CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

A Virtude Do Trabalho

Tudo começou no final. É raro, mas uma vez por outra acontece. O velho deitado na cama tinha mais de noventa anos. De facto tinha noventa anos, sete meses e um dia. Durante oitenta anos e sete meses tinha trabalhado sem parar, durante os primeiros dez anos tinha ensaiado para trabalhar, neste “um dia” teve que tirar folga, contrafeito, porque ia morrer.

Nos últimos momentos recordou a sua vida…

Lembrou-se da casa humilde onde nascera, da sua pobre mãe que se esforçava para criar uma família de três, com escassos recursos, mas, mais visivelmente que tudo, recordou o seu virtuoso pai. Uma das primeiras coisas que aprendeu foi que a sua família podia ser pobre, passar fome, ter mais crianças mortas que vivas, mas ao menos tinha a “Virtude do Trabalho”. O seu pai falava disso com orgulho, de como trabalhava noite e dia nas minas de carvão, trazia apenas alguns cêntimos por semana para casa, mas ao menos estava coroado de Virtude. E os cêntimos eram centos “Dignos”, ainda que não comprassem carne, nem muito pão, batatas ou arroz.

O Velho lembrou-se de quanto admirava aquela Virtude. Era linda de se ver. O seu pai podia chegar bêbado a casa, espancar a mulher e berrar ebriamente ao filho “quando tiveres idade vais logo trabalhar, não queremos mandriões nesta casa, há que ganhar a vida” mas era, sem dúvida, um homem Virtuoso.

Foi por isso que o Velho, aos dez anos, começou, com toda a alegria, a trabalhar numa pedreira. O seu pai conhecia o Chefe daquela então pequena extracção mineira e arranjou-lhe lá emprego. Hoje em dia alguns cínicos poderão censurar o acto de se pôr uma criança com dez anos a trabalhar, mas o que eles não compreendem é que naqueles tempos se começava muito cedo a ser Virtuoso e a levar Dignidade para casa.

O primeiro dia de trabalho do Velho foi possivelmente o mais feliz da sua vida. Recordava-se de como agarrara na pesada picareta e começara a malhar pedras com toda a força, apenas para não deixar o Chefe, que tanta bondade lhe estava a fazer, ficar mal. No final do dia as suas mãos estavam em carne viva, tinham ardido durante um bom pedaço, mas ele não ligara, continuara a trabalhar, sem parar e obstinadamente. Como recompensa levara os parabéns do Chefe, 25 tostões inteiros e uma mão ligada com um lenço para estancar o sangue. Ainda hoje guardava aquele lenço manchado como o seu primeiro troféu. Sentira-se o homem mais Virtuoso do mundo. Vinte e Cinco tostões de dignidade e um lenço cheiinho de Virtude derramada, que mais poderia pedir num primeiro dia de trabalho?

Dez anos se passaram, pelo meio o pai do Velho morrera sem que este pudesse estar ao seu lado ou sequer ir ao funeral. A Virtude não tira folgas e não se podia perder um dia de trabalho por questões menores. Mas foi nessa ocasião que um dos episódios mais marcantes da vida do Velho aconteceu. Enquanto a sua mãe estava sozinha a sepultar o marido, o Velho foi chamado ao gabinete do Chefe. Parecia que este estava a ficar demasiado desgastado e a sua visão lhe estava a falhar, precisava de um secretário e, naquela pedreira, o Velho era o único que sabia ler e escrever. Foi promovido. A sua felicidade não conheceu limites. Agora, depois de ter as mãos calejadas e tão duras como as pedras que partia, podia finalmente começar a desgastar a vista e o cérebro num novo trabalho. Com fato e gravata! Agora, para além de Virtude e Dignidade, iria também ter Respeitabilidade. Era mais do que alguma vez sonhara.

Nos anos que se seguiram, durante os quais a sua mãe morreu sozinha, lenta e dolorosamente de tuberculose, o Velho dedicou-se-se cheio de empenho ao manuseamento, leitura e arquivo de todos os documentos, contractos e acordos daquela pedreira. A sua cabeça ficou cheia de alíneas, adendas, memorandos e outras coisas que tais, enquanto a sua visão ficou cada vez mais cansada e degradada. Foi neste período que o Velho ganhou o seu segundo troféu de Virtude, uns óculos com lentes mais grossas que fundos de garrafa.

E essa Virtude foi novamente recompensada no dia em que o Chefe, já velho, deu o seu ultimo suspiro. Durante aqueles anos o Velho tinha juntado imensa Digindade, por isso pode facilmente retirar alguma do banco e comprar a pedreira aos herdeiros, que não a queriam para nada. Foi assim que chegou a chefe. Tinha quarenta e nove anos e estava no auge da vida: Virtude, Dignidade, Respeitabilidade e Poder.

