trabalharam. Gostam de mostrar o que não são, só para ficarem bem na fotografia. Se lhes perguntares do que tu falaste no sermão, a maior parte deles não faz a mínima ideia, porque não estavam com o pensamento ali. As pessoas vivem de frases feitas, de palavras ocas, de estereótipos. Rezam sem pensarem no que dizem e assistem a cerimónias que não lhes dizem nada. Repara que as pessoas até dizem que vão assistir à missa e não participar na missa. Achas que isso é viver a religião? Isso, ainda que te custe a aceitar, é viver uma palhaçada, um folclore, uma tradição. Não tem nada a ver com acreditar ou deixar de acreditar. Faz-se isto ou aquilo, em termos de religião, porque é costume. As pessoas não acreditam, verdadeiramente, naquilo que dizem.
- E não me venhas com a história de que esta terra melhorou muito desde que tu para cá vieste. Se não tivesses vindo, tudo tinha continuado na mesma e, se calhar, até muito melhor. Não teria havido tantas intrigas, tantos mexericos, tanto falatório.
- Por outro lado, se não tivesses seguido a carreira de padre…
- A vocação!
- Chama-lhe o que quiseres. Mas, se não tivesses ido para padre, teríamos tido uma vida linda. Nós fomos feitos um para o outro. Ainda te lembras, certamente, de todos os momentos bons que passámos. Quantas vezes estivemos em desacordo?
- Não me lembro de nenhuma. Ao longo de dois anos, Josias, dois maravilhosos anos, nem uma única vez estivemos em desacordo. Achas que haverá assim muitos casais? Não creio, amor. E, é por não acreditar que duas almas gémeas como as nossas tenham sido feitas para se consumirem longe uma da outra, que eu aqui estou. Tens que voltar atrás. Já deste muito da tua vida a estas pessoas e à tua igreja. Deixa, agora, tempo para ti. Deixa tudo isto e vem comigo. Meu amor, eu não consigo viver sem ti.
- Tens-te saído muito bem…
- Que sabes tu?! Não sabes nada do que foi a minha vida ao longo destes últimos vinte anos. Não te vou dizer que foi só um inferno porque não é verdade. A maior parte do tempo foi uma nulidade, um vazio completo, um vácuo, sem felicidade, sem calor, sem alegria, sem paz interior, sem interesse.
- Mas isso não é próprio da tua personalidade.
- Não era. Faltavas lá tu para preencher esse vazio, para aquecer este coração enregelado, para dar alegria a estes olhos amargurados, para perfumar esta existência inodora e dar cor a esta vida acinzentada. Nunca mais o meu coração saltou ao pensar em alguém. Nunca mais me senti leve como uma pena só de saber que estavas perto de mim. Nunca mais olhei para o mundo como uma obra de arte. A única coisa que me dava algum ânimo, ainda que entristecendo-me ao mesmo tempo, era a leitura compulsiva das poesias que me ofereceste. Sei-as todas de cor. Sabes que ainda tenho a bola de borracha que me deste naquele primeiro Domingo de Janeiro, no fim da missa?
- Foram essas recordações de ti que mantiveram à tona da água. Não fora isso, eu não estaria agora aqui contigo. Tantas vezes te quis procurar e não tive forças, com medo de uma nova rejeição. Não aguentaria outra recusa tua. A minha vida só tem sentido porque tu lho dás. Por isso, meu grande, grande amor, tu não podes ser egoísta a esse ponto. O teu coração sabe que eu não posso viver sem ti.
- Mafalda, minha querida amiga, em primeiro lugar, não é verdade que nunca tenhamos estado em desacordo. Estivemos pelo menos uma vez em total desacordo.
