O Seminarista – Capitulo VII
Eugênio entrou para o salão mergulhado num pego de dor, de vergonha, de terror, e sofrendo o embate de mil diversas e violentas impressões. Seus companheiros de salão olhavam para ele cheios de pasmo.
Em que grave falta teria incorrido aquele bom menino tão dócil, tão sossegado e estudioso?
— Se aquele, que é um santinho, e nunca falta às suas obrigações, está sujeito a estas, que será de mim, que nem por isso dou muito boas contas de mim, e não sou lá das melhores fazendas! - Assim cada um deles transido de medo pensava em sua consciência.
Eugênio vendo a atenção de que era objeto da parte deles, quereria afundar-se cem braças pela terra abaixo.
Aquele estranho acontecimento vinha despertar em seu espírito uma multidão de idéias e reflexões novas, que lhe tumultuavam no cérebro, e o punham na maior tortura e confusão. Não compreendia que mal pudesse haver em querer bem a uma menina e em fazer-lhe versos. Bem sabia que tinha de ser padre, e esse era o seu mais ardente desejo, sabia igualmente que o padre não pode casar-se, e muito menos amar uma mulher qualquer; mas nunca lhe passou pelo espírito a idéia de casamento com Margarida, nem com quem quer que fosse, nem tampouco que aquela afeição que consagrava à menina fosse o que se chama amor. Ficou portanto confuso e aterrado, quando aquele sentimento, que lhe parecia tão inocente e sem conseqüência, lhe foi exprobrado como um crime hediondo, um sacrilégio, uma ofensa enorme feita à divindade.
Repugnava-lhe semelhante idéia, mas entretanto sentia que era forçoso curvar-se a ela e submeter-se aos ditames do seu diretor. Mas esquecer-se de Margarida, renunciar para sempre àquela afeição tão pura e suave, que até então lhe havia embalsamado, a existência com os seus eflúvios celestes, e que constituía por assim dizer a seiva de seu coração, o perfume de sua alma, era um empenho diante do qual o seu espírito recuava espavorido, e a sua inteligência, posto que inexperiente, bem entrevia que isso não lhe seria possível.
Todavia Eugênio, como submisso e dócil que era por natureza, não podia deixar de compreender que o padre diretor devia ter toda a razão, e pressentia que a afeição que votava a Margarida era um estorvo temível, um escolho, em que iria naufragar irremediavelmente a sua vocação religiosa. E como desejava sincera e ardentemente abraçar o estado sacerdotal, começou a ter um horror, não à pessoa de Margarida - que mal lhe havia feito ou poderia fazer a pobre menina? - mas à idéia de amá-la.
Não podia desprezar e muito menos odiar a sua boa e gentil companheira de infância, mas era forçoso... esquecê-la de todo! não; não o queria, e nem isso era possível, mas era preciso não trazê-la tão de contínuo presente ao pensamento. Nesse intuito Eugênio tentou embalde esforços sobre-humanos.
À tarde, no recreio, em vez de ir assentar-se como dantes no paredão da esplanada a contemplar as colinas vizinhas e as nuvens douradas do ocidente afogueado pelos últimos clarões do dia, envolvia-se na turba folgazã dos companheiros, e procurava abafar no turbilhão e algazarra de seus trêfegos divertimentos as cismas saudosas que nessas horas, como vapores de rosa nas asas de uma brisa perfumada, costumavam pairar-lhe pelo espírito.
Quando à hora de missa entrava na igreja, desviava os olhos do grupo das mulheres, e quando acordava de madrugada aos sons dos hinos sagrados, ao ouvir aquela voz suave e argentina que fazia lembrar Margarida, cobria bem a cabeça, e tapava os ouvidos com ambas as mãos.
De noite, quando sonhava com ela - e isto sempre lhe acontecia -, despertava benzendo-se, punha-se de joelhos e rezava longamente pedindo a Deus que lhe arredasse do espírito aquela tentação, que até dormindo tanto o perturbava.
Mas debalde Eugênio cerrava os olhos e os ouvidos, debalde procurava furtar-se à influência dessas impressões externas, que lhe falavam de Margarida. De que lhe servia isso, se ele a tinha dentro de si, e não lhe era possível estender um véu que a ocultasse aos olhos da alma, dentro da qual encontrava sempre a sorrir, refulgente de formosura, a imagem de Margarida, como lâmpada sempre acesa dentro de um santuário, e ouvia-lhe constantemente a voz como um eco mavioso, que a viração que passa acorda de contínuo no seio de uma gruta misteriosa.
Era tempo perdido querer riscá-la da lembrança. A encantadora menina cada vez mais louçã e risonha, cada vez mais tentadora, estava sempre a lhe aparecer em sonhos, como um anjo de luz procurando à porfia desvanecer e afugentar as sombras tristonhas que os escrúpulos de uma consciência fanatizada começavam a acumular no espírito do adolescente.
Eugênio cumpriu à risca os jejuns e penitências que lhe foram prescritos durante uma semana, no fim da qual devia prosternar-se no tribunal da penitência aos pés do confessor, e aliviar sua consciência do peso daquele hediondo pecado, o qual entretanto fazia as delícias de sua vida. E quem escolheria ele para seu confessor senão o próprio padre-mestre diretor, que já estava ao fato das fraquezas de seu coração, e das alucinações de sua imaginação?
O menino confessou-se com verdadeira contrição e sinceros desejos de emendar-se, revelando toda a luta íntima que sustentava sem resultado para banir do espírito a imagem da sua querida Margarida.
