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Gregas Tragédias - 10 - EUMÊNIDES (as Fúrias; Orestes)
Dedicado ao Anjo que se escreve com três letras. Feliz Dias das Mães.
Ésquilo
Época da ação – idade heróica da Grécia – c. 1.200 aC.
Cenário – a ação ocorre em duas cidades. Em Delfos, diante do Templo de Apolo. Em Atenas, no Areópago.
1. Eumênides – forma positiva e amistosa que os gregos usavam para referir-se às Erínias (Fúrias, latinizado e aportuguesado) na tentativa de aplarcar-lhes.
Personagens:
1. Apolo, deus.
2. Atená, deusa.
3. Coro – composto por seis Fúrias.
4. Escolta
5. Fantasma de Clitemnestra
6. Hermes, deus.
7. Orestes, filho de Agamêmnon e de Clitemnestra
8. Pítia, sacerdotisa já em avançada idade.
Lembra-se o leitor (a) que ao final da peça “Coéforas”, Orestes parte apressado para Delfos, aonde no Templo de Apolo irá se purificar pelo matricídio que cometeu. Purificação que lhe urge, pois as Fúrias (ou o remorso, a culpa) já iniciaram seu castigo.
A peça de Ésquilo inicia-se com a profetisa caminhando para a porta fechada do Templo. Antes, porém, de entrar ela pára e reverencia a “Trípode2 ” onde sentava para profetizar.
2. Trípode – do grego “Tripous”, “odos”; móvel dividido em três partes, no qual a Pitonisa proferia seus oráculos.
Após reverenciar o móvel, a Pítia inicia uma oração na qual cita as seguintes deusas e deuses: Terra, a 1ª deusa; Têmis, filha da Terra e a 2ª deusa (Segundo a tradição, foi Têmis quem inventou os Oráculos e instruiu Apolo na arte de profetizar. Era uma das esposas legitimas de Zeus); Febe (titânica), também filha da deusa Terra, a 3ª deusa; Febo (Apolo), natural dos Montes Delos que se fixou em Delfos, onde os filhos de Hefestos (os atenienses) o homenagearam e favoreceram para a conquista de toda a região. O rei Delfos, epônimo do lugar, instituiu o culto solene a ele e a Zeus. Em Delfos, Apolo tornou-se o porta-voz do Pai dos Deuses.
Na seqüência, a Pítia volta-se para a imagem da deusa Atená e para as dos outros deuses que invoca. Prossegue sua prece, dizendo que Atená também tem situação destacada em sua crença e no seu discurso. Depois, menciona as Ninfas, o deus Dionísio (chamado de Brômio), o divino rei Pleisto, o deus olímpico Poseidon e o Pai de todos, Zeus. Só depois de invocar todas essas deidades é que ela se dirige como Sacerdotisa, ao seu trono. Antes, porém, fala aos presentes no pátio: se aqui estiverem peregrinos gregos, que eles se aproximem conforme a ordem ditada pelo sorteio, pois eu profetizarei o que for inspirado pelos deuses. Na seqüência entra no templo, mas após poucos segundos volta horrorizada, cambaleante, escorando-se nas portas e nas colunas da edificação.
Aos que lhe esperavam, conta que ao se dirigir ao altar avistou um homem que carregava um punhal ainda ensangüentado e um ramo de oliveira recoberto de alva lã de carneiro. Cercavam-no figuras tão sinistras que nem às Górgonas podiam ser comparadas. Pareciam medonhas Hárpias sem as asas. Tinham o hálito que enojava a todos e, além disso, tinham olhos que vertiam um liquido pútrido e asqueroso. Não sei, diz a Pitonisa, quem é o suplicante, mas sei que só poderá encontrar ajuda com o próprio deus Loxias (= oblíquo, um dos epítetos de Apolo, referente aos seus vaticínios obscuros). Apenas ele, que sempre cura os homens e é um interprete confiável de Zeus e doutros deuses, terá poderes para salvar o pobre homem.
Na seqüência, a profetisa se afasta e as portas do templo são abertas mostrando Orestes sentado no meio do recinto, o deus Apolo, em pé, ao seu lado e as “Fúrias”, adormecidas nos bancos.
Dirigindo-se a Orestes, Apolo diz: nunca te abandonarei. Perto ou longe, sempre te protegerei. Veja que as Fúrias já estão dominadas, presas por pesado sono. Criaturas malditas que herdaram o Tártaro (a parte mais escura e tenebrosa do Hades. Talvez o “Inferno” cristão) e são odiadas pelos Homens e pelos Deuses do Olimpo.
Todavia, Orestes, fuja rápido, pois elas te procurarão por todos os lugares. Não deixe o cansaço te vencer e vá para a cidade de Palas (Atenas) onde deves ajoelhar-se e abraçar a estatua da deusa. Então, à frente dos Juízes, teremos as palavras corretas que te libertarão em definitivo. Tenho essa obrigação contigo, pois fui eu quem te mandou matar a própria mãe.
Orestes responde que Apolo é justo, quando isso é de seu interesse; assim, que continue a protegê-lo, pois só então sua libertação será completa e o sucesso de sua vingança terá sido verdadeiro.
Na seqüência o deus Hermes entra em cena. Apolo fala com Orestes e depois com o “Mensageiro dos Deuses”. Ao primeiro pede que não se entregue ao medo. Ao segundo, seu irmão, solicita ajuda para proteger Orestes, pois ele conta com a benção de Zeus, sempre favorável aos mortais que estão naquela situação. Que Hermes lhe ajude a protegê-lo até que ele seja julgado por outros Homens.
Aqui se menciona pela primeira vez um julgamento nos moldes atuais. É a primeira referência aos ritos processuais que, com o tempo, foram sendo lapidados até o formato atual.
Feito o pedido, Apolo sai e Orestes é conduzido por Hermes. Os três são substituídos na cena pelo fantasma de Clitemnestra que se dirige ao Coro, composto pelas Fúrias adormecidas. Diz-lhe a falecida rainha: Oh, como dormem! Qual a sua serventia Coro sonolento, se não vingam os insultos que recebo amiúde no Hades? Sim, lá, sou frequentemente chamada de assassina e outros nomes. E em meio a tantas humilhações não vejo nenhum deus apiedar-se dessa pobre mãe, assassinada pelo próprio filho. Ninguém se mostra contra o assassino. Oh, destino cruel! Vejam com vossos corações as chagas que trago, pois seus olhos estão vencidos por pesado sono. E lembrem-se de quantas celebrações e sacrifícios eu lhes fiz quando estava viva. Vamos, levantem-se! Orestes escapou e zomba de vós com sarcasmo. De pé, deusas das profundezas infernais! Eu, Clitemnestra, a invoco!
