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O dia em que morri

Estava eu no dia em que morri, já no inferno, sem passar pelo purgatório, farto de olhar para o lado e sem nada para fazer, quando vejo lá ao longe um gigante. Parecia o Golias, ainda furioso e preso à funda com que David lhe acertou. Colateralmente além de morto, também tinha ficado com um grande deslocamento da retina que lhe provocava um desfocamento da visão. Pelo canto do olho vejo um anjinho encavalitado com a sua lira, numa nuvem lá em cima.

Tenho uma ideia e vou ter com o Golias.

Caro Amigo, digo-lhe eu, a arranhar um hebraico manhoso, que felicidade, encontrar-te aqui! Ai, aquele maldito David, sempre ranhoso, mas espera, não é ele que eu vejo ali? Que cão tinhoso! Empresta-me a funda que já o trazemos a novo pouso...

Se bem, pensei melhor o fiz, e acertei no infeliz anjo, que veio a resvalar pelos sete céus, sempre a escorregar numa confusão de braços e asas até se estatelar. Rapinei-lhe a lira das unhas ainda não tinha acabado de se esborrachar, e pirei-me com quantos pés tinha, sempre a andar.

Encontrei Mercúrio a descansar, os pés imersos em água do mar, gamei-lhe as sandálias aladas e saí a voar.
Ainda não tinha passado do meio dia e ouve-se a ressoar um gigantesco trovão do Divino Trono. Era Satã a entrar. Tinha pedido um audiência ao Padre Eterno, fonte de toda a reverência a amar.

Deus: - Que te traz a meus domínios, rebelde e manco, anjo, outrora tão amado, e agora tão perverso?

Satã: - Ai! Sempre eterna luminária de todo o Universo! A velha questão pela qual me fiz controverso.

Deus: - Mas quê, o homem? Mas Gabriel, a queda não se deu já?

Gabriel: - Pois sim, Senhor. Se até já nasceu o leão da tribo de Judá.

Deus: - Mau!...Então que há?

Satã: - Suma Potestade, sabeis lá!...

(Nisto entra o Arconte furibundo)

Arconte: Miserável trapaceiro!... Áh! Se eu o apanho... O patife deu-me uma moeda falsa e roubou-me o saco inteiro.

Satã: - Pois, que lá havia dinheiro...

Arconte: - Como sabeis? Conheceis esse esquife e carroceiro?

Satã:- Não, mas houve quem andasse a destribuir no meu inferno o teu dinheiro. Dizia que tinha mudado a Administração e premiava a bondade em meu nome. E que eu tinha saído do poleiro, pois então.

Arconte: - Não!

Satã: - Sim! E até fez uma revolução!

(Nisto estremecem os céus)

Deus: - Mas o que é que se passa?

(chega um mensageiro e Belial)

Mensageiro: - Falta um anjo da harmonia e abana a celestial cúpula por não estar completa a melodia.

Belial: - Vossa fétida monstrousidade, mãe e pai de toda a fealdade!

Satã: - Belial sempre adulador, com a verdade... Mas diz que quereis à suprema maldade?

Belial: - Anda um anjo a pregar nos domínios de Vossa Potestade.

Satã (roxo de raiva): - Padre Infinito... Ouvi-me neste lamento, como filho suplico o vosso ouvido atento.

(Deus levanta as sobrancelhas como para ouvir melhor)

Satã: - Eu explico... É disto autor o homem de quem se falou e que até o pobre Arconte levou. Ainda hoje de manhã lá entrou...

Gabriel: - E como é que aquilo está?

Satã: - Era um inferno, quando chegou, mas agora está...

Belial: - Ainda há pouco nevou...

(entra um anjo desorientado, com um galo imenso que no ambiente destoou)

Gabriel: Santo anjo de harmonia! Mas o que é que se passou?

Arconte: - Foi aquele homem louco que ao pobre anjo a lira roubou.

Belial: E anda a rodopiar com a lira pelos infernos. Quando se vai ver, já passou. Anda nas sandálias de mercúrio, por isso ninguém o apanhou.

Satã: - Senhor tirai-o do inferno de uma assentada.

Arconte: - E longe da minha barca assaltada!

Gabriel: Senhor, nos Céus não podemos ter uma alma penada!

(dá-se outro tremor nos céus e chega mercúrio com os bofes na boca)

Mercúrio: - Que horror! Parece que subi a uma serra.

Todos em coro: - Senhor, devolvei-o à terra!!!

Deus: - E o nome desse infractor que está na berra?

Satã: - Daniel, Senhor.

(cai uma coluna com grande estrondo e estertor)

Deus (dirigindo-se aos anjos): - Levem-no lá. E depressa com o andor!

Daniel: - E foi assim. No dia em que morri, foi o dia em que renasci numa terra amigável e cheia de calor.