O padre deu-lhe animações e conselhos salutares, exortando-o a que persistisse naquela luta agradável aos olhos de Deus, e que tivesse fé e esperança na misericórdia divina, que alcançaria segura e completa vitória. Entre outras muitas coisas santas e salutares que disse ao menino, fez-lhe ver que decerto Margarida, como criança que era, já há muito dele se teria esquecido, e que não era senão o demônio que tomava a figura dessa menina para perturbar-lhe o espírito, arredá-lo de uma santa vocação, e arrastá-lo ao caminho da condenação eterna; que se lembrasse que o espírito das trevas, querendo perder nossos primeiros pais transformou-se em uma serpente, que enleando-se submissa e dolosa aos pés de Eva, lançou-lhe n'alma o germe da desobediência e da cobiça, o que fez perderem para sempre, ela e o seu companheiro, as delícias do paraíso terreal.
Como remédio prático para combater a tentação, recomendou-lhe que se desse a trabalhos incessantes do corpo e do espírito; exercício ativo e violento mesmo nas horas de recreio, lição dobrada a estudar na ocasião do repouso, e sobretudo orações, penitências e mortificações durante a noite.
O estudante ouvia com a maior atenção, e recolhia no fundo da alma todos os conselhos e exortações do padre, dispondo a pô-los em prática imediatamente. De todas as coisas, porém, que disse o padre, a que mais profunda mossa deixou em seu espírito foi a alusão da serpente no paraíso. Lembrou-se da cobra que se tinha enleado ao corpo de Margarida, quando era pequenina, das palavras que então sua mãe proferiu com respeito à serpente que tentou Eva no paraíso, e estremeceu.
Havia ali uma terrível analogia de situações, que ele sentia confusamente; as sinistras apreensões da mãe pareciam tender a realizar-se; um terror vago se apoderou da alma de Eugênio.
O estudante seguiu à risca todas as exortações e conselhos do padre. Na ocasião do recreio corria, saltava, lutava, jogava a bola e a peteca, sem dar um instante de repouso ao corpo.
Nas horas de repouso estudava a morrer, e quando já não tinha lição a estudar pegava em qualquer livro pio, e lia, lia incessantemente. Quando vinha a noite, achava-se fatigadíssimo, mas em vez de entregar-se ao descanso que a natureza reclamava, conservava acesa a sua lâmpada até horas mortas da noite, rezando ou estudando, e quando a apagava ficava ainda ajoelhado e de braços abertos sobre o leito, até que um sono irresistível o viesse prostrar.
No fim de algum tempo, Eugênio estava magro, pálido, alquebrado, que mais parecia uma múmia ambulante. Tinha-se de todo amortecido o brilho de seus grandes olhos azuis, e profunda palidez cobria-lhe o rosto magro. O adolescente de dezesseis anos parecia um ancião às bordas da sepultura.
Estes estragos físicos não deixavam também de repercutir de um modo deplorável no moral e na inteligência. O espírito de Eugênio, a princípio exaltado pela forte tensão em que o mantinha aquela luta travada consigo mesmo, por fim extenuado de cansaço, acabou por tornar-se moroso e pesado. Sua terna e delicada sensibilidade embotou-se, ou antes apagou-se no gelo de um beatismo frio, austero e sem arroubos. Essa imaginação tão viva e risonha, que como travessa borboleta esvoaçava entre o céu e a terra, entre as flores da colina, e as nuvens matizadas dos brilhantes horizontes, queimou as asas de ouro na luz da candeia fumacenta do estudo e da oração.
Seu caráter mesmo modificou-se profundamente, esse menino outrora tão benigno, tão complacente e comunicativo, posto que algum tanto retraído e melancólico, foi-se tornando de mais em mais seco e frio, desconfiado e sorumbático. Andava como um fantasma, de cabeça baixa e movimentos compassados e vagarosos. O olhar frouxo e estatelado tinha perdido essa travessa mobilidade, esse fulgor transparente próprios dos verdes anos.
Fatal e deplorável poderio do fanatismo sobre um espírito novel e exaltado, acessível a todas as alucinações!
Para esquecer Margarida era preciso quebrantar o corpo a ponto de o reduzir quase a cadáver, embrutecer o espírito e mirrar o coração e Eugênio não trepidou diante de tão horrível alternativa. À força de trabalhos e insônias, de orações, jejuns e mortificações continuadas, caiu em tal estado de prostração, de atonia física e moral, que embotando-se-lhe de todo a sensibilidade e quase extinto o lume da inteligência, o rapaz ficou como que reduzido a um autômato.
Naquele descalabro geral de todas as impressões vivas, de todas as emoções afetuosas, de toda a crença no amor e na felicidade neste inundo, naturalmente também a imagem de Margarida, arrebatada no comum naufrágio, devia ter-se apagado naquele coração, que lançava a perturbação em sua alma. Era verdade: o anjo luminoso desaparecera de seu espírito, como de um santuário deserto onde a lâmpada se havia apagado, ficando reduzido a uma espelunca tristonha, gélida e sombria, e apenas de longe em longe pairava sobre ele, e lançava-lhe no seio um reflexo pálido como luz de uma estrela afogada entre nuvens.
Eis como uma educação fanática e falseada, abusando de certas predisposições do espírito, lança naquela alma o germe de uma luta íntima e cruel, que fará o tormento de toda, a sua vida e o arrastará talvez à última desgraça, se a misericórdia divina dele não se amercear.
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