As Fúrias respondem com lúgubres uivos. Clitemnestra torna a lhes falar: oh, dragões malignos, por que vos acomodam? Vejam que o matricida tem amigos divinos que o protegem, enquanto eu não tenho quem me valha. E entre os uivos descoordenados do Coro, Clitemnestra continua sua cantilena atiçando o apetite dos monstros e incitando-as a prosseguir na caçada.
O leitor (a) notou que mesmo morta, Clitemnestra continua extremamente egoísta. Nada lhe importa que não seja seu interesse individual. Aqui, ela não se preocupa com a feitura da justiça, ou da injustiça, pois quer apenas saciar sua vingança pessoal.
Em seguida, o fantasma da rainha dirige-se particularmente ao Corifeu (a líder das Fúrias) dizendo: por que só persegues a caça em sonhos, como os cães que nunca saem do canil? O que fazes? Vamos, não deixe que cansaço impeça-te de queimar o sórdido Orestes com o tenebroso hálito de tuas entranhas. Extenue-o até deixá-lo invalido, prostrado. Vá!
Se havia dúvida sobre o sentimento da mãe pelo filho, aqui ela fica desfeita totalmente. Ao contrário da maioria de pais e de mães que perdoam todas as ofensas dos filhos e nem cogitam desejar-lhes o menor dos males, Clitemnestra mostra que o filho não lhe era nada. Ela mostra por ele apenas ressentimento e ódio.
Isto dito, o fantasma de Clitemnestra sai da ribalta e as Fúrias acordam. O Corifeu apressa o despertar de todas, ordenando que cada uma acorde a que lhe estiver mais perto. O conjunto do Coro, enfim desperto, reclama dos sofrimentos que experimentando. Oh, penas insuportáveis! A fera matricida rompeu nossa armadilha e fugiu rápido como uma lebre. Sim, outra Fúria diz: todo nosso trabalho e sofrimento foram inúteis. Uma terceira se queixa pelo sono ter-lhes vencido e que, por isso, tenham perdido a presa. O conjunto une sua voz enfim e classifica o comportamento de Apolo como mero e vergonhoso roubo. Justo ele, “um jovem deus (por serem da 3ª geração, a de Zeus, que foi precedida pela de Cronos e pela de Urano. Geração que também é chamada de Olímpica)”, surrupia as “velhas deusas”. Oh, filho de Zeus, só por piedade é que tu proteges o cruel facínora? Mas veja filho de Latona, ele é um homem crudelíssimo, um ateu que mata a própria mãe e que se livra da justa punição, graças a tua interferência. Como se pode ver Justiça nesse resgate, ou nesse roubo, que tu nos fez? Uma das Fúrias toma a palavra para dizer que aquela afronta a fere como se fosse um poderoso chicote na mão de cruel verdugo. Volta o Coro dizendo: é dessa forma que agem os deuses mais jovens? Tudo isso só para conquistar mais poder no Mundo, sem se importarem com a Justiça. Outra Fúria diz que vê o Oráculo de Delfos – o centro do Mundo – maculado pelo acobertamento de tão odioso crime. O Coro diz que Apolo transgrediu antigas Leis e por um mero mortal sujou seu próprio lar. Com isso, outra Fúria diz: ele só conseguiu ganhar o meu ódio, sem conseguir salvar seu protegido. Orestes não se livrará de nós! Aonde for encontrará um vingador.
Nesse instante Apolo sai do seu Templo com um arco preparado para atirar. Irado, ele grita para as Fúrias: saiam daqui! Deixem minha casa! Andem, pois caso contrário as “serpentes sibilantes (metáfora para as flechas) sairão do arco, fazendo-as vomitar o sangue que tomaram de tantos humanos. Vossas aparências horrorosas já indicam, por si, que vosso lugar é entre os bárbaros que degolam, empalam, mutilam etc. Ouviram monstros odiados pelos deuses? Saiam desse Templo, onde faço profecias verdadeiras e úteis. Não atormentem os vários visitantes que aqui vêm.
Responde-lhe o Corifeu que ele, Apolo, não é um mero cúmplice, mas o verdadeiro artífice e culpado pelo matricídio.
Como? Pergunta-lhe o deus. Ou tu só disseste essa asneira pelo gosto de falar?
Não, responde o Corifeu. Foi teu Oráculo que o mandou matar a própria mãe.
O Oráculo, Apolo retruca, mandou-o vingar o pai.
Sim, mas tu lhe prometeste proteção, antes mesmo dele ter sujado as mãos com o sangue da mãe.
Sim, prometi e é por isso que o mandei vir a mim para que eu o purificasse.
Mas se é assim, por que tu impedes que minhas irmãs fiquem aqui? Nós só queremos cumprir com nossa obrigação de punir o culpado.
Obrigação? Que obrigação? Vocês sempre se apóiam nesse argumento.
Sim, cumpre-nos banir do lar o sórdido matricida.
E o que fizeram com a mulher que matou o marido?
Nada. Eles não eram parentes. Não tinham o mesmo sangue, diz o Corifeu.
Argumento que não se aplica quando o assassino é o pai Agamêmnon e a vitima sua própria filha, Ifigênia. Novamente, nada é comentado sobre esse assunto. Por que as Fúrias não o atacaram? Resposta racional não se tem e nem seria Ésquilo obrigado a fornecê-la, pois ele não escreveu uma tese sobre o Direito Grego, mas sim uma Dramaturgia onde as “licenças poéticas” são plenamente aceitáveis. O mesmo se pode dizer doutros Trágicos em suas maravilhosas peças.
Apolo retruca dizendo: vocês são degradadas. Apequenam esse sagrado pacto entre homens e mulheres que é abençoado por Hera e pelo próprio Zeus. Também afrontam Afrodite ao não darem o devido valor ao sentimento do amor conjugal que ela deu aos Homens. Fica claro porque, então, vocês não punem o crime entre esposos e até o esquecem. É por essa parcialidade, no torto julgamento que vocês fazem que eu não reconheço como justificável a perseguição contra Orestes. Vossos corações só querem castigar um crime, enquanto se esquecem dos outros. Mas deixe estar, a poderosa deusa Atená será justa em sua avaliação.
