Maria

Antigamente era um resto de pão, havia muito trabalho movido a pau, contam os que viveram nessa altura que era até o galo cantar, muito trabalho e pouco sustento para tanto filho. Minha avó fora destinada ao olhar cobiçoso do António da lampreia , ainda menina casara com ele, ela ocupada na lida da casa e de outras casas de gente rica que a pesca era muitas vezes uma rede vazia e o dinheiro que ganhava nessas casas dava para uns farrapos de leite, comia na casa dos Senhores e por vezes fazia debaixo dos lençóis outros serviços. António da lampreia sentado na pequena cadeira de madeira cosia as redes, o pequeno Luís gatinhava assim um gato que um dia pensa subir os grandes telhados do mundo, António pensava que havia uma idade em que não havia mais o direito de gozar o ar inspirador de uma aventura, antes de casar sentia-se como um gato a trepar as árvores do mundo, agora estava casado, no entanto feliz e no entanto oprimido, consolava-o o sorriso e a chiadeira daquela criança, na verdade também perdia a paciência e desatava murros á mesa, Maria dos outros ficava calada cobria com o corpo aquela criança que ainda não conseguia trepar a árvore do mundo e apanhava de mão e de palavra feia, és uma traidora e ela submissa e fraca olhava-o como se visse nele uma criança sem protecção. A noite entrava na cama como se dormisse com medo do silencio , ele ferrado no sono, cheiro forte a vinho, amanhã voltava ao rio, as redes novamente lançadas, agora já não queria apanhar peixe, desejava uma vida nova e uma vida cheia, No tempo da guerra fora mais feliz, feliz a percorrer mato, também duvidava dessa felicidade, os olhos tinham visto coisas, perdera amigos, os inimigos que queria ter morto era aquele ciume e aquela violência que parecia coisa do diabo, faz as tuas orações que Deus toma conta de ti eram as palavras do Padre que mesmo jurando a Cristo se deitara em retiro com Maria dos outros nome pelo qual era conhecida na aldeia, António um dia caiu do barco, havia muita companhia nessa tarde, Maria e o pequeno lado a lado, não choraram, a cabeça baixa e o coração mais calmo, as redes não estavam vazias, não havia medo, não havia mais sangue, nem mais um copo entornado, Maria voltou para casa, o corpo tinha de descansar, agarrou o pequeno nos braços e adormeceuMaria que antes era Maria dos outros agora se dedicava ao seu pequeno Luís, o miúdo continuava se julgando talvez um trepador do mundo, agarrado ás pernas dela perguntava quando iria na escola- Vais quando for respondia ela num modo duro e no entanto aqueles seus olhos ainda se conservavam doces.- E quando for fica longe?- Fica atrás do monte, tenho de arranjar trabalho- Eu sou crescido posso ir pescar como o pai- Tu sabes pescar?- Sei.- Sabes pescar peixe no prato, olha tu gostavas de ir na cidade?- A cidade tem casas grandes ouvi falar- e quem falou?- Ouvi na loja que tinha casas grandes e fábricas- A mãe está a pensar ir na cidade procurar trabalho, guardei algum dinheiro.- E tem escola lá- Acho que sim, já vi fotografias, tenho uma amiga que é criada numa casa em Sintra, diz que vai falar com os Senhores- Eu gosto daqui, gosto do malhado e da Alzira da loja- Que te enche os bolsos de rebuçados- Gosto.- Tu não entendes mas a vida está difícil- Tenho fome.- Vou cortar pão e preparar a sopa, ontem o patrão deu um resto de peixe podemos comer.- Já não vais trabalhar lá?- Pode ser mais um pouco mas depois vamos- Vou ter tempo de me despedir, podemos levar o malhado- Sim se lhe limpares os bichos- Eu limpo mãe, eu limpo- Mãe estou a pensar...- Sim- Não quero ir para a cidade- Que dizes?!- A cidade não tem pássaros- Quem meteu essa ideia na cabeça?- A cidade tem pássaros?- Tem.- E tem árvores e ninhos?- Também- Muitas?!- Algumas, quase nada, mas há bonitos jardins- O tio João contou que tem mais avião, que tem mais avião que nuvem- Ti João é maluco- As pessoas dizem que foi da guerra.- É da guerra e é do amor sussurra ela.- Vou lá fora lançar o peão, queres ver?- Vou lavar a roupaO peão parecia desenhar sonhos na palma da mão- Mãe estás a ver?!- Estou a ver...Luís continuava a entreter-se , sem pensar em mais nada, qualquer instante valia para ser forte- Dentro de dias partimos. - Vou contar ao malhado, ele vai ter amigos não vai.Maria estava naquele dia de preparar as bagagens, ia trabalhar para casa de uma família importante, gente rica dessa com diploma.- Luís preciso de falar contigo- Que é mãe, tem problema?- Sabes nós vamos viver com uma família, deve ser gente que fala bem, depois não deves dizer asneira.