- Infelizmente…
- Por outro lado, como ainda agora te disse, a minha vida tomou outro rumo. Não vou dizer que a tua passagem por ela não significou nada, porque isso seria mentir-te e tu não mo mereces. Mas, fiz uma opção consciente, amadurecida e convicta. Por isso, minha querida, não é agora que vou voltar atrás. Tenho-me sentido realizado neste papel de mensageiro da palavra de salvação e sinto que tenho feito muito bem àqueles com quem me tenho cruzado e que me estão entregues pelo Senhor, ainda que tu não acredites. Não posso e não quero deixar esta vida. Sinto-me realizado. A tua participação na minha caminhada foi um momento de grande felicidade, mas todos estes anos que, entretanto, decorreram desde essa altura não o foram menos. No meio de todos os problemas que a vida me tem apresentado, sempre encontrei, na Palavra do Senhor, a força necessária para seguir em frente, para dizer: “Aqui estou!”.
Há bastante tempo que tinham entrado no escritório. Foram caminhando e conversando, mas ainda se não tinham sentado. Estavam demasiado absorvidos com a conversa para se aperceberem de mais alguma coisa.
Como há muitos anos atrás, iam-se tocando, ao de leve, com as mãos, mas sem a intimidade que antes existira. Os anos tinham formado uma barreira que não estava fácil de transpor.
Os olhos da Mafalda estavam a ficar cada vez mais ardentes, mais febris. Não ia perder, de novo, o seu homem. Ele não podia fazer de conta que ela era um farrapo. Aquilo que ele significava para ela, não podia ser omitido. O nosso instinto de sobrevivência leva-nos a lutar até às últimas consequências pelo ar que respiramos e o Josias era o ar que ela respirava, o alimento do seu ser que ressurgia, a carga eléctrica que alimentava agora o seu quotidiano. Não ia deixar que ele lhe fechasse, novamente, as portas da felicidade. Não permitiria que ele fizesse de conta que ela não estava lá. Tinha que significar para ele muito mais do que qualquer outra coisa, tal como ele era tudo para ela. Mas, ela não se podia descontrolar. Tinha que levar as coisas de forma calma e racional. Não se podia deixar arrastar unicamente pela paixão cega. Tinha que encontrar mais argumentos para o convencer, tinha que o conquistar e isso nem sempre se faz com armas. Só se não se puder evitar. Como último recurso. Também para isso ela estava preparada.
A conversa prolongou-se. Os argumentos, de um lado e do outro, foram-se acumulando como pedras desirmanadas de duas construções e a Mafalda não conseguia abrir qualquer brecha na convicção férrea que o Josias tinha de seguir em frente com aquilo que ele chamava a sua missão. Estava a entrar em desespero. Os seus argumentos esgotavam-se e ela não via qualquer resultado prático. Não podia, outra vez, perder o seu homem. Este era o pensamento que lhe afluía ao pensamento, cada vez com mais insistência, ao ponto de quase nada mais ouvir e mais nada conseguir dizer. Não te posso voltar a perder, não te posso voltar a perder, repetia incessantemente.
Josias, por seu turno, não se cansava de lhe dizer que não se tratava de perder ou ganhar fosse o que fosse ou fosse quem fosse. As suas vidas não tinham necessariamente que ser aglutinadas para que fossem felizes.
A Mafalda começou a ver a saída cada vez mais estreita e a bloquear todos os seus sentidos numa única direcção: não o podia perder para mais ninguém.
Foi-se aproximando da porta e, muito lentamente, fechou-a. Josias, tão embrenhado estava no jogo de argumentos, não prestou atenção a esse gesto. O seu espírito estava ocupado com outras tarefas.
Depois de fechar a porta, a Mafalda aproximou-se dele e abraçou-o murmurando sempre que o não podia perder. Ele ficou rígido sem saber como reagir. Não estava preparado para esse gesto. O que fazer? Não estava na sua natureza ser grosseiro para com as pessoas. No entanto, começava a recear que a sua quietude pudesse fazer nascer ideias erradas na cabeça da Mafalda e, por isso, tentou afastá-la meiga mas decididamente. Ela apertou-se a ele com mais força.