A Fúria líder responde que jamais deixará Orestes livre. Impune. Apolo lhe diz que então vá, pois isto só lhe trará sofrimento. O Corifeu replica que não. Que nem ele, deus do Olimpo, pode tirar seus poderes, seus privilégios. Responde Apolo dizendo que suas palavras são vazias; que seus poderes pouco lhe importam. O Corifeu retruca: fala-se do seu grande poder, mas eu sou impelida pelo sangue de uma mãe e é com esse estimulo que perseguirei Orestes. Volta Apolo para dizer: pois seja, com igual denodo eu o defenderei. Nós outros, deuses do Olimpo, não toleramos ouvir uma súplica dos mortais e não vir em seu socorro. Para os deuses e para os humanos é impossível ficar estático ante um suplicante que sofre.
Nesse ponto a peça muda de cenário. O Coro das Fúrias se retira e as portas do Templo são fechadas. Quando as cortinas são reabertas aparece a Acrópole com o Templo de Palas (Atená) e a imagem da deusa à frente do mesmo.
Entram em cena Hermes e Orestes que imediatamente abraça-se a estátua da deusa dizendo-lhe: aqui cheguei por ordem de Apolo. Deusa soberana acolhe-me com clemência. Já não tenho sangue nas mãos, pois o convívio com as pessoas generosas que me abrigaram por tanto tempo, lavou minha mácula. Sempre obediente às ordens de Loxias (Apolo) chego ao teu sagrado Oráculo e aos pés de tua imagem aguardo com humildade o veredicto da Justiça.
Nesse ínterim chegam as Fúrias, que tão logo despertaram seguiram as pegadas do fugitivo Príncipe de Argos. O Corifeu logo exclama: aqui está o facínora! Já vejo seus rastros. Como determinados cães de caça seguimos os pingos de sangue que ainda caem de suas mãos. Estamos exaustas após percorrer toda a Terra a seguir-lhe, mas aqui o encurralamos. As outras Fúrias, em uníssono, falam ao Corifeu que ela atente em tudo para que Orestes não lhes fuja de novo. Depois, cada uma delas fala com a outra, até que uma o vê ajoelhado aos pés da imagem divina e diz que ele quer ser julgado por seu crime. Outra Fúria responde que tal julgamento não pode ocorrer, pois o sangue derramado não reflui e está perdido para sempre. Outra, ironicamente, pede que Orestes deixe-lhe beber seu sangue para aplacar a sua sede. Outra delas ameaça extenuá-lo e levá-lo, ainda em vida, para o pior abismo do Universo onde ele pagará por seu crime. Mais uma fala complementando a ameaça da anterior: lá, naquele terrível abismo, ele encontrará outros impiedosos que afrontaram os deuses, ou seus hospedeiros, ou seus genitores. Cada qual sofrendo o horrendo castigo imposto pela Vingança. A última Fúria diz: o deus Hades (epônimo do Mundo dos Mortos) cobra sem compaixão a divida contraída pelo mortal.
A crença na pós-morte foi deveras importante no Mundo Antigo e é interessante notar como seus conceitos chegaram integralmente aos nossos dias. Vê-se que o avanço tecnológico não é suficiente para acabar com lendas tão antigas. Essa carência humana de buscar algum sentido para o ato de viver pode ser vista, entre outras, como uma forma do Homem imaginar que paira acima da Natureza. Tudo nasce, vive e morre cumprindo seu papel no mosaico natural, cujo espaço e tempo de cada indivíduo são pré-determinados; exceto para a esperança humana, que se permite um Tempo extra (num lugar imaterial) após desaparecer do Espaço que a Natura lhe havia concedido.
Orestes, em resposta, diz que sua desventura ensinou-lhe que há várias formas de purificação e que há o tempo de calar e o tempo de falar. Agora, orientado por um sábio, é chegado o momento de falar. A mancha do matricídio que cometi desbotou graças à purificação do deus Apolo. Outrossim, o grande número de pessoas que me hospedou, sem temor e sem rancor, deu-me a certeza que o Tempo tudo apaga em sua passagem. Assim, purificado por um deus e também pelos Homens é que venho a ti, deusa querida, pedir com os lábios imaculados o teu socorro. Saiba Atená que se tu me favorecer conquistará sem luta a minha admiração e minha fé, bem como a de todos os meus súditos na grande cidade de Argos.
Note-se, novamente, que um mortal oferece suborno a um deus como se a sua proteção nada tivesse de divina. Como se fosse um mero negócio humano.
O Corifeu, porém, em tom de ameaça diz a Orestes que sua súplica é vã, pois tal como Apolo, Atená também não o ajudará. Ficará, diz, na mais completa solidão e após sua morte a tua alma será abandonada pela Felicidade. Será mera sombra a ser eternamente sugada pelas Entidades Infernais.
Orestes cospe em sua direção, demonstrando seu desprezo.
O Corifeu, indignado, protesta contra aquele gesto de desdém e o ameaça de ser devorado ainda vivo. As outras Fúrias, de mãos dadas, aproximam-se do Príncipe Argivo e dançam de maneira tosca e bizarra enquanto entoam um Canto que tem o poder de imobilizar a vitima. Fechando o circulo, dizem que são as “Vingadoras Implacáveis” e que falam pelos mortos em testemunho contra os vivos. Dizem que o homem sem crimes viverá sua vida sem que elas o importunem, mas o celerado, com as mãos sujas do sangue alheio, experimentará a força de seu ódio. O Corifeu invoca a sua mãe, a deusa Noite, queixando-se que Apolo está atrapalhando sua missão de castigar os culpados, estejam vivos ou mortos. Reclama que o deus tenta humilhar-lhes ao tentar salvar Orestes, autor de um dos piores crimes: o matricídio. O Coro, à frente do Príncipe, entoa o hino dedicado às Sagradas Fúrias. Inebriante, este hino provoca tais delírios que os mortais sentem a mente imobilizada. É um canto isolado, sem acompanhamento da Lira, que apavora de tal modo que todos os movimentos escapam de quem o escuta. Nele, está escrito que essa é a tarefa que o deus Destino deu às Fúrias por toda a Eternidade: perseguir implacavelmente as criaturas, cuja demência lançou no charco do crime; até que elas sumam no mais fundo dos Infernos.
Observe-se que no arrazoado das Fúrias já existia um atenuante para os homicídios; ou seja, a demência, a insanidade, ou incapacidade mental do criminoso. Contudo, esse atenuante não era considerado pelas mesmas, ao contrário de hoje que serve, em certos casos, para declarar um réu demente como inimputável.