- O padre disse que as crianças vão arder no inferno- Isso é exagero mas tens de te portar bem.- Tem lá outras crianças como eu?- Contaram-me que tem um rapaz pequeno filho do caseiro- Prometo que me vou portar bem- Anda cá provar estes calções a ver se te servem, estás crescido- Ainda fico grande como uma árvore- E depois a passarada vai fazer ninho nos teus cabelos- Eu não sou um espantalho, sabes uma coisa agora tenho sonhos maus- E que sonhos são esses?- Sonho que o pai me quer pescar- Que ideia parva, eu estou aqui- Vais ficar comigo- Nós os dois vamos ficar sempre contigo- Que nós os dois?- Eu e o malhado.- Malhado sabes morder a perna dos espíritos? pergunta o pequeno Luís tocando-lhe a ponta do nariz.Naqueles dias antes da viagem para a cidade o pequeno Luís despediu-se de todos os pássaros, na loja da Alzira contou que ia para casa de gente importante sendo interrompido pelo tio João - Rapaz fica a saber que importante sou eu, andei na guerra de 14- ele ainda não estava cá- Estava a preparar as malas dizia uma outra freguesa- Eu não trouxe roupa, vim pelado ria ele- Sabes até ganhei uma medalha, matei muita passarada Alemã- Matou com fisga?- Com tiro de espingarda, uma vez estava cara a cara com um, olhei-o nos olhos, era assim como quando se está apaixonado por alguém- Matou-o?- Dei-lhe um grito, parecia espantado como um louco, a guerra deixa a gente louca.- Ó rapaz queres uns rebuçados pergunta a Tia Alzira - Tem de hortelã pimenta? - Tenho. Olha levas este saco com feijão verde para a tua mãe- Lá na cidade não tem comida assim tão caseira- Claro que não tem tio João acena a Alzira da loja acenando com a cabeça.- Quando partem? pergunta o tio João passando a mão pelo cabelo.- Num comboio cedo de manhã responde o pequeno metendo á boca um rebuçado.Durante a noite Luís não dormiu a pensar como seria a cidade. O tio João afirmara que era tão grande que só cabia dentro dos livros em palavras. Luís foi o primeiro a levantar-se, a mãe ainda dormitava e o cão deitado aos pés da cama parecia um animal do circo romano. Luís puxou o malhado para o chão- Está aqui a tua comida, anda vamos lá fora Maria começava a mexer-se os lençóis da cama pareciam as ondas do mar- Vou aquecer a água disse ela levantando-se pronto, vou dar-te um banho e vestir-te roupa nova.Maria foi fora buscar lenha acompanhada do malhado que saltitava como se estivesse contente por ir também conhecer a cidade Tu também precisas de um banho mas agora não há tempo, vou dar banho ao teu dono, limpar um pouco a casa e seguimos para a estação.Malhado o cão acabou por entrar na tina acabando por tomar banho com o pequeno Luís , Maria ficou um pouco zangada mas não havia tempo para se aborrecer.- Vamos comer, deixa-me cortar o pão- Este queijo é bom Foi o tio João que deu para nós, vou preparar umas sandes para levar. Depois do pequeno almoço tomado partiram, a estação ficava a dois km de casa, malhado acompanhava-os como se fosse um soldado marchando ao som de um hino. Havia algumas pessoas na estação, estava lá um Senhor bem vestido como um noivo e que tinha uma pasta, o modelo da pasta fazia adivinhar que se tratava de um médico, tinha uma aparência jovem, talvez tivesse acabado o curso á pouco tempo, o resto dos passageiros eram agricultores, na carruagem onde o pequeno Luís e a mãe viajavam acompanhados das galinhas e do som do bater das asas, ainda havia um magala a tocar gaita de beiços e os outros a cantar muito desafinados, malhado ladrava que até parecia estar enfiado naquele coro de vozes. Aquela terceira classe não era confortável mas tinha animação, não uma animação completa, uma mulher que viajava com eles contava que estava viúva á duas semanas, o marido morrera nas minas, a conversa ficava na lamentação, era preciso ter cuidado, podia haver policia por ali. Maria confortava a mulher e repartia com ela um pouco da água e da merenda. Luís empoleirado á janela se sentia fascinado com o fumo e com as árvores perfiladas de frutos, de repente o comboio parou uns minutos, um dos ramos de uma laranjeira tocava a janela onde estava ele, apanhou algumas, Maria ficou um pouco zangada aquelas árvores deviam ter dono, depois pensou que muita gente pobre as tinha plantado, Maria deu-lhe um beijo na fronte, pegou nalgumas laranjas e meteu na saca da mulher do mineiro que agora dormia profundamente talvez cansada do andar da sua vida lenta como o vapor que sai da boca da locomotiva. Dos olhos adormecidos daquela mulher corriam lágrimas.

