Infância Perdida

Foi pela janela desse quarto que a noite começou a derramar as primeiras pinceladas na caixinha de música outrora esquecida pelos aglomerados de pó da infância sumida.

Foi pela janela desse quarto que te observaste a brotar como uma ténue flor pelo seio primaveril e saíste dançando pelo soalho num sôfrego constante. Estavam todos reunidos. Aqueles amigos de longa data, aqueles amigos esquecidos, aqueles amigos perdidos pelo abismo florido do passado.

Foi pela janela desse quarto que penetraste naquele vestido vermelho, aquele vermelho do vinho com que te embriagavas enquanto desenhavas cada linha dos teus lábios, aquele vermelho do fósforo com que ateaste os papéis das memórias que escrevias.

Estavam todos reunidos. Aqueles amigos de longa data, aqueles amigos esquecidos, aqueles amigos perdidos. E tu dançavas. Dançavas à beira do precipício, esvaziando-te.

Foi pela janela desse quarto que voltaste a ser aquela menina de rosto pintado incandescente, de olhar tímido e inseguro que esperava encenar um amor, um amor que nunca chegava, um amor que teimava em não voltar. Assim te restava o ecoar do cântico dos pássaros que te devolviam a esperança que procuravas obsessivamente pelos rasgos de pele.

Foi pela janela desse quarto que lamentaste o amanhecer a romper. Delicadamente, em passos sóbrios, regressaste à caixinha de música num silêncio quase perfeito. Os eternos amigos voltaram a ser objectos inanimados tombados ao canto daquela parede onde costumavas brilhar em frente ao espelho num espaço indefinido.

Foi pela janela desse quarto que fechaste os olhos e sentiste o peso do sorriso num rosto recolhido pelo tempo.

Num silêncio devolvendo-se por dentro de outro silêncio.

E voltas-te a recordar aquela infância perdida…