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NÓS, MULHERES QUE VENCEMOS O CÃNCER PARTE I

Nós, mulheres que vencemos o câncer I
Rosângela Maluf

Parte I

Escolho um CD e vou direto à faixa de número quatro. É uma sonata para cello e piano, em sol menor, de Chopin. Ajeito o head phone, me deito, fecho os olhos. A vela está acesa, o incenso de mirra invade o quarto, já escuro, neste cair da tarde . Estamos nos primeiros dias de junho, início do inverno, faz um frio leve e ainda não são seis horas . Ainda há pouco o sol banhava o meu quarto de dormir a tudo tingindo de dourado. Agora já se vê uma estrela ou outra e pode ser que seja noite de lua cheia. Estou morta por dentro, sinto um aperto no coração, uma dor física mesmo.

E lágrimas, muitas lágrimas caem quentes e grossas down my face!
Vivi uma semana de cão: primeiro um exame de rotina, desses que a gente faz só para constar, na certeza absoluta de que nada existe de anormal. Em seguida o resultado, um tumor, histologicamente neoplásico.
Depois, uma semana de incertezas até sair o resultado da biópsia. Adenocarcinoma moderadamente diferenciado. Tantas palavras sonoras para dizer que se tratava de um câncer. Um susto enorme, mas que não me paralisa, pelo contrário, me impulsiona a agir com a rapidez de um pensamento.

Passo no consultório da minha ginecologista. Deixo os resultados. Telefono ao médico que fez o exame, peço a ele que ligue para a minha médica, que converse com ela. A não ser pela idade nada mais me inclui no grupo de risco.

Ele quer saber o porque do exame solicitado. Não tenho sintomas, não sinto nada, não tenho nada. Rotina, eu digo. Rotina ? Num exame ginecológico? Pois é, minha médica é muito cuidadosa, eu digo. Foi muito feliz em sua solicitação, muito feliz, ele diz.

E agora, eu pergunto?
Vou indicar-lhe um cirurgião, quero que vá vê-lo o mais rápido possível, é da nossa equipe aqui do hospital, especialista em coloproctologia e muito experiente nesta região onde está localizado seu tumor. Como assim, "meu" tumor? Já começo desde então a me dirigir ao tumor como um corpo estranho que não me pertence e já vou logo ordenando que saia do meu corpo. Ele não faz parte de mim.

Escolho um nome para ele: Ticriti. Gosto deste nome, lembra o Iraque, lembra Saddam, lembra coisa ruim que precisa ser exterminada. Como reikiana , utilizo a imposição das mãos e vou secando esta bolinha de gude que insiste em se manter colada nas paredes do meu cólon transverso. Chamo meus filhos, conto tudo. Sem, dourar a pílula.

Explico, desenhando, o que é, onde se encontra e as possibilidades : de cura, de controle, de fim da linha. Eles são muito maduros, ouvem com atenção, perguntam pouco, não choram, não lamentam, e ainda tratam o Ticriti como se uma pessoinha fosse. Vou para a Internet e aprendo tudo sobre tumores de intestino. Torno-me capaz de proferir uma palestra sobre o assunto, ainda que seja na Associação Médica.

Entro em dezenas de sites, vejo fotos, me informo sobre os diversos tipos de cirurgias, grampeamento, quimioterapia, radioterapia, colostomia. Quanto mais eu sei sobre o assunto, melhor me sinto. Gosto de saber tudo. Leio depoimentos, opiniões otimistas de médicos otimistas, relatórios, gráficos, estudos de casos, tudo que posso. Marco a consulta com o cirurgião. No consultório mesmo faço outro exame, agora para ânus e reto. Sigmoidoscopia normal.

Aí vem uma série de novos exames.
Tenho pressa, quero o mais depressa me livrar deste estropício!
Preciso agilizar, telefonar, marcar, exames de sangue, dosagem de CEA (antígeno cancerígeno embrionário), raio x de tórax, eletrocardiograma, avaliação de risco cirúrgico, avaliação do anestesista e a tomografia. Ah, a tomografia...foi ela a razão maior do meu alívio. Nenhum órgão comprometido, diz a médica, tudo em ordem, tudo normal. E, olhe aqui na tela, seu tumor, em preto: uma porrinha com menos de 2,0 cm. Fico olhando as imagens que passam rápidas na tela do monitor. Rins, fígado, um desfile bem fashion contrastando com o sulfato de bário ingerido entre náuseas e vômitos para deixar tudo branquinho como neve. E o Ticriti lá, em preto, redondinho, pequenino , bem pequenino.