- Mãe ela está a sonhar com o rio

- como sabes tu

- o tio João disse a mim que pessoa que chora a dormir vai morrer afogada

- tio João é maluco, a noite está a cair, vou preparar a sua cama.

- Posso ficar no teu colo?

- Tu és crescido

Naquela noite choveu muito e os trovões pareciam tambores, o comboio chegou na estação do rossio por volta das 8

- Vamos procurar um café que tenha telefone

Maria procurou a um homem onde havia um sitio para telefonar

- Segue esta rua e depois vira á esquerda tem perto uma loja e na porta tem um sinal dos correios.

- Obrigado disse ela seguindo em direcção

Maria entrou na loja, aproximou-se do balcão, á frente dela estava um homem velho com óculos de tartaruga

- Que deseja

- Telefonar

- Aqui tem o telefone.

Enquanto Maria falava com os novos patrões informando-os da sua chegada, Luís olhava um boião de vidro cheio de doces.

- Gostas dos doces?

- São bonitos, o papel é bonito

- Vou dar-te um, toma, tu pareces um rapaz bem comportado, ou será que também andas aos ninhos

- Obrigado disse Luís metendo o doce á boca

Luís disse Maria, daqui a duas horas o patrão vem buscar-nos, vamos procurar antes um lugar para comer, ainda sobrou um resto de comida

- A minha mulher fez uma sopa quente disse o dono da loja

- Já não temos dinheiro, viemos para trabalhar

- Ofereço-vos, nós gostamos de ter companhia á mesa, desde que o nosso filho morreu que sentimos que a companhia das pessoas nos ajuda a suportar a perda dele

- Muito obrigado Senhor, quanto lhe devo do telefone

- Não é nada

Uns minutos mais tarde sentaram-se juntos á mesa, antes fizeram uma oração

- A Senhora vem de onde?

- Venho de uma aldeia do Mondego

- Já vi fotografias das cheias disse a mulher do Senhor Jeremias o dono da loja, vi fotos de um barco atravessando as pessoas e o gado

- Em que casa vai trabalhar?

- Na casa da família Bento

- É uma família importante, a minha mulher já trabalhou lá como cozinheira mas depois da morte do nosso filho ficamos mais juntos.

Um instante depois levantaram a mesa, Maria ajudou a lavar a loiça enquanto Jeremias ensinava o pequeno Luís o jogo das damas

- Temos que ir indo, uma carroça vem buscar-nos, não acharão mal se vos fizermos uma visita

- Teremos muito gosto disse a mulher de Jeremias a dona Graça

Instantes depois chegou um homem numa carroça

- Você é Maria?

- Sou eu

- Subam - E tu pequeno qual é o teu nome?

- Chamo-me Luís Senhor

- Chamo-me Alberto, sou o capataz, nunca estiveram na cidade

- Nunca estivemos

- Trouxe uma garrafa de vinho quer um pouco? Faz bem á circulação

- Não obrigado

- Hoje é o meu aniversário, quero fazer uma festa com a minha patroa , a Senhora é casada, se não for vai ter pretendentes.

- Sou viúva.

- Acredito que deve ter sido uma coisa triste, devia beber para se alegrar

- Mãe aquele ramo de árvore passou rente na minha cabeça

- Estamos a chegar.

A quinta onde Maria ia trabalhar eram muitos quilómetros de terra, no coração de Maria batia o medo e ao mesmo tempo a confiança de uma vida um pouco melhor.

- Fiquem aqui, vou chamar a Senhora.

Passados poucos instantes chegou o capataz com uma moça que aparentava 40 anos embora fosse mais velha

trazia umas calças de montar pois era costume passear a cavalo e vigiar o trabalho agrícola.

- Sabes cozinhar?

- Sei sim Senhora

- Vamos te arranjar roupas de trabalho, vais começar por ajudar na cozinha e é ai que comes, tu e o pequeno. - Alberto indica-lhe o quarto, é aquele ao lado da cozinha.

- Sim minha Senhora.

- Já agora meu rapaz gostas de cavalos

- Gosto minha Senhora

- Podes tratar-me por Joana, amanha a nossa costureira vai tirar-te as medidas, espero que a tua mae nao se importe.

No dia seguinte Maria Ajudou na cozinha, foram muitas horas de trabalho, além do trabalho na cozinha ainda teve de passar muita roupa a ferro, a hora de começar o trabalho coincidia com o cantar do galo, Maria lembrava-se do galo da sua casa, parecia esse mais silencioso, este sendo um galo de cidade de certo se achava importante assim os donos, Joana a Senhora estava sempre a patrulhar, quando não patrulhava enfiava-se no escritório para fazer a contabilidade, raramente tinha um sorriso, nem era muito afeiçoada ás crianças mas tinha gostado do pequeno Luís, parece que um problema de saúde a tinha impedido de ter filhos e a relação entre ela e o marido tinha esfriado, ele passava muito tempo em viagens de negócios, havia momentos em que a relação entre eles era um fogo reacendido, ele trazia-lhe uma jóia cara e dizia-lhe que ela era a jóia da vida dele , Maria ouvira sobre eles, nos momentos das refeições havia sempre mexericos a temperar a sopa, Maria não se queria meter nessas vidas que não eram a sua, na sala onde era servido o jantar estava um retrato do marido de Joana, Joana pensava para si que aquele era um homem bonito, o Seu falecido homem embora as coisas más tinha aquela magia que faz o desejo flutuar como se fosse o espírito sobre a água, ela uma noite sonhou que o seu António fora arrebatado por uma sereia, depois imaginava a sereia a levar porrada de meter dó continua

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Martes, Septiembre 3, 2013 - 18:32

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