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Adversidades _ Parte I (baseado em fatos reais)
Thais era uma bela jovem, estava na flor da idade, tinha por volta de seus 14 anos, cheia de sonhos, idéias e desejos. Uma menina extrovertida e com muitos amigos. Morena, longos cabelos castanhos cacheados, belos olhos negros, estatura mediana. Criada em um bairro nobre da zona norte do Rio de Janeiro com seus pais. Tinha um sorriso lindo! Filha única, sempre esteve muito presente junto a sua família.
Jonas, o pai, homem magro, alto, moreno, belos bigodes, trabalhava em indústria petrolífera, em função insalubre e perigosa, mas que lhes proporcionava conforto e uma vida tranqüila. Catarina, a mãe, desde que Thais nasceu, optou por parar de trabalhar e viver a beleza da maternidade. Filha de italianos, sempre teve sua “mama” e seu “papa” por perto... Eram chamados por Thais, carinhosamente, de “nono” e “nona”. De fato, um simpático casal italiano que chegou ao Brasil fugido da Guerra. Ainda posso sentir o cheiro do molho de tomate que cobria a pasta aos domingos...
A vida da família transcorria em perfeita harmonia, até que, aproximadamente na década de 80, Jonas, ao voltar de seu dia de trabalho, adormeceu ao volante e sofreu um grave acidente automobilístico. Seu carro foi parar embaixo de uma carreta. Foram momentos muito dolorosos. Catarina, por sua vez, estranhando a demora do marido, começou a procurá-lo. Depois de algum tempo de angústia, localizou-o num hospital do governo em cidade próxima. Ao chegar à unidade hospitalar deparou-se com um dos piores momentos de sua vida, pessoas largadas nos corredores, um cheiro de éter misturado ao suor e a ao sangue, um cheiro indescritível: o cheiro da dor... Avistou Jonas em uma maca coberto de sangue e completamente abandonado a própria sorte. A mulher desesperada teve uma crise histérica e começou a fazer um escândalo na tentativa de obter atendimento para seu marido. Deu certo. Talvez naquela instituição o atendimento só funcionasse “no grito”.
Os médicos informaram à esposa que o estado era muito grave e que inspirava cuidados. Somente neste momento, ela lembrou-se de avisar as cunhadas, irmãs de Jonas. Ele era o único filho homem de quatro irmãos: Rosa, Lene, Maria e Jonas. Lene chegou rapidamente acompanhada de seu marido, Carlos. Todos estavam atônitos. Não sabiam exatamente o que fazer, então, Carlos, tomou as rédeas e providenciou a transferência de hospital. O médico informou a Catarina que a transferência poderia ser concretizada, mas, não se responsabilizariam se o paciente não suportasse a mesma. Ela viu-se diante de uma difícil decisão. Se mantivesse Jonas onde estava não teria o tratamento necessário e poderia vir a falecer. Se optasse pela transferência para local mais bem equipado, assumiria a responsabilidade pelo óbito, se o mesmo ocorresse. Ficou muito atordoada e resolveu dividir a decisão com a família. Em consenso optaram pela transferência. Havia se passado algumas horas do acidente, mas para a família parecia uma eternidade... O cheiro daquele hospital dava náuseas.
Já no novo local a família foi informada que o mesmo iria imediatamente para a cirurgia para tentarem salvar parte de sua perna esquerda que havia ficado presa nas ferragens, sofrendo sérios danos. A cirurgia foi muito longa, as horas pareciam não passar. Catarina, Thais e a família estavam apreensivas na sala de espera do hospital. Mãos trêmulas, mãe e filha andavam abraçadas de um lado para o outro. Em vão, Lene tentava alimentá-las com um pouco de café e biscoitos.
Já era tarde da noite quando o médico surge na pequena recepção. Fizemos o que foi possível, mas...o ideal seria amputarmos o membro do joelho para baixo. As palavras do médico pareciam lanças afiadas e diretamente lançadas no coração de Catarina e Thais cuidadosamente amparadas por Lene e Carlos. Fez-se silêncio. Um longo suspiro e, o médico prosseguiu: é preciso aguardar os próximos três dias para verificarmos como o organismo irá reagir. É melhor todos irem descansar e voltarem pela manhã.