Nem a morte libertará de nossas garras o homicida. Já nascemos para essa tarefa e nem os deuses podem interferir. Não freqüentam nossas casas ou festas, mas também nunca os bajulamos. Destruiremos todas as casas onde a deusa “Discórdia” se instalar e disso resultar um crime de morte entre os consangüíneos. Por mais poderoso que o culpado seja logo iniciamos a perseguição até consumir suas últimas chamas. É esse nosso papel: evitar que alguma “divindade nova (1)” tenha que se ocupar desse horripilante mister.
1 – por “divindades novas” entenda-se os Deuses e Deusas do Olimpo, a 3ª geração – Urano, Cronos e Zeus; em contraponto com as “Divindades Velhas”, dentre as quais as próprias Fúrias, surgidas no inicio dos tempos.
Livramos-lhes dessa terrível tarefa, mas em contrapartida estabeleceu-se que nenhum deles tivesse autoridade sobre nós. Por isso, o sórdido Orestes não pode nem ser levado à presença de uma deidade. O próprio Zeus considera maldita essa classe de mortais, sujas com o sangue. As maiores glórias para os Homens, mesmo que trazidas do Céu para a Terra, perdem seu brilho se forem tocadas por nossos véus e pelos efeitos nefastos que se originam em nossas danças. Saltamos com vigor e pisamos até nos corredores mais velozes. Orestes, insano, caiu num terrível delírio que o perdeu (horrenda mácula cobriu seus olhos, como se o cegasse) enquanto pesada nuvem já envolvia o Palácio paterno, segundo os rumores que nos chegaram. Somos lentas para pensar, mas ágeis para executar, nunca esquecendo os crimes praticados. Humildes e desprezadas temos, no entanto, poder para cumprir nossa missão. Somos como um horroroso pântano sem Sol, longe dos outros deuses e intolerável para os vivos e para os mortos. Por isso, que mortal pode ouvir sem temor a “Lei” que a Parca nos deu? Embora moremos num negro abismo, ainda é nossa a antiga prerrogativa de fazer justiça. E não nos faltam honrarias.
Nesse ínterim entra em cena a poderosa deusa Atená dizendo que desde as margens do rio Escamandro (em Tróia, cuja terra lhe foi consagrada pelos gregos vitoriosos) escutou um apelo angustiado e que célere fez o caminho de volta, a bordo de sua égide transformada num carro puxado por fogosos corcéis. Agora, aqui chegada, eu vejo um bando de seres estranhos que não me causam temor, mas um espanto natural e condizente com suas bizarras figuras. Na seqüência fala às Fúrias e a Orestes: quem são vocês? Tu, ajoelhado aos pés de minha imagem; e vós, que não se parecem com os mortais, tampouco com os deuses. Por que insultaram a quem não vos deu motivo? Por que cometem essa iniqüidade?
O Corifeu responde explicando que são descendentes da deusa Noite e que são conhecidas, no fundo da Terra, onde têm sua morada, como “Maldições”. Logo, deusa, tu conhecerás nossas prerrogativas e obrigações.
Sim, responde Atená, diga-me claramente para eu saber.
Estamos em sua casa buscando um assassino que matou a própria mãe. Nossos gritos que ouvistes foram dados nas ocasiões em que ele nos fugiu. Que escapou de ser levado ao “lugar onde ninguém se sente alegre”.
Atená a interrompe para perguntar-lhe se alguém ou alguma circunstância levou o criminoso a cometer tal crime?
Mas pode alguma compulsão levar ao matricídio? Responde perguntando o Corifeu.
A palavra volta para Atená que sentencia: já que aqui estão as duas partes e eu só ouvi uma delas, quero ouvir à outra antes de exarar qualquer comentário ou julgamento.
Pretextando uma questão de ordem, o Corifeu diz: poderosa deusa, ele nem jurou. Nem quis que nós jurássemos (que diria a verdade, como acontece nos julgamentos atuais).
Sim, diz Atená, quereis parecer justa, mas não estais sendo. Como? Responde a Fúria. O que pretendes dizer? Nós, Fúrias, não temos capacidade de te compreender. Diz a deusa que os Juramentos são apenas uma formalidade, pois não podem transformar a Justiça em Injustiça. Então deusa, retruca o Corifeu, ouve-o e julgue corretamente. Mas por quê? Pretendes que eu seja a árbitra dessa questão? Sim, por que não, assente a líder das Fúrias. Assim prestaremos reverência a ti, que é digna da nossa veneração.
Atená, então, dirige-se a Orestes e diz: fala-me primeiro quem tu és e donde vens. Qual é a tua raça e quais são teus infortúnios? E se tens confiança na Justiça? Vejo que se apega à minha sagrada imagem com o mesmo fervor que Ixion, o rei dos Lápitas, segurava a de Zeus enquanto buscava abrigo após cometer mais um de seus crimes cruéis. Depois, suplicante, diga-me o motivo de estar sendo perseguido.
Orestes responde: Atená soberana, eu começarei pelo fim, pois assim logo eliminarei qualquer preocupação ou pré-julgamento sobre a minha pessoa. Não sou um bandido, nem um maldito. E nem tenho sangue sujando minhas mãos, pois tive purificações em todas as terras que conheci e de todas as pessoas que me acolheram, sem medo ou rancor. Aqui a Lei impõe silêncio a um criminoso até que ele seja purificado, mas como eu não sou um facínora posso lhe dizer que sou de Argos, filho de Agamêmnon – que tu bem conhece e que, com tua ajuda, conquistou Tróia. Após a guerra, meu pai voltou ao lar onde minha mãe o matou traiçoeiramente, como comprovam o tecido, a malha e a banheira que foram usadas no triste episódio. Esse acontecimento eu não vi, pois desde meus primeiros dias ela meu exilou na corte de Estrófio, na Fócida. Do exílio só voltei na idade adulta e o fiz a pedido do espírito do meu pai que reclamava vingança e a conselho e incentivo do deus Apolo, que a par do encorajamento, ameaçou-me com terríveis castigos no caso de eu não cumprir a vingança, matando Clitemnestra e seu amante Egisto. Chegando a Argos cometi os assassinatos, crente na palavra de Apolo de que eu só sofreria algum castigo se não o fizesse; mas como tu vê, não foi isso que sucedeu. Desde aquele dia estou sendo implacavelmente perseguido pelas Fúrias Vingadoras, como se eu fosse um criminoso qualquer. Assim, nobre deusa, se não houver qualquer atenuante em meu caso, pelo fato de vingar meu pai e obedecer a um deus, aceitarei resignadamente a pena que tu me impuser.