Com todos os exames em mãos confirmamos o dia da cirurgia. Com todos os exames em mãos, preciso agora autorização pelo plano de saúde. Preciso confirmar o horário da cirurgia. Preciso me certificar de que a vaga existe mesmo. Preciso avisar à minha mãe, às minhas amigas que já fazem lista de revezamento para me fazerem companhia no hospital. Preciso me depilar, fazer uma escova, mãos, pés. Preciso fazer a malinha do hospital. Preciso deixar cheques preenchidos, contas a pagar, separar por datas, refazer a agenda, pedir ao meu filho mais velho que se encarregue de tudo.

Meus e-mails atrasados. Há dias não tenho tempo de abri-los. Respondo a todos, aviso a todo mundo, lanço meu grito de alerta principalmente para as mulheres da minha faixa etária. Peçam a seus médicos que incluam como exame de rotina a pesquisa de sangue oculto nas fezes, seguida de uma colonoscopia, caso necessário. Só assim descobriremos este bichinho silencioso que insiste em nos fazer tanto mal.

São seis horas da tarde do dia previsto para internação.
O telefone finalmente toca para me dar a péssima notícia de que o hospital não conseguiu disponibilizar a vaga solicitada: nem apartamento, nem enfermaria. O cirurgião liga logo em seguida para dizer a mesma coisa e tentar me consolar porque a estas alturas já estou em prantos. Terei que esperar, esperar, esperar...por outros longos sete dias.

Foram dias da mais completa, absurda, absoluta e total solidão!
Vivi dias de otimismo e tranqüilidade alternados com outros de profunda descrença e desânimo. Eu sozinha comigo, pensando e falando com os meus botões, torcida solitária por um final feliz. As noites insones, a espera pelos resultados, a confirmação de malignidade, minhas orações, as longas conversas com Deus, minha fé, meu propósito de entrega total, sem nada questionar: me senti vitoriosa. Não questionei, não barganhei com ELE, aceitei tudo, numa boa, juro! A fase de agradecimentos pelo bom prognóstico apesar de tudo. A fé. A falta de fé, tudo junto . Mas, sou humana e o desconforto de se saber portadora de um câncer é imenso, a tristeza, sem tamanho! E a fé, oscila e vacila...

Agora, caio num choro sem fim. Choro pelas tristezas acumuladas, pelos erros e vaciladas pela vida afora, pelos sonhos que desisti de sonhar, pelas construções inacabadas, por tudo que adiei, pelas escolhas, pelas trocas, pelas metas nunca atingidas. Não pretendo recapitular mas o flash back é inevitável. Quero agora chorar as lágrimas que até então, valentemente, sequei.

Alguns dias se passaram sem que nenhum tipo de desistência me fosse comunicado. Sendo assim, na 6ª. Feira me interno cedinho e lá vou eu rumo ao bloco cirúrgico revivendo as únicas duas vezes em que me internara em um hospital. Partos, só para ter meus dois filhos, animada, curiosa para ver a carinha dos bebês, vida, nascimento; quanto diferença para este momento de fragilidade.

Me sinto péssima desfilando deitada na maca, fico alguns minutos esperando no corredor antes de iniciar a cirurgia. Os médicos conversam, falam de futebol, do cabelo curto da auxiliar do anestesista e eu vou pensando que aquilo é visto por mim como se fosse um filme, onde eu apenas assistia. Finalmente todos chegam, me colocam o soro, me induzem ao sono e vou lentamente sumindo, me apagando.

Acordo e vejo o relógio da sala de recuperação: 8 horas se passaram desde a minha entrada no bloco. Estranho que tanto tempo tenha se passado, a previsão era de 3-4 horas incluindo o tempo que eu levaria para me refazer da anestesia geral. Não vejo ninguém por perto. Sinto o calor confortável de um imenso aquecedor sobre mim, nada de tremores, de frio intenso...melhor assim.

Chega uma mulher e me pergunta se está tudo bem...digo que sim, pergunto pelos meus filhos, se estão lá fora , esperando por notícias concretas. Vou sendo levada para o quarto. As luzes do teto ainda estão fora de foco, mas estou completamente lúcida. Com alegria vejo os meninos debruçados sobre mim. Pergunto o porque da demora. Entra o médico e procurando parecer natural me diz que passei um susto em todo mundo, ou seja, houve um problema inesperado, raro, chamado enfisema intersticial.

