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Viagens na Minha Terra - XXV
O excesso de felicidade que aterra e confunde também.— Pasmosa contradição da nossa natureza.—- De como os olhos verdes de Joaninha se enturvaram e perderam todo o brilho. — Que o coração da mulher que ama, sempre adivinha certo.
Carlos tinha a mão de Joaninha apertada na sua: e os olhos úmidos de lágrimas cravados nos olhos dela, de cujo verde transparente e diáfano saíam raios de inefável ternura.
Dizer tudo o que ele sentia é impossível tão encontrados lhe andavam os pensamentos, em tão confuso tumulto se lhe alvorotavam todos os sentidos.
Por muito tempo não proferiram palavra, nem um nem outro; mas falaram assim longos discursos.
Enfim, Joaninha voltou à sua primeira insistência e disse para o primo:
— Olha, Carlos, amanhã é sexta-feira. Já te disse, vem Frei Dinis:
quando haja a menor dificuldade do comandante, a ele não lhe recusa nada...
— Por quanto há no céu, Joaninha, pela tua vida, pela de nossa avó, nem uma palavra ao frade da minha estada aqui! A ele, oh! a ele jurei eu não tornar a ver. E se minha avó...
— Basta: não lhe direi nada. Mas à nossa avó quando lho hei de dizer, e quando hás de tu ir vê-la?
— Por ora não: preciso licença de Lisboa, ou do quartel-general quando menos, para fazer uma coisa que todas as leis da guerra proíbem, que nas atuais circunstâncias e em semelhante guerra ainda é mais defesa. E sem isso — tu bem sabes que as minhas resoluções não se mudam — sem isso não o faço. Em todo o caso, que Frei Dinis nem sonhe!...
— E quanto tempo, quantos dias se hão de passar?
— Eu sei? oito, quinze dias talvez, talvez mais.
— E a minha pobre avó, coitadinha! a morrer de saudades...
— Consola-a tu, Joaninha: diz-lhe que tiveste novas minhas, que estou bom, que me não falta nada, que tenho esperanças de vos ver muito cedo.
— E eu... eu posso, eu hei de ver-te todos os dias: não, Carlos?
— Amanhã é sexta-feira...
— Amanhã é o dia negro... nem eu queria: amanhã não pode ser, bem sei. Mas, tirado amanhã, meu Carlos, oh! todos os dias!
— Sim, querido anjo, sim.
— Prometes?
— Juro-to.
— Suceda o que suceder?
— Suceda o que... Só há uma cousa que... Mas essa não... não é possível.
— O que é, Carlos? Que pode haver, que pode suceder que te impeça de...?
Carlos estremeceu... hesitou, corou, fez-se pálido... quis dizer-lhe a verdade e não ousou...
Por quê... E que verdade era essa? Não a direi eu, já que ele a não disse: fiel e discreto historiador, imitarei a discrição do meu herói.
Pois era discrição a dele?
Não... em verdade, era outra coisa.
Era um pensamento reservado?
Não.
Era tenção má, engano premeditado, era?...
Não, também não,
O que era pois?
Era a dúvida, era a fraqueza, era a vaidade, a mentira congenial e obrigada, a necessária falsidade do homem social.
Carlos mentiu e disse:
- Só se mo proibirem expressamente... os meus chefes.
Mas não era isso o que ele receava; não era esse aquele motivo único e superior que ele temia pudesse vir um dia de repente cortar as doces relações de conveniência a que tão prestes se habituara, que já lhe pareciam parte necessária, indispensável na sua vida. Não era, não; e Carlos tinha mentido...
Joaninha olhou para ele fixa... Carlos corou de novo. Ela fez-se pálida... daí corou também.
— Carlos, tu não és capaz de mentir...?
— Joaninha!
— Tu és o meu Carlos... tu queres-me como me querias dantes...?
— Sou... oh! sou, E amo-te...
— Como dantes? Mais.
— Pois olha, Carlos: eu nunca amei, nunca hei de amar a nenhum homem senão a ti.
— Joana!
— Carlos!
