CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

O Mendigo Voluntário

Quando Zaratustra se apartou do mais feio dos homens, teve frio, sentiu-se só: tantas coisas geladas e solitárias lhe cruzaram o espírito que até os membros se lhe arrefeceram.

Subindo, porém, cada vez mais por montes e vales, e ao atravessar áridos pedregais, que provavelmente tinham sido noutras épocas leito de um rio impetuoso, sentiu-se de repente mais vivo e animado.

“Que me sucedeu? — perguntou a si mesmo.

— O que quer que seja cálido e vivo me reconforta; deve andar próximo de mim.

Já estou menos só; companheiros e irmãos rondam inconscientemente em torno de mim; o seu quente hálito agita a minha alma”.

Mas quando olhou em roda procurando os consoladores da sua soledade, viu que eram vacas, que estavam umas ao lado das outras numa elevação; fora a proximidade e o bafo desses animais que lhe haviam reanimado o coração. As vacas, entretanto, parecia escutarem atentamente alguém que falasse, e não faziam caso de quem se aproximava.

Já muito perto delas, Zaratustra ouviu sair do centro claramente uma voz de homem, e era visível, pois todas viravam a cabeça para o seu interlocutor.

Então Zaratustra correu para o montículo e dispersou os animais, porque receava houvesse sucedido alguma desgraça a alguém, coisa que dificilmente poderia remediar a compaixão das vacas. Enganava-se, porém; o que viu foi um homem sentado no solo, que parecia exortar os animais a não terem medo dele. Era um homem agradável; um pregador das montanhas, cujos olhos predicavam a própria bondade. “Que procuras aqui?” — exclamou Zaratustra, admirado.

“Que procuro aqui! — respondeu o homem. — O mesmo que tu, curioso! Isto é, a felicidade na terra.

Por isso queria aprender com estas vacas. Que, fica sabendo, há meia manhã que lhes estou falando, e iam-me responder. Por que as espantaste?

Se não tornarmos para trás e não fizermos como as vacas, não poderemos entrar no reino dos céus. Que há uma coisa que deveríamos aprender delas: é ruminar.

E, claro, de que serviria o homem alcançar o mundo inteiro, se não aprendesse uma coisa, se não aprendesse a ruminar?

Não perderia a sua grande aflição.

Essa grande aflição que hoje se chama tédio. Quem não terá hoje o coração, a boca e os olhos cheios de tédio? Também tu. Também tu. Mas olha para estas vacas!”

Assim falou o pregador da montanha; depois virou os olhos para Zaratustra — ponque até então os fixara amorosamente nos animais.

Logo se transformou, porém: — “Com quem estou falando? — exclamou, assustado, saltando do solo.

Este é o homem sem tédio, Zaratustra em pessoa, o que triunfou do grande tédio; são os seus olhos, a sua boca, e o próprio coração de Zaratustra”.

E assim falando beijou as mãos daquele a quem falava, com olhar afetuoso, e em tudo se comportava como uma pessoa a quem cai do céu inopinadamente um precioso dom ou algum tesouro. Entretanto as vacas contemplavam tudo aquilo com admiração.

“Não fales de mim, homem singular e atraente! — respondeu Zaratustra, esquivando-se aos afagos. — Primeiro que tudo falai-me de ti. Não serás tu o mendigo voluntário que noutro tempo repudiou uma grande riqueza?

Não serás aquele que, envergonhado da riqueza e dos ricos, fugiu para junto dos mais pobres a dar-lhes a sua abundância e o seu coração? Mas eles nada disso te aceitaram”.

“Não me aceitaram — disse o mendigo voluntário; já o sabes. Por isso acabei por vir ter com os animais e com estas vacas”.

“Assim aprendeste — interrompeu Zaratustra — que é muito mais difícil dar bem do que aceitar bem; que dar bem é uma arte, é a última e a mais astuta mestria da bondade”.

“Especialmente em nossos dias — respondeu o mendigo voluntário — especialmente hoje que tudo quanto é baixo se ergue altivamente orgulhoso da sua raça; a raça plebéia.

Já deves saber que chegou a hora da grande insurreição da populaça e dos escravos, a funesta insurreição, vasta e lenta, que cresce continuamente.

Agora os pequenos revoltam-se contra todos os benefícios e os dons mesquinhos; acautelam-se os que são demasiados ricos!

Há frascos bojudos que gotejam pouco por estreitos gargalos... a frascos assim é que se quer hoje cortar a cabeça.

Cobiça ansiosa, inveja acerba, vingança reconcentrada, orgulho plebeu; tudo isso me assaltou à cara. Não é já verdade os pobres serem bem-aventurados. O reino do céu está entre as vacas”.