- Abraça-me, Josias. Vamos recordar os tempos maravilhosos que passámos. Já que não ouves os meus argumentos, pelo menos concede-me este desejo: Abraça-me. Certamente que não vai ser isso a afastar-te da tua igreja. Quero voltar a sentir a força dos teus braços à volta do meu corpo. Faz com que este meu corpo volte a arder de desejo. – E enlaçou-lhe as mãos atrás da nuca tentando puxar-lhe a boca para junto da sua.
Comprimindo-se contra ele, continuou a insistir, agarrando-se cada vez com mais força. Ele, porém, tentava, desesperadamente, afastá-la de si. Estava a entrar em pânico, porque não estava a conseguir dominar a situação. Num assomo de vontade, afastou-a violentamente de si.
- Não! Não te posso conceder esse desejo. Isso vai contra os meus princípios.
Quando a afastou de si, ela foi projectada contra a secretária e a raiva toldou-lhe o pensamento. A sua mão ainda enluvada alcançou, inadvertidamente, um abre-cartas em prata (tinha sido uma oferta da Rosário) poisado em cima da mesa e lançou-se com toda a fúria contra o padre Josias cravando-lho, no peito. Foi um gesto inconsciente, nascido do desespero e da revolta provocados pela rejeição, mas foi fatal. O objecto, transformado em arma, enterrou-se no coração do homem até ao cabo e ele, agarrando-se ao abre-cartas, virou os olhos desmesuradamente abertos pelo espanto e incredulidade para a Mafalda dizendo com uma espécie de sorriso nos lábios: “O teu amor, desta vez, foi um pouco longe de mais.” Deslizou para o chão atapetado do escritório e, em poucos segundos, faleceu. Mafalda ficou estarrecida a olhar para o seu amor estendido aos seus pés e lançou um grito tão lancinante, tão estridente, tão vibrante, que a irmã do pároco gelou, na sala de estar onde tentava, sem sucesso, acompanhar um programa televisivo.
Um pouco antes destes funestos acontecimentos, a Rosário chegava a sua casa e tinha à sua espera o Maneta. Não era uma visita desejada nem esperada mas ele tinha prometido que voltava e o seu pensamento não se tinha desviado para nenhum outro ponto de interesse. Até a doença da mãe lhe tinha passado um pouco ao lado porque a sua cabeça não tinha muito mais com que se ocupar. Como, entretanto, tinha feito o reconhecimento do terreno e não tinha visto qualquer sinal do sistema de alarme, sentiu-se muito mais à vontade. Quando a Rosário entrou no seu jardim ele imediatamente se colocou entre ela e o portão de entrada.
- Boa noite, menina. Como lhe tinha prometido, cá estou para lhe fazer companhia durante este serão. E, já agora, não se canse a tentar assustar-me com essa história do alarme porque eu não sou estúpido e já dei uma volta a esta casa sem ter visto nem sombra de alarme. Por isso, minha flor, esta noite estamos sozinhos e é assim que deve ser. Vamos conversar um pouco.
- Ò senhor Frederico, olhe que o facto de não ter visto sinal do alarme não quer dizer que ele não exista. De qualquer maneira, não me parece que o senhor seja tão grosseiro que queira impor a sua presença onde ela não foi pedida. Hoje foi um dia complicado, para mim, e não estou com muita disposição para conversar. Além disso, acabo de vir, agora da casa paroquial e preciso de pensar muito na minha vida.
- Ora, ora. Essas idas à casa paroquial não me cheiram nada bem.
- E posso saber porquê?
- Porque uma menina solteira, tão simpática, deve saber escolher melhor as suas companhias.
- E, talvez o Sr. Frederico se ache melhor companhia?!
- Não tenha a menor dúvida. Pelo menos, sou uma pessoa descomprometida enquanto ele não é.
