Excerto do romance CARTA A UM EX-AMANTE

JULIETA FERREIRA, in CARTA A UM EX-AMANTE (Temas Originais, 2010)

Teremos de ser barcos esvaziados, à mercê dos ventos, num mar encapelado? Teremos de ser páginas brancas à espera que o destino (ou seja lá o que for) escreva a nossa história? Desertos sem oásis ou miragens? Caramba! Há que ter esperança, nem que seja um pouquinho. Valh...a-me Deus. Estou confusa. Mas será que Deus irá valer-me agora, se não me tem valido noutras alturas? Não achas que Ele, de vez em quando, vai de férias? Ao fim e ao cabo, deve estar cansado. Não dizem as Escrituras que Ele descansou ao sétimo dia da criação do Universo? Pois é bem provável que continue a descansar, de quando em quando. Quem pode levar-lhe a mal por isso? Pode até dar-se o caso de aprendermos muito mais quando Ele se ausenta. Já tinhas pensado nisso? Uma das coisas que tenho aprendido, durante as ausências de Deus, é que tenho a tendência para gostar do que não existe.
Gostei da artificiosa memória de ti. Gostei do Miguel pelo que ele não era. A minha paixão e a mulher que renasceu e se reinventou contigo e com ele, acabaram por soçobrar nas águas frias da indiferença. Voltei a estar num lugar em que é sempre hoje. Fechei as cancelas do ontem e do amanhã. Só que o comboio do tempo teima em fazer paragens na memória e lá estão, nos apeadeiros, os resíduos das mortes que tive, os sonhos murchos e sem berço, o amor na sua cruel perfeição, o sofrimento desalojado, a esperança da cor da aurora. Peço ao condutor que acelere. Não quero revisitar esses lugares atulhados dos meus desperdícios e de sóis estrangulados no poente. Não quero parar. O comboio é que tem uma vontade tirana. Queda-se no silêncio rasgado onde não cabe a dor que já não floresce mas que continua a pernoitar na sombra. Recuso apear-me. Contudo, não consigo ficar impassível aos bafientos, amortecidos fantoches que jogam xadrez no cais, palco de exibições sem coreógrafo. A cortina nunca desce. Fecho os olhos para não ver as pegadas sumidas dos passos que não têm lugar para serem ouvidos, os risos pendurados nos troncos decepados das árvores plantadas nas histórias que acabaram sem conhecerem um fim. Quero enganar o tempo. Como o quis enganar nos três dias quando amaldiçoei a visita do inesperado que me assaltou. Detesto a rotina. Será por isso que os inesperados me pregam partidas? Talvez as pessoas que pereceram ontem, no inferno dantesco da A25, tenham sido como eu. Tenham vivido a correr atrás de sonhos e de inesperados. Tenham querido enganar o tempo. Para elas o tempo ficou parado, num crematório de peças calcinadas. Nesta minha evasão, numa vila da Beira Alta, onde marquei encontro com a força telúrica da serra e vim purificar o espírito, centro-me no tempo presente e vejo-me confrontada com a mortalidade. O ataque na Somália e a queda de um avião na China ainda que catastróficos, estão demasiado longínquos. O acidente numa estrada nacional, a uns escassos quilómetros do local onde me encontro, veio bater-me à porta.
Onde me situo eu no meio de tudo isto? Pergunto-me se tudo não é, afinal, produto de um acaso que escarnece de nós e das frouxas tentativas de encontrar justificações para a obscuridade dos nossos dias. Olho a cadeia serrana, desdobrando-se nas ínfimas parcelas da sua magnitude, num enquadramento bucólico que apascenta a minha alma e mesmo ali, não fujo às forças contrárias de yin e yang, em todo o seu esplendor e brutalidade. De um lado a vibração de um manto verde e pujante a cobrir as montanhas que se esticam no azul aveludado; do outro lado, a desolação da negrura das cinzas a servirem de mortalha à terra assassinada. O inesperado dos procedimentos humanos. O inesperado da natureza. O inesperado do destino. As árvores que porventura não voltarão a renovar-se. Os viajantes que, para sempre, deixaram de atravessar a sombra dos pinheiros esvaídos de seiva. O inesperado nunca é inesperado porque o trazemos connosco, num dualismo alucinante. Só não sabemos em que dia, a que horas, o visitante oculto se vai manifestar. Essa é a imprevisibilidade que nos acompanha. Que nos alimenta o sonho e nos descarrila do curso fastidioso da rotina. O imprevisível cola-se a nós como uma lapa e faz parar o tempo. Só eu não consegui parar o tempo nos três dias que precederam o silêncio do Miguel. Parar o tempo para voltar atrás e ficar na serenidade confortadora dos sons e sensações a que me habituara, da rotina que aprendera com ele.
Onde estás enquanto me passeio pelas estradas sinuosas da serra? Onde está o Miguel enquanto vagueio, tocada pelas asas cristalinas do vento? Em que tempo nos situamos? Que espaço habitamos? Que acaso nos juntou e nos separou? Cessámos de usar-nos num tempo e espaço que nos foram emprestados. Surpreendes-te por eu falar em usar-nos? Meu querido, que candura a tua! Ou que cinismo! Sim, usamo-nos e gastamo-nos. Até envelhecemos por dentro. Uns abusam do uso que fazem dos outros e, quando assim é, os que foram abusados apenas nos oferecem os seus sobejos. Acabamos sempre por ser devedores e sobras de alguém. Tu e o Miguel foram restos que não me pertenciam. Talvez restos devolvidos aos pretensiosos donos que os reclamaram. Pois que lhes façam muito bom proveito!

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Jueves, Julio 28, 2011 - 08:53

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Julieta Ferreira

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