Horas Mortas - Parte IV: O Sentimento de um Ocidental (Cesário Verde)

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

IV

HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!


Cesário Verde, In: Em Portugal a Camões, publicação extraordinária
do Jornal de Viagens do Porto, no dia 10 de Junho de 1880.
 

Submited by

Viernes, Julio 15, 2011 - 15:32

Poesia :

Sin votos aún

AjAraujo

Imagen de AjAraujo
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 6 años 38 semanas
Integró: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of AjAraujo

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Intervención A uma mendiga ruiva (Charles Baudelaire) 0 9.653 07/03/2014 - 01:55 Portuguese
Poesia/Intervención Coração avariado 1 4.370 06/25/2014 - 02:09 Portuguese
Poesia/Fantasía Flores bonecas 2 2.897 06/24/2014 - 19:14 Portuguese
Poesia/Intervención Caminho de San Tiago 0 3.834 06/23/2014 - 23:31 Portuguese
Poesia/Soneto Há em toda a beleza uma amargura (Walter Benjamin) 1 4.238 06/20/2014 - 20:04 Portuguese
Poesia/Soneto Vibra o passado em tudo o que palpita (Walter Benjamin) 1 4.108 06/19/2014 - 22:27 Portuguese
Poesia/Meditación Sonhe (Clarice Lispector) 1 4.696 06/19/2014 - 22:00 Portuguese
Poesia/Intervención Dá-me a tua mão (Clarice Lispector) 0 4.243 06/19/2014 - 21:44 Portuguese
Poesia/Intervención Precisão (Clarice Lispector) 0 4.697 06/19/2014 - 21:35 Portuguese
Poesia/Meditación Pão dormido, choro contido 1 2.992 06/13/2014 - 03:02 Portuguese
Poesia/Fantasía A dívida 1 3.377 06/12/2014 - 03:52 Portuguese
Poesia/Intervención Eco das Ruas 1 2.171 06/12/2014 - 03:38 Portuguese
Poesia/Aforismo Maneiras de lutar (Rubén Vela) 2 3.600 06/11/2014 - 10:22 Portuguese
Poesia/Aforismo O médico cubano, o charuto e o arroto tupiniquim (cordel) 2 5.743 06/11/2014 - 10:19 Portuguese
Poesia/Intervención Espera... (Florbela Espanca) 0 2.404 03/06/2014 - 10:42 Portuguese
Poesia/Intervención Interrogação (Florbela Espanca) 0 3.687 03/06/2014 - 10:36 Portuguese
Poesia/Intervención Alma a sangrar (Florbela Espanca) 0 2.449 03/06/2014 - 10:32 Portuguese
Poesia/Soneto Vê minha vida à luz da proteção (Walter Benjamin) 0 2.395 03/03/2014 - 12:16 Portuguese
Poesia/Dedicada Arte poética (Juan Gelman) 0 3.207 01/17/2014 - 22:32 Portuguese
Poesia/Dedicada A palavra em armas (Rubén Vela) 0 2.445 01/17/2014 - 22:01 Portuguese
Poesia/Fantasía A ÁRVORE DE NATAL NA CASA DE CRISTO (FIODOR DOSTOIÉVSKI) 0 2.159 12/20/2013 - 11:00 Portuguese
Poesia/Dedicada Aqueles olhos sábios 0 3.584 10/27/2013 - 20:47 Portuguese
Poesia/Pensamientos Asteróides 0 2.503 10/27/2013 - 20:46 Portuguese
Poesia/Pensamientos O que se re-funda não se finda 0 3.184 10/27/2013 - 20:44 Portuguese
Poesia/Intervención Para mim mesmo ergui…(Aleksander Pushkin) 0 2.838 10/15/2013 - 23:14 Portuguese