A versão de Orestes e seus argumentos causaram efeito na deusa que viu o caso de outra maneira. Não era um crime banal, mas, ao contrário, uma questão complexa por envolver justa vingança (sic) e intromissão de um dos deuses. Responde Atená que a complexidade da questão estava além de seu poder ou de seu julgamento. De um lado, Orestes com suas razões e seus atenuantes; doutro lado, as Fúrias e suas prerrogativas e suas obrigações. Prerrogativas, aliás, que se não forem respeitadas resultarão em graves conseqüências para a cidade de Atenas. Assim, diz a filha preferida de Zeus, eu indicarei doze Juízes de crimes sangrentos. Escolherei os melhores cidadãos e todos se comprometerão, por Sagrado Juramento, a julgarem sem qualquer preconceito, sem qualquer tendência pessoal e sem qualquer outra iniqüidade. Destarte esse “Alto Tribunal”, assim constituído e assim regido, terá perpetuamente essa nobre missão.
Note-se como foi o surgimento do Tribunal do Júri, enquanto Instituição civilizatória. A bruta vingança deixaria de existir, sendo substituída pela apuração da verdade que há em cada caso. Merece atenção, também, o fato da Instituição ser delegada aos Homens. Ao contrário da “Vingança” que era atributo de alguns deuses, como as Fúrias, por exemplo, que a todos os homicídios puniam sem considerar a existência de algum atenuante (legitima defesa, por exemplo), ou de algum agravante (crime contra indefesos, por métodos cruéis, por motivos fúteis etc.).
Prosseguindo, Atená diz que as duas partes devem preparar as suas provas, suas testemunhas, seus argumentos etc. para reforçarem suas razões. Enquanto isso, diz, escolherei os melhores cidadãos de Atenas para que julguem o caso corretamente, fiéis ao juramento de não decidirem contrariamente aos mandatos da boa justiça.
O Coro das Fúrias assume a cena e faz um prognóstico sombrio: se esse matricida for favorecido no julgamento, logo se instalará uma grande subversão resultante dessas novas Leis. As justificativas que aceitarem para seu crime, em breve acobertarão crimes similares. E isto se dará porque nós, Fúrias, deixaremos de punir os homicidas. A partir desse momento abrir-se-á as portas para todos os tipos de celerados que antes continham suas perversidades pelo medo que nós impúnhamos. Sim, o medo é bom e deveria estar sempre vigilante. Mas, findo o temor, os mortais atingidos por crimes, em vão nos invocarão, pois nada poderemos fazer. Ficarão os homens subjugados pela anarquia, haja vista que a desordem reinará levando ao fim a vida feliz. Um sofrimento adicional, aliás, pois no fim todos serão colhidos pela morte e seus crimes alongados pelo beneplácito da demora na Justiça os farão sofrer com mais rigor, do que seriam antes.
Note-se que Ésquilo não escapa da regra grega que associa a Felicidade com a Ordem, a Organização. E a desgraça com a Desorganização. Esse conceito norteou o Pensamento grego de forma quase unânime, tendo em Aristóteles seu expoente máximo. Note-se, também, que a Fúrias exaram um raciocínio torto e primário, muito em voga nos dias de hoje, que associa o respeito aos “Direitos Humanos” como incentivos aos criminosos. Desse primarismo intelectual é que surge o apelo da maioria da população atual para o endurecimento na repressão como única forma de combater o crime.
Ao fim do discurso do Coro, Atená volta à cena acompanhada pelos Juízes escolhidos, que se sentam de frente para o público enquanto o Coro ocupa as laterais do proscênio. Orestes, como réu, a um gesto dos Juízes fica em pé. Atená ordena que o Arauto que a seguia desse o sinal para que a ordem e o silêncio fossem respeitados pelo povo. Diz-lhe que o sinal tenha tal força que seja ouvido até nos Céus, pois será o prenúncio das novas Leis que ela promulgará para que o Tribunal do Júri possa julgar com acerto e retidão, até o fim dos tempos.
Apolo adentra ao recinto e o Corifeu pergunta-lhe o que ele faz ali? O que tem a ver com aquele processo? Em resposta, Apolo diz que ali veio para testemunhar a favor do réu, Orestes. Este mortal, diz, além de meu suplicante é um fiel sempre bem vindo ao meu altar. Fui eu quem o purificou do sangue que derramou. Aqui serei seu defensor, pois eu sou o responsável pelo matricídio que ele cometeu.
Na seqüência, Apolo pede que Atená abra os debates. Atendendo-lhe a deusa dá a palavra às Fúrias. Cabe-lhes, diz, que nos informem com clareza sobre os fatos a serem julgados. O Corifeu diz que assim fará e que falarão pouco, apesar de serem muitas as Fúrias presentes. Para Orestes diz: responda sucintamente a cada pergunta.
- Mataste tua mãe?
- Sim, não posso negar esse fato.
- Essa primeira queda já nos favorece, comemora o Corifeu; mas Orestes retruca:
- queda? Ainda não caí, por que te vanglorias?
- como te atrevestes a matá-la?
- degolei-a com minha espada.
- quem te persuadiu?
- foi o deus Apolo, que agora é minha testemunha.
- como, o deus-profeta comandou o matricídio?
- sim, foi ele. Mas não me queixarei de meu destino.
- será? Não pensarás assim após o veredicto, diz o Corifeu.
- eu tenho fé em meu pai e creio no seu auxilio, responde Orestes.
- tu que mataste a própria mãe ainda tem confiança nos mortos?
- sim, pois foi ela própria que se sujou em dois assassinatos.
- dois? Como assim, dois? Explica-te aos Juízes.
- matando seu marido e meu pai, responde com certa ingenuidade o Príncipe Orestes.
- sim, diz o Corifeu, mas ela já se redimiu sendo assassinada, enquanto tu vives apesar de ter matado quatro.
- quatro? Como assim?
- sim. A tua mãe, a viúva de Agamêmnon, a amante de Egisto e a mãe do filho deste; responde em forma de zombaria a ardilosa Fúria.
- por que vós não a perseguistes como fazem comigo? Por que não a exilaram enquanto estava viva?
- o Corifeu responde, motivo é simples: ela não tinha laços de sangue com a sua vitima.
- Orestes, novamente ingênuo, pergunta: mas tu pensas que ela e eu somos consangüíneos?
