NÓS, MULHERES QUE VENCEMOS O CÃNCER PARTE II
Parte II
Não durmo nada durante toda a noite.
Analgésicos, troca de soros, dipirona de quatro em quatro horas, dimorfina quando eu não suportava mais. Dor e dor e dor! Meus sinais vitais se descontrolaram; a pressão subiu, tive picos de febre, vários exames de sangue ao longo do dia e uma infecção generalizada se instalou.
A contagem de leucócitos, normal até 10.00/ml chegou aos 70 mil, com granulações indicativas de quadro grave, infecção aguda. As duas cirurgias, a perda de um alto volume de sangue fizeram minha taxa de hemoglobina despencar de 14,9 g/dl no dia da primeira cirurgia, para 8,0g/dl e no meu quarto um entra e sai de médicos investigando as possíveis causas das perfurações. Uma infectologista sugeria que provavelmente se tratasse de uma parasitose? Um citomegalovírus? HIV? Aids ? eu pensei, só faltava mais esta. Não falo nada, não pergunto nada e também nada respondo. Quero dormir, ou melhor, quero morrer.
No outro dia amanheço totalmente inchada. Da cintura até os pés pareço mais um barril. Deve ter aí, uns dez litros de líquido, diz uma enfermeira, com toda sinceridade. Ou mais, uns doze, responde a outra enquanto tento me colocar de pé para o banho daquela manhã. Uma sensibilidade paquidérmica !
Me sinto pesadíssima, uma tonelada, eu acho. Me olho e não acredito no que vejo. Meus rins não suportam tanto líquido e eu então passo então a não mais poder ficar de pé. Debruçada sobre a guarda da cama e nesta posição tento dormir, pequenos cochilos, insuficientes, irritantes, e a madrugada é tão longa.
No quarto ao lado um transplantado faz vômitos a noite inteirinha e não consigo sequer cochilar. - É a rejeição, me explica o enfermeiro que vem me fazer a medicação das três da manhã.
Não consigo me deitar de costas, a péssima qualidade do colchão e o tempo que já estou hospitalizada fazem da minha coluna um trapo. Além disto, passadas já mais de duas semanas, estou doze quilos mais magra. Meu rosto tomou um aspecto cadavérico, reconheço. Minha pele está grossa, cheia de erupções ocasionadas pela forte medicação e as altas doses de todo tipo de antibióticos. Tenho duas covas nas laterais do rosto, meus olhos estão pequeninos, sem cor, sem brilho, e agora que o edema passou fico horrorizada com a finura das minhas pernas, uns cambitos, como diria meu pai.
Há pelo menos dois dedos de cabelo branco, afinal não vejo um cabeleireiro há semanas. Prendo um rabo de cavalo e mais fino ainda fica o meu rosto. Mesmo assim depois do banho sempre passo um hidratante, uma pincelada de blush para melhorar o aspecto e uma colônia para disfarçar o cheiro insuportável que exala de todo e qualquer lugar dentro do hospital.
Meus filhos revezavam-se para dormir comigo, em um sofá cama onde mal cabiam, pois cada um deles mede mais de 1,90m. Mesmo assim, todas as noites um deles ficava comigo não permitindo que ninguém assumisse a tarefa que, eles acreditavam, pertencia a eles, e a mais ninguém. Mas os jovens e fortes também se cansam e foi então que começaram a cuidar de mim, outras pessoas da família num revezamento estafante para todas elas, com família, filhos, tudo por cuidar.
Muita gente passou por lá, visitas das quais não me lembro, amigas que me fizeram companhia nas terríveis noites de insônia e dor, minha cunhada, uma prima, outra prima, meu ex-marido, solidário naquela dor e orgulhoso dos nossos filhos...
Muitas vezes, durante as longas madrugadas eu rezava, pedia tanto aos deuses (!) que não me deixassem morrer ainda. Não era medo nem covardia, eu precisa retomar a minha vida, organizar o que seria dos meus meninos, depois sim, eu poderia partir.
Eu iria resistir, suportar, aguentar aquele fardo que era só meu e somente eu poderia dar conta dele. De onde seria mesmo que eu resgatava tudo aquilo? Não era o que mais me interessava, mas eu não podia perder a fé. E orava, e me entregava com tamanha força e com tanta convicção que comecei a achar que logo, logo voltaria para minha casa. Minha cama, meu travesseiro, a comidinha gostosa. Eu queria ficar boa logo, voltar para o meu canto, me livrar do tormento dos espíritos que vagam sem rumo pelas paredes e corredores numa busca insana por um pouco de energia e luz.
Sofri muito com vultos indo e vindo, passando pelas paredes do quarto. Numa das vezes vi São Miguel Arcanjo, enorme, ocupando toda a parede e para minha surpresa ele tinha o rosto e os cabelos do meu filho mais novo. Naquela noite eu tive a certeza de que uma proteção muito grande estava comigo e eu sairia viva daquele sofrimento todo.
Um fato novo me tornou ainda mais infeliz. Durante a madrugada eu acordava várias vezes com a sensação de morte eminente. Eu me recostava na cama, ofegante, quase sem ar, suando em bicas, com o coração acelerado, cheia de tremores pelo corpo todo. Um incontrolável sentimento de medo me invadia e eu ficava imóvel torcendo para que alguma pessoa entrasse no quarto para me salvar da morte.
Ao relatar o fato para o médico soube que desenvolvi um stress pós-traumático cujos sintomas eram o mesmo que a síndrome do pânico. Todas as noites eu tinha crises: duas, três, até quatro vezes e sofria terrivelmente pelo desconforto e pelo medo que me invadia. Eu suava tanto que parecia ter saído do banho naquele momento.
Voltei para casa, aliás voltamos: a bolsinha, eu e as crises de pânico!
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Comentarios
Re: NÓS, MULHERES QUE VENCEMOS O CÃNCER PARTE II
A volta para casa, amigos vistam no hospital depois em casa a solidão e o medo.
Muito bem elaborado.