- Ò senhor Frederico, vai-me desculpar, mas as minhas ideias, relativamente a companhias, são muito diferentes das suas. Como já lhe disse, estou muito necessitada de estar sozinha. Agradeço-lhe que saia. Não o convidei, não desejo a sua companhia e não tenho paciência para estar com muita conversa. A casa não lhe pertence, tenho o pagamento da renda em dia pelo que tenho todo o direito de escolher quem desejo receber em minha casa. Por favor, saia. – E foi recuando, porque, entretanto, o Maneta se estava a aproximar paulatinamente.
- Como estamos bravios, hoje! Quer-me parecer que as conversas com o nosso amigo lhe têm dado volta ao miolo. Menina, não faz ideia do que está a perder ao não querer ficar, um pouco mais, comigo. A menina ainda não viu nada. Aquilo que os outros lhe têm dado é uma ninharia, comparado com o que eu tenho para lhe dar. Espere, não seja tão assustadiça que eu não mordo. Hoje estou disposto a mostrar-lhe o que é um homem de verdade.
- Senhor Frederico! Tenha tento nessa língua! – As escadas de casa estavam cada vez mais perto mas o Maneta também.
- Não, menina. Já aguentei muito essa sua linda treta de engana meninos. Hoje não me vai ver virar as costas com tanta facilidade. Estou cansado de ser posto de lado. Para os outros é tudo e mais alguma coisa, cá para o Frederico é só palavrinhas bonitas. Chega de conversa à toa.
- O que é que quer dizer com isso de que para os outros é tudo e mais alguma coisa? Daqui nunca ninguém levou nada e o senhor, certamente que também não vai levar. Saia! – Mais três passos e estava com os pés na escada da casa. Mas ele não desarmava. Ela já suava porque a situação estava a ficar um pouco descontrolada. Ele, hoje, parecia alucinado. Que poderia fazer? Gritar não valia a pena pois ninguém a conseguiria ouvir uma vez que esta casa era bastante isolada e o muro que a circundava era alto. Assim a tinha escolhido.
- Não me diga que isso que se conta aí pela aldeia acerca da malta toda que por aqui passava é tudo peta! Já sou crescidinho, menina, para ser levado em conversa. Ainda aguentei algum tempo porque uma menina tão simpática merece um tratamento simpático. O problema é que tudo tem um limite. E o meu limite já chegou
- Se eu sou simpática, também o senhor Frederico o deve ser. Hoje, já lhe disse, não estou com vontade de conversar. Saia!
Mas ele não saiu. Em vez de dirigir os seus passos para a porta de saída, deu uma grande passada em direcção à Rosário que, ao mesmo tempo, saltou para trás. O salto não foi bem calculado e ela, tropeçando no primeiro degrau, caiu desamparada, de costas, batendo com a cabeça na esquina de um degrau. O Frederico ainda tentou agarrá-la, mas já foi tarde. A morte foi, praticamente instantânea. O Frederico ficou petrificado.
E agora? Vão pensar que fui eu que a matei! Não é lá muito boa ideia. Mas… espera aí! Ninguém me viu entrar e, por isso, não podem saber que fui eu. E reagiu. Toca a dar de butes antes que a coisa aqueça. Acabei por não adoçar o lábio, mas que se lixe. Se calhar, também não perdi grande coisa. ‘bora p’ra casa. Saiu, olhando para todos os lados a tentar ver se alguém estaria à espreita ou a passar por ali de forma casual. Não vislumbrou ninguém. Embrenhou-se nas sombras da noite e apressou-se em direcção ao monte do Espigueiro.
Na casa paroquial, a Mafalda também reagiu.
O que eu fui fazer! Matei-me! O que vai ser de nós, agora?! De nós?! Ele está morto! Para onde vou? E será que isso ainda interessa?! Tenho de ir para casa, pensar…
E, sorrateira e rapidamente, esgueirou-se para a rua pela porta lateral, sem que alguém se apercebesse da sua saída.