- sim, diz o Corifeu, pois não foi ela quem te deu à luz. Agora tu renegas o precioso vínculo de mãe e filho?
- percebendo que caía na armadilha que a Fúria lhe armava, Orestes pede que Apolo dê o seu depoimento. Explica-lhes, ó deus, que quando a matei estava agindo segundo a Justiça. Não nego o fato, mas quero tua opinião se esse homicídio pode ser justificado? Desfaze a dúvida dos Juízes.
Apolo cumprimenta cerimoniosamente os membros do júri e inicia sua fala: esse Instituto, recém fundado pela deusa Atená será, posso profetizar, um reduto de equidade e da reta justiça. Do meu Oráculo jamais proferi qualquer palavra sobre homens ou mulheres que não fosse com a aprovação de Zeus. Fiquem atentos, pois, à justificativa que darei para o fato aqui julgado e sejam obedientes à vontade do meu Pai, o Pai dos Deuses Olímpicos. Juramento algum deve prevalecer sobre as ordens do grande Zeus.
Pergunta-lhe o Corifeu se veio de Zeus a ordem para Orestes matar a mãe, ou só vingar o pai (matando apenas Egisto, por exemplo)?
Sim! Pois a morte de um grande herói é mais importante que a de um anônimo. Sua vingança exigia o sangue de quem, ardilosa e traiçoeiramente, o abateu quando saía da banheira e se secava no longo manto que a facínora lhe estendeu com falso carinho. Preso naquele pano, não pôde o Comandante dos Aqueus desvencilhar-se, dando a Clitemnestra o tempo necessário para que o apunhalasse com a espada do amante. Isso eu volto a relatar a vós, nobres jurados, para que se indignem com a sórdida traição.
O Corifeu retoma a palavra para colocar um paradoxo: segundo o relato de Apolo, Zeus teria predileção pelos pais, porém com o seu, Cronos, a sua atitude foi totalmente diferente, haja vista que ele o matou sem pejo algum. Como, Apolo, tu conciliarás esse paradoxal ódio de Zeus com a tua argumentação? Em seguida, a líder das Fúrias dirige-se ao júri pedindo que prestem atenção àquelas contradições que acabou de expor.
Apolo retoma e diz: vós, monstros execrados, sabem muito bem quais são os imensos poderes do meu Pai. São quase infinitos, mas contra a morte ele nada pode.
Devolve o Corifeu: então, atente Apolo, para o modo com que tu defendes Orestes. Deverá ele, que derramou o sangue da própria mãe, morar no Palácio Real? Em quais altares ele poderá rezar e fazer os sacrifícios? Que Confraria dar-lhe-á consentimento para purificar-se com a água lustral (sagrada, benta)?
A isso responderei Fúrias, diz Apolo. O filho não é gerado pela mãe. Ela é somente a nutriz do germe que o homem nela semeou. Aqui mesmo, nesse egrégio Tribunal, temos uma prova de que é possível ser pai, sem que tenha havido uma mãe. Sim, falo de Palas Atená (1), filha de Zeus que a gestou em seu cérebro e lhe deu à luz já adulta e plena de poderes. Alguma deusa poderia ter feito semelhante? Poderosa deusa, eu sempre darei glórias a ti e à tua cidade. E Orestes, aqui chegado graças ao meu amparo, também traz sua devoção eterna, bem como farão seus descendentes e seus súditos.
1 – Zeus engoliu Métis, sua primeira esposa divina que estava grávida de Atená. Quando ele sentiu que era hora do nascimento, ordenou que Hefesto (deus do fogo) lhe partisse a cabeça para que dela emergisse a deusa, já adulta e poderosa.
O argumento de Apolo acerca da impossibilidade da mulher gerar um filho sem a participação de um homem foi comum na antiguidade, eivada do conceito da “superioridade masculina”. Com os avanças atuais, sabe-se o quão falaciosa é essa teoria.
Atená assume a palavra e dirigindo-se ao Coro pergunta se já pode pedir que os juízes depositem seus votos, vez que a argumentação e a réplica foram feitas.
Sim, concorda o Corifeu. Já disparamos todas as flechas que tínhamos e agora só nos resta esperar pelo veredicto. Para Apolo e Orestes, Atená repete a pergunta e acrescenta: para vós, o que devo fazer para não merecer vossa reprovação? O deus do Sol não lhe responde diretamente e dirigindo-se aos juízes dá seu consentimento dizendo: ouvistes o que ouvistes. Ao votarem, juízes, lembrem do juramento que fizeram.
Presidindo os trabalhos, Atená retoma a palavra para dizer: atenienses foram convocados entre os melhores cidadãos. Por mim mesma eles foram escolhidos e julgarão pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue. A partir deste dia e para sempre, terão vós a incumbência de manter intactas as normas e os objetivos deste Tribunal. Sobre este monte, chamado de “Colina de Ares”, minha voz conclama a “Reverência” e seu irmão o “Temor” para que evitem os crimes, pois caso contrário cidadãos, vós beberão a água da fonte que poluíram, haja vista que desprezar as Leis equivale a voltar à barbárie. Que não haja Opressão, nem Anarquia eis o lema que todos devem seguir. Proclamo, pois, instituído um Tribunal incorruptível, venerável, inflexível e sempre vigilante para que a cidade durma em paz. Agora juízes, levantem-se e depositem seus votos.
Especialmente caro aos homens e mulheres relacionados com os assuntos jurídicos, esse trecho muitas vezes deixa de ser dramaturgia para ganha contornos de História. É uma atitude, claro, que não prima pela precisão, mas não deixa de ser elegante dar essa gênese ao Direito e, especificamente, ao Tribunal do Júri.
Os juízes vão até o pote onde depositam seus votos. Apolo e o Corifeu continuam a troca de insultos e ameaças, dentre os quais, a das Fúrias que prometem cataclismos sem fim à cidade de Atená (Atenas), caso seus direitos não sejam respeitados. Apolo as exorta a aceitarem suas profecias, que são inspiradas por Zeus. O Corifeu argumenta que ele está se intrometendo em crimes sangrentos que não se relacionam com seus vaticínios. Apolo recorda o socorro que Zeus ofereceu a Ixion (o primeiro assassino [o Caim judaico-cristão?]). Rebate o Corifeu repetindo a ameaça contra a cidade de Atenas. E a troca de insultos se estende até que Atená anuncia que seu voto será o último e que será somado aos favoráveis a Orestes. Nasci, diz, sem ter estado em ventre materno e, por isso, sempre sou favorável aos homens, aos pais. O assassinato de Agamêmnon dói-me muito mais que o de Clitemnestra, justamente por isso. Assim, prossegue, basta que os juízes se dividam pela metade para que Orestes vença, com o meu voto. Na seqüência a deusa apressa os juízes, os quais tiram da urna os sufrágios e iniciam a apuração dos mesmos.
