o deslumbramento de uma queda (I)

num quarto imaculadamente branco, segredam-me batimentos cardíacos de outras vidas, janela aberta, eu de perna cruzada na cama e tu, sim tu, de costas nuas viradas para mim, e Carlos Paredes a ressoar no ouvido direito. uma noite como tantas outras, uma Lisboa parada no tempo, de pessoas que quedam pelos cantos, negócios ambulantes, jóias, relógios, paciência roubada aos transeuntes com pressa, sempre a pressa, a eterna aliada da morte lenta. o sangue que escorre nas paredes é o dos que nem pela oferenda de palavras param, ruelas apagadas, cada um fala para si, levando a pressa consigo, sempre a pressa, e o latir de um cão da meia-noite, a janela aberta, o vento a entorpecer-me as mãos, a pele a desfalecer, a quebrar.
levanto-me vagarosamente, desfiro-te um beijo que se deixa demorar, as tuas costas nuas e eu passeando meus lábios pela curva do teu pescoço que me leva à orelha. costas nuas, mãos adormecendo nas tuas coxas, um infindo despejar de sorriso no sorriso, o abraço que me salva enfim.
de perna cruzada, o meu pé curvo, nunca terei problemas em calçar salto alto, um pé muito curvo baloiçando sobre a colcha, a janela ainda aberta para melhor sentir o cheiro das estrelas. teus olhos, um firmamento.
as paredes muito altas, nem tu lhes chegas de um salto; sempre quis tectos inalcançáveis: respira-se melhor. e o varandim virado para a calçada, do outro lado a vizinha, 62 anos, fazendo ginástica de janela escancarada e televisão em volumes de emouquecer. escuto-a até deste lado, de perna cruzada na cama, janela aberta, o latir de um cão da meia-noite, tu no meu colo, de corpo a ferver no meu.
cavalos brancos, selvagens, na minha cabeça, pesando-me nos pensamentos, trocando-me as memórias, os sentidos.
não sei que vidas estas.
o meu pé curvo baloiçando sobre a colcha, o quarto a meia-luz, saboreia-se melhor assim. pareceu-me ver duas asas espontando nas tuas costas. Rendo-me a ti.
eu de pé, uma brisa mais forte nos meus cabelos longos, negros de café, espargindo-se na ondulação do teu peito, meus braços fazendo de ti um todo dentro de mim. janela aberta, ainda.
e num repente, olhos fechados e o mundo de paredes escarlate. o cão da meia-noite que late e não cessa, o debrum das ruas, os candeeiros que parecem estrelas na minha pele.

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Miércoles, Octubre 22, 2008 - 20:37

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Re: o deslumbramento de uma queda (I)

Mais um excelente texto que encontro no WAF! :-)

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