Arménia, passados que foram alguns segundos de bloqueio, correu para o escritório do seu irmão onde o encontrou prostrado. Ajoelhou-se junto dele, ergueu-lhe a cabeça e viu, estarrecida, o abre-cartas cravado no peito daquele ser a quem prezava acima de tudo no mundo. Acrescentou outro grito aterrador ao da Mafalda que ainda parecia reverberar na noite. Correu para a porta principal para tentar descortinar alguém a fugir e, não vendo ninguém, lançou o alarme:
- Acudam! Agarrem-na! Acudam! Agarrem-na que ela matou o vosso padre! – E correu para o meio da rua para tentar ver alguém a fugir.
Não viu ninguém, mas a sua gritaria alertou alguns transeuntes que passavam ali por perto e alguns habitantes que moravam nas cercanias. Alguns deles correram para se inteirarem dos motivos de tanto alarido. Entre eles estava o Tó Marmelo, desta vez acompanhado do seu fiel amigo. Ao chegar junto de Arménia, ela foi-os logo informando:
- Agarrem-na! Corram atrás dela, que ela matou o meu querido irmão.
- Ela quem? – Perguntaram várias vozes, em simultâneo.
- Quem havia de ser? Aquela sirigaita da Rosária!
- Ai a grande cadela! – gritou o Tó Marmelo. Espera lá que é hoje que o meu marmeleiro vai fazer festas àquelas costelas. Vamos para a Raposeira que ela não pode ir longe.
- Corram!...
E lá foram, em grande alvoroço e correria, a caminho da casa que a Rosário tinha arrendado.
Ao chegarem lá, encontraram o portão do jardim aberto e, entrando de roldão, esbarraram uns contra os outros quando os que iam à frente estacaram perante a visão do corpo da Rosário estendido nas escadas.
Embasbacados, ficaram em silêncio durante vários segundos sem saberem o que haviam de dizer ou de fazer. Só os que tinham ficado mais atrás, porque não viam o motivo desta hesitação, foram empurrando os que estavam à sua frente e iam perguntando:
- Estais com medo? Deixai-nos passar que nós tratamos do assunto num instante! Deixai passar…
Porém, ao depararem com o corpo inanimado da moça, ficavam, também eles, pasmados.
O Tó Marmelo, que tinha sido dos primeiros a chegar, perguntou a ninguém em especial:
- Eh pá, que é que se passa aqui?! Se foi ela, alguém lhe tratou já da saúde. Cá pr’a mim, só pode ter sido o Berto. Se calhar até foi ele que tratou da saúde aos dois. Ele andava mais que destrambelhado com o arranjinho dos dois. Vamos lá procurá-lo e tirar a limpo este assunto!
Mal tinha acabado de falar quando se aproximou o Xico da Antónia acompanhado do jovem referido.
- Espera aí – disse o Xico. O Berto não pode ter feito isso porque ele está comigo desde as oito e meia. Esteve em minha casa precisamente a dizer-me que vinha visitar a rapariga e que estava na hora de ela dizer sim ou sopas. Por isso, não pode ter sido ele.
- Mas então, se não foi ele, quem pode ter sido?! Ele era o mais exaltado de todos.
- O que mais havia por aí era gente exaltada. O pior, no meio disto tudo, é que nós não conseguimos travar a tempo essas exaltações. Eu bem tentei e até pensei que tinha conseguido muita coisa. Bem me enganei. Olha como uns boatos postos a correr sei lá por quem, chegaram ao ponto de fazer perder a vida a duas pessoas que, ao que parece, só queriam o bem dos outros. Que tristeza tão grande…
- Eh pá, agora que as coisas podiam serenar, aparece isto. Como vamos dar solução a esta embrulhada?
- Isso vai ser um assunto para as autoridades. Esperemos que consigam deslindar este caso…
 

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segunda-feira, maio 16, 2011 - 14:46

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