Catarina disse que não sairia dali por nada sem antes ter absoluta certeza do estado de Jonas. Impossível convencê-la em ir para casa. Estava abatida, sofrida, cansada e imensamente preocupada, mas, naquele momento, não era ela quem importava... A família conseguiu, ao menos, levar Thais para descansar um pouco.
Ela permaneceu ali, na sala de espera, recostada em uma desconfortável cadeira, inalando o cheiro de éter (típico de hospitais), seus pensamentos estavam confusos, havia perdido o chão, não sabia mais a cor do céu, lágrimas discretas corriam-lhe a face clara e desenhavam pingos de chuva em sua blusa lilás. Rememorava toda a sua vida ao lado de Jonas, o namoro, o noivado, o casamento, a chegada de Thais, dias tão coloridos... Como a vida poderia lhe causar tanta dor? Teve vontade de fumar. Levantou-se morosamente, seu corpo magro parecia pesar toneladas. Abriu a porta e saiu, o céu estava estrelado e uma bela lua iluminava o jardim. Acendeu o cigarro e começou a tragá-lo... O odor da brasa queimando o fumo lhe acalmava a alma, olhar fixo na fumaça que delicadamente expelia. Não se conformava com o ocorrido, mas, sabia que precisava ser forte. Decidiu que a partir daquele momento não iria esmorecer. Foi uma noite escura, por mais que a lua iluminasse o jardim... Catarina não percebia a luz. Aquela noite nunca foi tão longa!
Passaram-se os três dias e Jonas reagia aos poucos, ainda não tinha consciência do ocorrido, mantinham-no dopado para minimizar o sofrimento. A esposa não saía do hospital e sempre que a permitiam aproximava-se carinhosamente do marido, beijava-lhe a testa e murmurava em seu ouvido que ela estava ali. O barulho dos equipamentos médicos martelava dia e noite em sua cabeça... Foram dias e dias de sofrimento, angústia e espera. Thais que estava estudando, foi incentivada pela mãe e por toda a família a seguir com sua rotina, prometendo-lhe que sempre que houvesse visita a levariam. A “nona” e o “nono” foram incumbidos de cuidar dela.
Passadas algumas semanas a família optou por nova transferência hospitalar de forma que Jonas ficasse mais próximo de sua residência e Catarina pudesse ter oportunidade de ir e vir com mais facilidade. Neste momento, ele já tinha ciência do acidente e suas conseqüências. Estava revoltado e não aceitava a situação de sua perna. Optaram por não amputar. Era extremamente arredio e chegava a ser grosseiro com o corpo de enfermagem, os médicos e até mesmo com a incansável companheira. O tratamento era de fato muito doloroso, não só para Jonas, mas para toda a família. Sua internação durou cerca de seis meses, e o fato da ferida em sua perna não cicatrizar como deveria, e, expelir um odor desagradável, aliada a sua rebeldia, contribuíram para que a mesma adquirisse uma infecção bacteriana grave, de difícil tratamento. Catarina era firme em seu propósito de estar ao lado do marido, mas, estava imensamente desgastada e abatida com toda a situação, ao mesmo tempo, que, preocupava-se com Thais, ainda tão jovem. Decidiu que a filha deveria ser poupada ao máximo, ela precisava seguir a vidinha que estava apenas começando.
Em função da infecção de Jonas, os médicos acharam prudente que ele continuasse o tratamento em casa, desde que estivesse acompanhado todo o tempo por enfermeiros especializados. Para Catarina parecia uma benção, pois ficaria muito mais a vontade em sua própria casa, mesmo com a presença de enfermeiros. Neste instante, após muito tempo, lembrou de agradecer a Deus pela vida e pela assistência médica que a empresa proporcionava a seu marido.
Tiveram que adaptar a casa e a vida as novas condições de Jonas. O escritório virou um novo quarto, com cama hospitalar e todos os equipamentos necessários ao bem estar dele. O entra e sai de enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas era outra rotina que precisava de adaptações. O ar daquele lar também sofreu ajustes, não era mais de jasmim, agora tinha um aroma que lembrava o cheiro de éter...Não tinha mais um arco-íris sobre a porta, as cores iam e vinham, mas, o cinza, permanecia.
Aos poucos foram retomando a vida, a esposa procurava relevar as crises do marido que não queria ver ninguém e achava-se imensamente deprimido. Ela precisava manter-se firme para que Thais encontrasse coragem e ânimo para não esmorecer. Talvez fosse a única que ainda tinha alguma cor “viva” dentro de si....