Ansioso, angustiado, Orestes pergunta a Apolo qual terá sido o resultado. O Corifeu clama por sua mãe, a deusa Noite, para que veja o que está acontecendo naquela assembléia. Orestes pergunta-se se será degolado ou libertado. O Corifeu se questiona se haverá sucesso ou sua ruína total?
Nessas poucas linhas é possível saborear a grandeza de Ésquilo. Nesse pequeno trecho, no original, ele constrói um magnífico painel que mostra os sentimentos das partes envolvidas. Orestes, entre a morte ou a liberdade. As Fúrias, entre o reconhecimento de sua autoridade, ou o fim de suas atribuições, o desprezo por sua utilidade. Prerrogativas que agora são substituídas pelos julgamentos de simples mortais.
Também impaciente Apolo ordena que os juízes confiram os votos com muito cuidado, pois qualquer falha ou fraude acarretará uma grande injustiça e a continuação de valores e conceitos que precisam ser revistos, renovados; numa clara alusão à substituição da pura vingança, como a praticada pelas Fúrias, pela equidade de um julgamento justo.
Enfim os votos são mostrados a Atená que proclama: empate! Orestes foi absolvido! Os votos dividiram-se em quantidades iguais e eu, diz a filha de Zeus, desempatei a favor do réu.
Daí a expressão “Voto de Atená (Minerva, em latim)” que é utilizado para desempatar uma questão em que nenhum dos lados alcançou a maioria. É uma prerrogativa do Presidente ou da autoridade máxima do julgamento.
Enquanto Apolo sai de cena, Orestes inicia a série de perorações que fará. Começa agradecendo a Atená, ao deus Apolo e a Zeus e comemorando seu retorno à sociedade dos argivos e ao seu Palácio. E, principalmente, por estar liberto das Fúrias, graças ao julgamento e por iniciativa do próprio Zeus, em reconhecimento dos méritos de Agamêmnon e da correta (sic) vingança que lhe foi feita. Depois, dirige-se especialmente a Atená jurando solenemente que nunca a sua terra, Argos, se voltará contra Atenas e se um sucessor assim tentar, ele próprio, mesmo de sua tumba, lançará tal maldição que o impedirá de concretizar a má intenção. Mas se meus sucessores honrarem meu juramento e forem fiéis aliados da nobre terra de Palas, eu os favorecerei sempre. Por fim, deusa, eu me despeço de ti e de teu nobre povo, desejando-lhes pleno êxito em todos os campos, inclusive no das guerras. Isto dito sai da cena.
Após a saída de Orestes, o Coro inicia um canto nostálgico dirigido aos “deuses novos (1ª geração = Urano, as Fúrias e outros; 2ª geração = Cronos e a 3ª geração = Zeus e os deuses Olímpicos.)” e especialmente a Atená: vós, jovens deuses humilham as deidades antigas. Arrebatam nossas funções e nossos direitos com a arrogância dos conquistadores. Mas tu, deusa, não perde por esperar. Nossa vingança será terrível, pois as gotas de veneno que destilaremos dos nossos corações humilhados cairão sobre teu solo e será a praga de tua cidade. O mal atingirá todos os atenienses. Nós, filhas da deusa Noite arruinaremos teu reino.
Atená responde em tom conciliador, dizendo: Sagradas Deusas, reflitam antes de agir. O resultado do julgamento, metade a metade, é prova de que ao menos a metade dos mortais gostaria da pura vingança que vós lhe proporcionaríeis. Vejam, portanto, que não há razão para sentirem-se humilhadas, pois o que aconteceu com Orestes foi uma exceção determinada pelo próprio Zeus. E como todos sabem os decretos do Pai, não podem ser modificados. Fiquem em minha cidade e meus súditos sempre as honrarão.
O Coro retruca dizendo: não, nós fomos humilhadas, sim. E nossa vingança contra tua pátria será pesada.
Atená retoma com o mesmo tom conciliador: não, não fostes humilhadas. Como eu disse, Orestes foi uma exceção, mas seus privilégios permaneceram intactos. Evitem que essa cólera imensa as estimule a perseguir homens inocentes, ou inocentados pelo conjunto das circunstâncias em que agiram. Já com tom mais ameaçador, prossegue aludindo ao estreito relacionamento que mantém com Zeus e que a torna especialmente poderosa. Sugere, pois, que pode defender sua terra e seus súditos com a mesma intensidade com que forem atacados. Na seqüência, como um pêndulo intencional que reveza amizade e adversidade, volta ao tom mais moderado e torna a convidar as Fúrias para morarem (terem um Templo) em Atenas, onde receberão todas as honrarias destinadas às deusas.
As Fúrias, contudo, rejeitam a ofertam e voltam a prometer dura vingança.
Atená volta a exortá-las para que esqueçam os maus intentos, pois ela, Atená, pode profetizar e já prevê as glórias vindouras que Atenas terá. Que elas, ilustres deidades, juntem-se a ela para serem, também, recobertas com as mais ricas oferendas. Todavia, se insistirem no desejo de voltar ao seu antro, que elas lhe concedam a dádiva de não inspirarem ódio nos corações antenienses, os quais, por causa desse rancor logo se porão a matar seus irmãos, ao invés de reservarem a coragem e a força para combaterem os inimigos estrangeiros.
Não, diz o Corifeu. Não queremos ter um Templo em tua cidade e sermos tratadas como “seres impuros”. Oh, Noite! Ouve-nos, mãe, que esses deuses perversos despojam-nos das nossas honrarias, fato que até hoje nunca havia acontecido. Nunca nossas prerrogativas foram negadas, como hoje foram.
Pacienciosa, Atená prossegue em sua tentativa de convencê-las a aceitarem suas oferendas e poupar sua terra das medonhas vinganças. Não pensem que eu, a deusa mais nova, ou meus súditos, teve a intenção de expulsá-las daqui. Ao contrário, gostaríamos muito de homenageá-las por serem as “deusas mais antigas” e, portanto, as mais sábias e poderosas. Se vós, como eu, veneram a deusa “Persuasão” concordem com as minhas palavras e sejam minhas hóspedes eternas, pois se não aceitarem e causarem ódio e desgraça para minha cidade, todos saberão que as Fúrias são “deusas intratáveis e injustas”.