Iam a cair nos braços um do outro... A singela confissão da inocência ia ser aceita por quem e como, santo Deus! Aquela palavra de oiro, aquela doce palavra que tanto custa a pronunciar à mulher menos arteira; que adivinhada, sabida, ouvida há muito pelo coração, dita mil vezes com os olhos, nenhum homem descansa nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade, enquanto a não ouve proferir pelos lábios - essa palavra celeste que explica o passado, que responde do futuro, que é a última e irrevogável sentença de um longo pleito de ansiedades, de incertezas e de sustos - essa final e fatal palavra amo-te, Joaninha a pronunciara tão naturalmente, tão sincera, tão sem dificuldades nem hesitações, como se aquele fosse — e era decerto — como se aquele tivesse sido sempre o pensamento único, a idéia constante e habitual de sua vida.
O excesso da felicidade aterra e confunde também. Um momento antes, Carlos dera a sua vida por ouvir aquela palavra... um momento depois — ó pasmosa contradição de nossa dúplice natureza! um momento depois dera a vida pela não ter ouvido. No primeiro instante ia lançar-se nos braços da inocente que lhos abria num santo êxtase do mais apaixonado amor; no segundo, tremeu e teve horror da sua felicidade.
— Joana — exclamou ele — Joana querida, sabes tu se eu mereço... sabes tu se deves?...
— Sei. Desde que me entendo, não pensei noutra coisa; desde que daqui foste, comecei a entender o que pensava... disse-o à minha avó, e ela...
— E ela?..
— Ela abençoou-me, chamou-me a sua querida filha, abraçou-me. beijou-me, e disse-me que aquela era a primeira hora de felicidade e de alegria que há muitos anos tinha tido.
Carlos não respondeu nada e olhou para Joaninha com uma indizível expressão de afeto e de tristeza. Os raios de alegria que resplandeciam naquele semblante — agora belo de toda a beleza com que um verdadeiro amor ilumina as mais desgraciosas feições — os raios dessa alegria começaram a amortecer, a apagar-se. A lúcida transparência daqueles olhos verdes turvou-se: nem a clara luz da água-marinha, nem o brilho fundo da esmeralda resplandecia já neles; tinham o lustro baço e morto, o polido mate e silicioso de uma dessas pedras sem água nem brilho que a arte antiga engastava nos colares de suas estátuas.
— Adeus, Joana! — disse Carlos perturbado e confuso.
— Adeus, Carlos! — respondeu ela maquinalmente.
— Até depois de amanhã, Joana.
— Pois sim.
— Depois de amanhã te direi...
— Não digas.
— Por quê?
— Porque é escusado: já sei tudo.
— Sabes!
— Sei.
— O quê?
— O que tu não tens ânimo para me dizer, Carlos: mas que o meu coração adivinhou. Tu não me amas, Carlos.
— Não te amo! eu!... Santo Deus, eu não a amo....
— Não. Tu amas outra mulher.
— Eu! Joana, oh! se tu soubesses...
— Sei tudo.
— Não sabes.
— Sei; amas outra mulher, outra mulher que te ama, que tu não podes, que tu não deves abandonar, e que eu...
— Tu?
— Eu sei que é bela, prendada, cheia de graças e de encantos, porque... porque tu, meu Carlos, porque o teu amor não era para se dar por menos.
— Joana, Joaninha!
— Não digas nada, não me digas nada hoje... hoje sobretudo, não me digas nada. Amanhã...
— Amanhã é sexta-feira.
— Inda bem! terei mais tempo para refletir, para considerar antes de tornar a ver-te. Adeus, Carlos!
— Uma palavra só, Joana. Cuidas que sou capaz de te enganar?
— Não; estou certa que não.
— Até amanhã... até depois de amanhã.
— Adeus!
Abraçaram-se, e desta vez froixamente; beijaram-se de um ósculo tímido e recatado... os beiços de ambos estavam frios, as mãos trêmulas; e o coração comprimido batia, batia-lhes tão forte que se ouvia.
Retirou-se cada um por seu lado. A noite estava pura e serena como na véspera, as estrelas luziam no céu azul com o mesmo brilho; o silêncio, a majestade, a beleza toda da natureza era a mesma... só eles eram outros... outros, tão outros e diferentes do que foram!
Tinham-se dado cuidadosamente as providências; ambos chegaram, sem nenhum acidente, ao seu destino.
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