Mas o Velho percebeu que o Poder lhe dava responsabilidades, tinha o dever de dar a todos os seus trabalhadores a mesma experiencia de Virtude que tivera. Desse dia em diante, dedicou-se, com toda a generosidade, bondade e altruísmo, a fazer com que os seus homens trabalhassem de sol a sol, arduamente e sem descanso, por salários diminutos. “A Dignidade tem que ser ganha com muita Virtude e a maior recompensa de um bom trabalhador é um trabalho bem feito”, dizia frequentemente. Sob o portão da pedreira mandou escrever o lema “O Trabalho Liberta”.

Seguiram-se anos complicados, com novos desafios. Sob o seu comando a pedreira cresceu e prosperou, tornando-se numa grande empresa, depois á medida que investia em outras áreas (como a construção, a pesca, e o fabrico de chapéus em pasta de papel) numa enorme corporação e, por fim, quando se expandiu para todos os continentes, tornou-se numa gigantesca multinacional. O Velho, por esta altura, perdera o controlo total do virtuoso monstro que criara, mas estava sempre no seu gabinete, a vigiar o que se passava no império. Agora, para além de Virtude, Dignidade, Respeitabilidade e Poder, tinha também Reverencia. Tinha tudo.

Tudo, isto é, até aquela súbita tontura, até ter caído desmaiado sobre a mesa da administração. O médico chegou rapidamente e, após o ter arrastado para o hospital (mas sem o conseguir obrigar a largar o telemóvel, por onde se mantinha actualizado sobre as flutuações na bolsa) e ter feito várias análises, chegou a uma trágica conclusão, o Velho ia morrer. Restavam-lhe apenas vinte e quatro horas, nada havia a fazer. Era um caso simples em que a vida pura e simplesmente tinha acabado. Todos os órgãos davam sinais de que iam falhar muito brevemente, como um carro ao qual falta combustível. O Velho insistiu em sair e ir para o seu gabinete, queria aproveitar o resto do dia para organizar umas coisas que lhe faltavam fazer. Só no final, perto da meia noite, voltou para casa.

Mas na manhã seguinte, quando se tentou levantar, as suas pernas pura e simplesmente não lhe respondiam, o corpo estava como que pregado á cama e o Velho mal tinha força para respirar. A sua hora chegara. Durante todo o dia ficou fechado, sem ninguém, naquele escuro quarto, que de tão vazio que estava mais parecia um ensaio geral para o tumulo.
Por fim, deu um ultimo suspiro e…meteu baixa por tempo indeterminado.

***

O mais curioso deste caso, no entanto, foi o que se seguiu. Houve varias disputas sobre o património do falecido, guerras em tribunais, discussões, traições e, até, num caso em particular, violência física.

Mas durante esse tempo a unica coisa em que ninguém pensou, aquilo de que ninguém se recordou, foi de sepultar o corpo do Velho. E, ao fim destes anos todos, na sua pequena e isolada casa, dentro do sombrio quarto, deitado na sua cama, ainda está o esqueleto do Velho. Agora já não passa de um monte de ossos corroídos pelo tempo, de que ninguém se lembra ou quer saber. No entanto, há que admitir, são uns ossos cheios de Virtude.

Submited by

terça-feira, maio 19, 2009 - 01:28

Prosas :

No votes yet

MosquitoQuantico

imagem de MosquitoQuantico
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 13 anos 26 semanas
Membro desde: 05/19/2009
Conteúdos:
Pontos: 18

Comentários

imagem de jopeman

Re: A Virtude Do Trabalho

Gostei bastante deste conto, onde relatas, sem qualquer dúvida, uma das grandes virtudes
Bem-vindo
Abraço

imagem de AlexandraMCosta

Re: A Virtude Do Trabalho

Exprimiste-te bem. E só quem te conhece sabe que prazer doentio te deve ter dado escrever esta fábula.
Apesar do extremo, a que já estou habituada, tens razão. E continua a usar esse sarcasmo irritante! :-P

Beijo

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of MosquitoQuantico

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Fotos/ - 1211 0 724 11/24/2010 - 00:35 Português
Prosas/Mistério Sam Alister e o Misterioso Caso do Cliché Sem Solução 0 610 11/18/2010 - 23:47 Português
Prosas/Pensamentos Ideias Selvagens 1 495 06/09/2009 - 11:58 Português
Prosas/Outros O Que a Deusa Fez Domingo 1 454 05/21/2009 - 17:09 Português
Prosas/Contos A Virtude Do Trabalho 2 437 05/19/2009 - 21:54 Português