“E por que não entre ricos?” — perguntou tentadoramente Zaratustra, impedindo que as vacas acariciassem com o seu hálito o homem agradável.

“Por que me tentas? — respondeu este. — Tu mesmo o sabes muito melhor que eu.” Que foi que me impeliu para os mais pobres, Zaratustra? Não era a aversão que sentia pelos mais ricos dos nossos? pelos forçados da riqueza que aproveitam os seus lucros em todas as varreduras, com olhos frios e olhares concupiscentes? por essa chusma que exala mau cheiro até o céu? por essa dourada e falsa populaça, cujos ascendentes eram gente de unhas compridas, aves carnívoras, ou trapaceiros, com mulheres complacentes, lascivas e esquecediças, pouco diferente de rameiras?

Populaça acima! Populaça abaixo! Que significam já hoje os “pobres”, os “ricos”! Eu esqueci essa diferença e acabei por fugir para longe, cada vez mais longe, até vir ter com estas vacas”.

Assim falou o homem agradável, e ao pronunciar aquelas palavras respirava ruidosamente, banhado em suor: tanto que as vacas tornaram a admirar-se. Zaratustra, porém, enquanto o homem falava assim duramente, fitava nele os olhos, sorrindo e movendo silenciosamente a cabeça.

“Pregador da montanha, estás-te violentando ao empregar expressões tão duras. A tua boca e os teus olhos não nasceram para tais durezas.

E o teu estômago tampouco, segundo me parece, resistem-lhe essa cólera, esse ódio e essa efervescência. O teu estômago precisa coisas mais brandas: não és carnívoro.

Antes me pareces herbívoro. Talvez mastigues grão. Em todo caso não és feito para os gozos carnívoros, e agrada-te o mel.

“Adivinhaste-me perfeitamente — respondeu o mendigo voluntário, com o coração aliviado. — Agrada-me o mel e também môo grão, porque procurei o que tem bom gosto e purifica o hálito; também uma tarefa diária e uma ocupação para a boca.

Estas vacas de certo foram muito mais longe: inventaram o ruminar e cair no contrário. Assim se livram de todos os pensamentos pesados que incham as entranhas”.

Zaratustra disse: “Pois então deverias ver também os meus animais, a minha águia e a minha serpente que não têm rival na terra.

Olha: aquele é o caminho que conduz à minha caverna: sê meu hóspede por esta noite. E fala com os meus animais da felicidade dos animais... até que eu regresse.

Agora, porém, chama-me apressado para longe de ti um grito de angústia. Também hás de encontrar na minha morada mel fresco, favos de dourado mel de glacial frescura: come-o!

Agora despede-te pressuroso das tuas vacas, homem singular e atraente, embora te custe; pois são os teus melhores amigos e mestres!”

“À exceção de um só, a quem prefiro — respondeu o mendigo voluntário. — Tu és bom, e ainda melhor que uma vaca, Zaratustra!”

“Foge daqui! Vil adulador! exclamou, colérico, Zaratustra. — Por que me lisonjeias com tal mel de elogios e de lisonjas?”

“Foge, foge para longe de mim!” gritou outra vez, brandindo o bordão na direção do mendigo adulador. Este, porém, fugiu com presteza.

Friedrich Nietzsche

Submited by

sábado, abril 11, 2009 - 00:06

Poesia Consagrada :

No votes yet

Nietzsche

imagem de Nietzsche
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 14 anos 16 semanas
Membro desde: 10/12/2008
Conteúdos:
Pontos: 351

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of Nietzsche

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Fotos/ - Nietzsche 0 1.630 11/23/2010 - 23:36 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Origem de Assim falou Zaratrustra 0 619 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Ao Meio Dia 0 1.149 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia A Saudação 0 655 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Homem Superior 0 934 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Canto da Melancolia 0 638 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Da Ciência 0 818 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Entre as Filhas do Deserto 0 918 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Deserto Cresce, ai Daquele que Oculta Desertos! 0 955 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Despertar 0 705 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia A Festa do Burro 0 883 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Canto de Embriaguez 0 763 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Sinal 0 861 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Outro Canto do Baile 0 781 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Os Sete Selos 0 1.252 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia A Oferta do Mel 0 736 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Grito de Angústia 0 1.165 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Conversação com os Reis 0 1.144 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia A Sanguessuga 0 1.069 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Encantador 0 850 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Fora de Serviço 0 993 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Homem mais Feio 0 638 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia O Mendigo Voluntário 0 741 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia A Sombra 0 869 11/19/2010 - 15:49 Português
Poesia Consagrada/Filosofia Antes do Nascer do Sol 0 941 11/19/2010 - 15:49 Português