Filha e pai eram muito apegados e, nos momentos de crise, era ela quem conseguia acalmar o coração dolorido e frágil dele. Sentava-se ao lado da cama, fazia-lhe cafuné, cantarolava, contava piadas e situações de seu dia-a-dia. Era impressionante como o semblante de Jonas mudava, sorria, achava graça e, talvez, até esquecesse por um período sua real condição. Nestas horas o arco-íris parecia renascer naquele lar... Nestes pequenos momentos a esposa conseguia cuidar e lembrar um pouco de si mesma. Eram seus minutos de paz!
O tempo foi passando... Passaram-se meses e a vida foi tomando o seu ritmo. Jonas prosseguia lentamente, era um trabalho árduo para todos.
Um dia, Thais chega da escola eufórica chamando pelos pais, entra no quarto de Jonas, pula na cama ao seu lado, beija-lhe o rosto, Catarina vem da cozinha e Thais a chama para perto deles, dando-lhe um beijo na face.
- Vocês não sabem da novidade: todo o pessoal da escola vai, no sábado, a uma nova danceteria no Alto da Boa Vista, vamos comemorar o aniversário da Natália (sua melhor amiga), não é o máximo?
Os pais se entreolharam. Catarina não dirigia e Jonas não poderia levar ou buscar Thais, mas ao mesmo tempo, já fazia meses que não a viam tão empolgada, era jovem, tinha o direito de se divertir. Thais, que era muito esperta e tinha uma imensa afinidade com ambos, logo percebeu o ar de preocupação e foi dizendo:
- Gente! Sou uma adolescente, minhas amigas saem sozinhas, os pais não ficam levando e buscando sempre. Iremos todos juntos, somos um grupo de sete: eu, Fred, Marcos, Paula, Renata, Luciana e Jorge. Vocês conhecem todos, qual o problema?
- Filha! - disse a mãe - a questão não é você ou seus amigos, a preocupação é a violência na cidade, os diversos perigos que vocês ficam expostos e, além do mais, nós sempre levamos e buscamos você em todas as festas.
- Ora mamãe, isto era em outras épocas, a situação agora é diferente. Não saio há tanto tempo. Eu gostaria muito de ir com a turma, deixa, deixa...
Thais dirigiu um olhar extremamente “pedinte” aos pais, juntando as mãos como quem vai rezar, direcionou o olhar para o pai, seu maior cúmplice suplicando-lhe apoio. A mãe ainda zelosa questiona:
- E como vocês pretendem ir e voltar? De táxi?
- Mãe! Claro que não! Vamos todos juntos! Iremos e voltaremos de ônibus, não são nem 15 minutos de trajeto... Não há perigo...
- Cath (era assim que Jonas chamava a esposa), a deixa ir... Nós também já fomos jovens. E dá uma ligeira piscadinha de olho para a menina.
_ Mãe?!
- Bem, não estou nem um pouco tranqüila com esta situação, preferia que vocês fossem e voltassem de carro, mas, estou vendo que sou voto perdido...
- Oba! Oba! Eu sabia! Obrigada! Vai ser o máximo! Amo muito vocês!
A garota pulava, beijava e abraçava a ambos com uma felicidade indescritível. Além de ser a primeira vez que iria sair após o acidente de seu pai, era a primeira vez que iria por ela mesma, apenas com seus amigos... Ela estava radiante..
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Comentários
Re: Adversidades _ Parte I (baseado em fatos reais)
Flavia adoro o humanismo e realismo q tem cada personagem tua, estabelece-se logo um elo entre o leitor e cada personagem, visualizamos os sorrisos, os medos, as indecisões, as decisões de uma forma muito "ao vivo e a cores"!
Adoro ler-te neste registo!
Beijinho grande em ti
Inês
Re: Adversidades _ Parte I (baseado em fatos reais)
Maravilha, minha amiga Flávia.
Adorei!
Parabéns,
Bj,
REF
Re: Adversidades _ Parte I (baseado em fatos reais)
Ola´Roberto,
Obrigada por teu carinho!
Bj
Re: Adversidades _ Parte I (baseado em fatos reais)
Flávia;
Lindo conto, veridico sobre a Humanidade e seus perigos.
Acima de tudo uma historia de força de coragem
Re: Adversidades _ Parte I (baseado em fatos reais)
Mefistus,
Agradeço imensamente a leitura e o comentário.
bj