CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

Infância (Paulo Mendes Campos)

Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa, os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sangüínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora, flor e hora, passiflora,

Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte, consoladora dos aflitos,
Rainha do céu, torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza nenhuma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.

O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato, no be-bop
Do pato, na romã banal, na trava
Do caju, no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.

A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida! E ria só.

Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho.

Paulo Mendes Campos, (1922-1991), poeta, cronista e tradutor mineiro.
 In: Melhores Poemas. Seleção de Guilhermino César
 Editora Global, 3a. ed., São Paulo, 2000 

.

Submited by

segunda-feira, abril 23, 2012 - 09:57

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

imagem de AjAraujo
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 6 anos 29 semanas
Membro desde: 10/29/2009
Conteúdos:
Pontos: 15584

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of AjAraujo

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Poesia/Pensamentos Todo problema é, em essência... (Hans Jonas) 0 4.240 11/09/2012 - 10:31 Português
Poesia/Intervenção Eu não Quero o Presente, Quero a Realidade (Fernando Pessoa) 1 4.613 11/05/2012 - 19:48 Português
Poesia/Acrósticos Estrada real: caminho dourado da colônia 0 2.464 11/04/2012 - 10:17 Português
Poesia/Meditação A vida segue seu curso 0 1.740 11/04/2012 - 10:02 Português
Videos/Música Guilty (Barbra Streisand & Barry Gibb - Bee Gees) 1 9.205 10/09/2012 - 09:58 inglês
Poesia/Intervenção De tudo quanto fui 0 3.878 09/26/2012 - 00:27 Português
Poesia/Poetrix Sonho de criança 0 2.839 09/26/2012 - 00:27 Português
Poesia/Haikai Monte das Oliveiras 0 2.253 09/26/2012 - 00:25 Português
Poesia/Intervenção Há uma urgência 0 3.779 09/22/2012 - 13:30 Português
Poesia/Alegria A benção das folhas 0 3.392 09/22/2012 - 13:29 Português
Poesia/Meditação Quem chora por Teus filhos? 0 2.945 09/22/2012 - 13:24 Português
Poesia/Intervenção Quando estou só... e sem rumo! 0 2.182 09/02/2012 - 19:16 Português
Poesia/Meditação Temores 0 2.036 09/02/2012 - 19:14 Português
Poesia/Poetrix Tercetos de Vida - I 0 2.763 09/02/2012 - 19:12 Português
Poesia/Poetrix Mouro 0 3.264 08/01/2012 - 11:08 Português
Poesia/Poetrix A montanha e o peregrino 0 2.666 08/01/2012 - 11:07 Português
Poesia/Poetrix Tragédia olímpica 0 2.787 08/01/2012 - 11:07 Português
Poesia/Acrósticos Sorrir 2 2.496 07/14/2012 - 22:27 Português
Poesia/Meditação O primeiro passo em busca da felicidade 1 3.402 07/13/2012 - 22:43 Português
Poesia/Meditação Curta passagem 0 1 07/13/2012 - 10:41 Português
Poesia/Intervenção A trilha do novo caminho 2 2.554 07/13/2012 - 02:16 Português
Poesia/Pensamentos Ausência & Insônia (Caderno de Pensamentos: II) 0 2.048 07/11/2012 - 00:21 Português
Poesia/Alegria Canção de despertar 0 1.959 07/11/2012 - 00:21 Português
Poesia/Pensamentos Utopia & Cotovia (Caderno de Pensamentos: I) 0 3.538 07/11/2012 - 00:19 Português
Poesia/Intervenção A chegada da caixa de abelhas (Sylvia Plath) 1 5.224 07/09/2012 - 07:43 Português