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Ritual

*
A água fria no rosto faz te voltar a alma. À meia-vista, o primeiro olhar refletido no espelho do banheiro, enevoado do choque brutal entre a luz e a água e a retina, é também o momento da confirmação de si - você e sua imagem. As duas mãos em concha resgatam o queixo, espalham água por todo o rosto, sobem a franja e moldam a cabeleira úmida. Dois olhos vivos. Você se diz bom-dia e sorri para você maliciosamente, tão certo de que será. Concorda e chega quase a se dar um beijo, mas conhecedor de sua vaidade, entende que é muito cedo para se estar cheio de si e finge casualidade no gesto de observar, com cautela, o carvão prateado nos olhos, o marrom-escarlate da pele que envelhece com vitalidade e encerra na face um provocante mistério. Escova os dentes, incrivelmente mais brancos, e retorna à alcova. Mais que ninguém, sabe o quão delicioso é ver uma travessa colorida de frutas, fatias de queijo branco, três tipos de pães e suco de melancia. Na cama você vê a mesa posta. Agradece a você por ter despertado um pouco mais cedo e te preparado o café. Senta-se e desfruta com cuidado cada alimento. É capaz de sentir a pele se nutrir. O corpo responde e te faz respirar fundo, sentir o ar da manhã preencher de oxigênio célula por célula. Agradece-se mais uma vez por estar ali com você, recebendo o cuidado que merece e gosta de se dar todas as manhãs. Disfarça e tenta falar qualquer coisa sobre o que acaba de ouvir no rádio, mas não consegue: sem armas, confessa que se ama.
* *
O corpo ornado com destreza vagueia confiante no algodão que cobre o peito. Procura incessantemente o equilíbrio das cores, a beleza simétrica da forma forjada na pele tatuada, no couro dos pés, nas mechas discretas sobre o cabelo ondulante de Apolo. O anel dourado, o brilhante na ponta da orelha e a prata da corrente consumam no espelho a imagem perfeita que cravará na memória por todo o dia. Despede-se de si com uma ponta de saudade pressentida. Atravessa as ruas como quem voa. Os pés implacáveis moldam o chão à sua gravidade. Os braços rijos passeiam leves e cortam o ar com sagacidade. Num gesto de extrema compaixão, você sorri: afago gratuito que se deixa doar a todos. Os risos te retornam vivos e sinceros. É capaz de perder horas do dia ouvindo estórias de um desconhecido. É educado, amigo, leal e espirituoso. A ironia fina no canto dos lábios lhe dá charme e agudeza. Humor sem reservas, ombro exposto e peito aberto, palavra certa, silêncio exato. Tem os suspiros das idosas, admiração dos velhos, respeito dos homens e adoração das mulheres. Se pudessem, todos te levariam para cama. Guru dos Recursos Humanos, trabalha por amor ao seu trabalho. Exemplo ontológico da superação, invenção e criatividade. Não importa o perfil na revista, seu rosto está sempre a brilhar com a inigualável paixão que todos perseguem em ti. Não há mais nada a conquistar. Restou-lhe a pura louvação de todas as horas, o gozo consumado na consagração de todos os segundos, o sabor majestoso de se dar e se ter por inteiro. Você se divinizou: é seu oráculo, sacerdote e seu servo.
* * *
Por mais afável que seja a companhia do mundo, compensador mesmo é estar com você. Prepara um drinque gelado e a si brinda com votos de fraterno amor. Degusta a bebida ao preparar o jantar costumeiramente especial. Tem a alquimia peculiar de combinar os temperos, recortar os alimentos, dispô-los na mesa, colorir o prato. Senta-se com você e desfruta dos mais inusitados sabores. Altruísta por dom, conversa feliz consigo. Descarta o prosaico, narra com leveza os absolutos do dia. É capaz de abstrair todo o existir numa conversa descompromissada com você. É livre e sarcástico. Também sabe ser irônico, cruel e se condoer com a miséria primordial de todos. A arte, a psicologia social e biopolítica dos homens, o instinto espiritual das coisas sobre o mundo: não há abismo que seus olhos não perscrutem. Não importa a verdade, que é toda de qualquer um, prefere o paradoxo profundo de um signo-imagem qualquer, a beleza crua das coisas despidas de si mesmas. Renova as idéias sempre assim, respondendo às próprias provocações, reformulando as teses dialeticamente expostas num debate aberto consigo mesmo. Regozija-se à mesa: você é a família abençoada que construiu e seu próprio leito.
* * * *
A água quente na cabeça faz te esvair a alma. No vapor da sauna particular a taça de vinho embaçada revela que a noite adentrou pelos poros. Você é todo embriaguez. A taça se renova: é puro sangue, borbulhando nas veias como magma irrompido no coração. O espelho embaçado te convida. Você passa a mão, revelando nas manchas dos dedos no vidro a sua imagem nua e disforme, imersa na névoa quente. Você se beija com fervor, dançando os lábios sobre a face revelada na saliva. Arrepia-se ao sentir o gosto de sua própria língua no rosto refletido e implora voluptuosamente a você que não pare, não pare de te beijar. Oferece a você o sangue ardente de Dionísio. Lança no espelho o que sobrara na taça e por sobre a cabeça derrama a garrafa francesa com todos os poetas malditos contidos dentro dela. Um verso de Mallarmé salta de sua boca enquanto você se senta por sobre a mão esquerda, fazendo-a dormir, dormir, até não mais senti-la. A outra mão de Narciso percorre todo o teu corpo, desfiando nos pontos de erupção um enovelado molho de cadeados, tatuando com as unhas uma tela de Dali no peito. Você retira sua mão formigante e agarra seu imponente membro com a impressão de que outra pessoa o possui. O mundo gira dentro e fora de si e todos os deuses vem te fazer amor.
* * * * *
As duas mãos em concha resgatam o queixo. Atravessa as ruas como quem voa. Senta-se com você e desfruta dos mais inusitados sabores. O espelho embaçado te convida. Dois olhos vivos. Os pés implacáveis moldam o chão à tua gravidade. Altruísta por dom, conversa feliz consigo. Oferece a você o sangue ardente de Dionísio. É capaz de sentir a pele se nutrir. Num gesto de extrema compaixão, você sorri. Não há abismo que seus olhos não perscrutem. Um verso de Mallarmé salta de sua boca. Disfarça e tenta falar qualquer coisa. Despede-se de si com uma ponta de saudade pressentida. Não importa a verdade, que é toda de qualquer um, o mundo gira dentro e fora de si até que a água fria no rosto faz te voltar a alma.
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sexta-feira, fevereiro 11, 2011 - 14:15

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