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Contrabandista
Sou poeta.
Um contrabandista de sonhos,
Atravesso a salto
Todas as fronteiras existenciais.
Montado num cometa
Tomo de assalto
Os castelos que, risonhos
Desde os tempos imemoriais,
Estão no topo dos montes,
Em todos os horizontes
Deste mundo que é meu
E teu,
De todos nós
Sem excepção.
Todos tombam ao som
Da voz
Do meu coração.
Nada há de mau ou bom
Em tudo isto:
Nem a cruz de Cristo
No peito da minha veste;
Nem a minha montaria
A que chamo peste;
Nem a sanguínea ria
Que corre por ali abaixo;
Nem sequer o velho capacho
Com o dizer perdido:
“Seja bem vindo
Quem
Vier por bem!”
Mas eu sou contrabandista
E nos meus sacos,
Pelo que diz a lista,
Levo ilusões,
Paixões,
Sentimentos vãos,
Assassinas mãos
E dois anjos velhacos
Que há muito tombaram do céu,
Para dentro do saco meu.
Sim, sou contrabandista,
Mas quando passo em revista
O que no meu saco trago,
Logo percebo
Que sou mancebo
E todos, com um olhar vago,
Me dizem que meu contrabando
Não lhes serve para nada,
Pois todos têm entravada
Em si
A mesma ilusão
E dor no coração
Que em mim
Carrego.
“venha outro dia
Quando
For de alegria
A nossa saudade,
Quando
A realidade
Não for etérea,
Mas real,
Como o dom imortal,
Que um jovem mortal
Transcreve para o papel;
Quando
For verdadeira
A alma derradeira
Que torna possível
O impossível,
Visível o invisível,
Tocável o intocável;
Mas hoje não,
Que temos outras tarefas
Na mão.
Temos outras tarefas…”
Mas eu, poeta,
Flagelado fui pela seta,
Vivendo fugido,
Perseguido
De e por mim próprio,
Numa viela secreta,
Nas trevas e ao frio,
Procuro refúgio
De mim
E o fim,
Já tão próximo,
Leva-me ao jardim
Ultimo,
Onde a vida desaparece,
Como uma antiga prece,
Se perde na memória
De quem reza
Na certeza
E na tristeza
De encontrar a glória,
Duma vã vitória,
No sangue dos inocentes
Em guilhotinadas mentes,
Por um severo tirano,
Que ao poeta insano,
Rasga a pele e as vestes,
Deixando as pestes
Tomarem conta
Do corpo velho,
Que ainda conta
Histórias do Evangelho,
Da carochinha,
Do capuchinho vermelho
E da má rainha,
Aquela que deu a maçã,
Naquela leda manhã
E fez adormecer a bela
Donzela…
Sou contrabandista!
E não tenho nenhuma pista
De como aqui vim parar.
Já não tenho fronteiras para saltar,
Além daquelas que eu crio
Quando, numa folha de papel,
Descrevo o que sinto,
Letras na folha pinto,
Para depois ler para mim próprio.
Pois jamais alguém
Quererá ler os sonhos do impossível,
Escritos por quem
Vive em si fechado,
Censurado,
Aprisionado,
Sem fuga possível.
E assim sonho ser
Um semeador
A colher
Apenas frutos da dor
E dos sentimentos perdidos,
Por mim outrora sentidos,
Mas hoje tão distantes…
Sonho ter outros semblantes,
Ser outra pessoa,
Diferente de mim.
Sonho ser outra pessoa,
A quem a dor tanto magoa.
Mas quando acordo vejo a realidade,
E percebo que não passo
Dum contrabandista
De sonhos e saudade,
Perdido no tempo-espaço
Da minha existência.
Sou um cientista
Sem ciência,
Nem experiência;
Um filósofo que não pensa,
Mas não há ninguém que me convença
A ser eu próprio
Outra vez,
A esquecer o letrado rio,
Regressando a mim
Outra vez…
Perco-me neste jardim,
Olhando as flores
Humanas e naturais,
Suspirando vezes sem fim,
Dizendo que nunca mais
Viverei seguindo valores
E ideias,
Que não os meus.
E quando chegar a hora do adeus
Pedirei a uma létide
Que me escreva na lápide:
“Aqui jaz
Um contrabandista
De sonhos e saudade,
Que nunca encontrou a paz,
Nem tinha a mínima pista
Que se o que dizia era verdade!”
26.03.1996
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Comentários
Contrabandista
Lindo texto mesmo longo, gostei!
Poderia ter comentado antes, mas dado a sua extensão, deixei para os últimos comentários!
Meus parabéns,
MarneDulinski