O Corifeu, já desarmando o espírito, indaga-lhe: mas onde ficará o nosso Templo, soberana Atená? Digo-lhes que num lugar onde não há tristezas, responde a dileta filha de Zeus. Mas se aceitarmos tua oferta, como seremos honradas? Sem vossa benção, nenhum lar prosperará, responde a deusa de Palas. Mas, pergunta o Corifeu, teremos de fato todo esse poder? Sim, e só os vossos devotos é que poderão contar com a minha proteção, responde Atená. E tua palavra valerá para sempre? Sim, pois nada me obriga a prometer o que não quero, afirma a deusa. Certo, filha de Zeus, tu abrandaste meu rancor e nós renunciaremos ao ódio e à cizânia. Sejam bem-vindas antigas e sábias deusas. Por gratidão, deusa, que hino nós deveremos cantar, pergunta o Corifeu, para homenagear a tua e a nossa nova cidade? Cantem Fúrias benévolas, Eumênides, os hinos que remetem às vitórias sem tristezas. Que falem das calmas brisas e se refira às preces para que o solo e o rebanho nunca deixem de dar mesa farta ao nosso povo. Que exortem aos deuses a protegerem as sementes dos mortais, e que ameacem os descrentes e infiéis. São esses, deusas, os hinos que devem entoar, pois são essas as bênçãos que vocês trarão aos atenienses. Da guerra eu cuidarei, enquanto vós, Corifeu, cuida dos homens.
Observe-se nesse trecho, que decidimos alongar um pouco mais, a magnífica metáfora que Ésquilo faz acerca do difícil processo que transformou a bruta vingança em reta justiça, onde os ritos permitem (ou deveriam permitir) que se encontre o verdadeiro culpado e se adeque a pena ao crime cometido, evitando-se as iniqüidades que a falta de um julgamento ponderado sempre causa. A vingança transformada em justiça assenta-se em lugar de honra no mosaico da sociedade, onde recebe as honrarias que sua nobre tarefa enseja.
O Coro confirma seu desejo de ter um Templo em Atenas, junto com Atená, e jura que nunca aviltará a sua cidade enquanto faz efusivos votos de plena prosperidade para a terra que também é abençoada por Hermes e por Zeus.
Atená, feliz com decisão diz que deixará com seu povo essas deusas incorruptíveis. Que a elas caberá dirigir a vida dos mortais, sendo um açoite para aqueles que não viverem segundo suas normas e regras. Mesmo que o infrator desconheça quais são as normas e as regras (como acontece no Direito atual onde se parte do pressuposto que todos conhecem a Lei). Nasceram tais deusas dos Pecados cometidos pelos antepassados (o original da lenda judaico-cristã sobre o Paraíso?) e mesmo que alguém tente vencê-las com rudes palavras será em vão, pois elas sempre prevalecerão.
O Coro retoma a palavra e diz em tom de súplica: que as colheitas e as criações nunca sofram com as pragas vistas alhures e que os céus revelem as riquezas ocultas no sub-solo, para que os homens possam sempre honrar e agradecer aos deuses pelas benesses que lhes são concedidas.
Atená dirige-se aos próceres da cidade indagando-lhes se bem ouviram os benefícios que as Fúrias farão por Atenas? Vejam como é grande o poder dessas deusas e sua influência sobre as “Entidades Infernais”. Para os mortais serão quem dará motivo de riso para o justo e de pranto para o iníquo.
O Coro proclama que livrará Atenas da morte dos jovens e para tanto intercederá junto das Parcas (as deusas que controlam a vida e morte dos homens) para que todas as virgens desfrutem das delicias do amor. Vós, Parcas, dizem, confirmem vossas presenças em todos os lares, pois neles vós sois as sagradas deusas mais respeitadas.
Atená retoma o discurso para manifestar sua alegria pela deusa Persuasão ter colocado as palavras certas em sua boca, as quais venceram a dura resistência das Fúrias que assim depositaram suas bênçãos sobre a cidade.
O Coro clama para que a deusa Discórdia jamais inspire ódio e vinganças entre os atenienses. E que assim eles troquem as lutas fratricidas pela generosidade entre irmãos, pois só assim a Felicidade prospera entre os humanos.
Atená pergunta às Fúrias se elas descobriram o caminho da bondade? E diz que seus rostos, antes esquálidos, agora só prometem bem aventuranças ao povo. E que o amor que demonstram as fará veneradas para sempre e uma unanimidade em todo Mundo.
Responde o Coro desejando que os atenienses sejam prósperos e felizes, sempre ao lado de Atená e por ela, protegidos de Zeus.
Atená retribui-lhes os votos e pede que elas a acompanhem à frente de piedosa procissão até o caminho para sua morada. De lá, deusas, das profundezas da Terra, retenham os males que nos seriam destinados. E vós, homens ilustres de Atenas, mostrem a rota às bem-vindas recém chegadas.
Diz o Coro: tornamos a desejar felicidades aos moradores dessa cidade. Sejam eles, mortais ou deuses. Cidade que é de Palas Atená, seja-nos reverente, pois a deusa soberana deu-nos a cidadania, e serão felizes.
Atená congratula-lhes pela santa invocação e as convida a lhe seguirem, à luz das tochas, até a descida para as entranhas da Terra, em companhia de minhas seguidoras e da minha sacra imagem. Os olhos dessa minha cidade, que já foi a de Teseu (célebre herói grego), irão conosco nesse cortejo. Matronas e virgens adornem-se com belas roupas para que as bênçãos das novas cidadãs sejam constantes.
O povo que as escoltam cantam: marchem poderosas deusas, filhas da Noite; ao vosso lado seguem seus novos amigos e protegidos que irão convosco até a gruta subterrânea, onde as esperam santas oferendas e preciosas ofertas. Cidadãos de Atenas desejem-lhes bons votos! Aqui sereis sempre cultuadas como deusas benevolentes, pois sabemos que vós sois leais a nossa terra. Nossas tochas indicam vosso caminho divino. O povo de Atenas, o preferido por Atená, ganhou paz e felicidade e assistiu a união entre as Parcas e Zeus onividente. Gritemos de jubilo, cidadãos! Nossa ventura será perpétua.
São Paulo, 01/05/2011.
Dedicado ao anjo que se escreve com três letras. Feliz Dia das Mães!
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