O que é isto, pergunto? Ele resume que os meus pulmões possuíam uma sobrecarga de ar. Ao ser entubada o ar que me introduziram somado ao excesso que existia em meu organismo me transformaram num pacote disforme, um inchaço generalizado, da altura das costelas até as orelhas. Foi necessário então interromper todo o procedimento iniciado, procurar um pneumologista que veio em socorro da equipe que me operava e aguardaram até que o próprio organismo se encarregasse de reabsorver o excesso de ar de maneira a permitir a continuação da cirurgia. Por isto a demora, o imenso tempo gasto.

Além do desconforto do pós-anestésico, do soro, alguma dor, a presença do meu filho mais velho, ali, dormindo ao meu lado, me reconfortava. Fui acordada durante toda a noite – impossível descansar : antibióticos, antitérmicos, analgésicos. Bastava pegar no sono a porta voltava a se abrir, a luz voltava a ser acesa, e todo o incômodo de ser despertada assim, brutalmente, me causava impaciência. Foram 4 dias e noites aguardando que tudo estivesse bem para que eu voltasse, enfim, para casa. Eu me sentia bem, tomava meus longos banhos pela manhã, ia ao banheiro sem ajuda, mas sempre carregando o tripé de ferro com frascos de soro dependurados.

Sexta, sábado, domingo, segunda e terça feira.
Finalmente, à tarde recebi alta médica. Me sentia bem, não tivera nenhuma alteração de pressão ou temperatura, tudo estava bem e eu me sentia feliz por voltar pra casa, e sem parar agradecia a Deus pelo tumor estar in situ, o que significava que uma vez retirado, nada precisaria ser feito. Agradeci por não ter que fazer químio, nem rádio, nada mais. Não perderia meu cabelo, obrigada meu deus .Agradeci por tudo e rezava muito, sem parar, principalmente durante as minhas noites insones.

Na quinta feira acordei indisposta. Mamãe, que viera passar uns dias comigo, dizia que é assim mesmo: um dia está tudo bem, o outro um pouco melhor e há dias piores, mas tudo passa, tudo passa. Assim mesmo ela voltou para casa, ainda durante a manhã, afinal o papai estava sob suspeita de pneumonia e aos oitenta e seis anos necessitava mais da presença dela do que da medicação prescrita.
À noitinha minha barriga estava imensa, a dor não dava trégua e logo vimos que havia algo de errado. Ligo para o assistente do meu médico que me pede urgência em comparecer no Pronto Socorro do hospital onde ele já estaria me aguardando. Meu filho mais velho me acompanha calado, uma palavra ou outra de ânimo, de coragem, mas ele também pressentia a gravidade do que estava por vir.

A burocracia irritante com pedidos de carteirinhas, papeizinhos, cartõezinhos, um suplício. Novamente lá estou eu, na maca. O mesmo teto branco, vários pacientes, dores variáveis, gemidos no plural. Soro, agulhas, picadas, tudo de novo. Sonda nasogástrica : desconforto indescritível, mil vezes passar por um parto. Um tubo introduzido pela narina, empurrado garganta abaixo até o estômago para fosse drenado um líquido esverdeado que vinha em grande quantidade. Já passava das dez horas da noite quando veio o diagnóstico: outra cirurgia de emergência seria necessária, algo de anormal estava acontecendo.

Não sabia mais no que pensar, tive calafrios, suores, senti medo, muito medo. Achei que poderia morrer ali, na sala de cirurgia, não tinha medo se morrer, tive medo sim, de deixar os meninos e implorei a Deus que não me levasse ainda, eu merecia tudo aquilo ?

Quando voltei da anestesia me senti estranha . Toco o abdômen e do lado direito encontro uma bolsinha. Meu Deus, tenho uma ileostomia, ou seja, a partir de agora, tudo o que eu ingerir vai para a bolsinha. Sinto um calafrio: e se de agora em diatne a bolsinha fizer parte de mim? Meudeusdocéu – isso, não. Não faço mais cocô até que seja re-estabelecida a ligação da parte seccionada. Respiro fundo, quero chorar, me assusto tanto. O inesperado me pega mal.

O cirurgião me conta das quatro perfurações no ceco, outra parte do intestino, distante da parte transversa onde havia sido feita uma anastomose na primeira cirurgia. Perfurações inexplicáveis, ele diz. Como? Claro que se trata de um erro médico e grosseiro ainda por cima, diz meu filho irritado e nervoso com tudo.

Minha via crucis apenas começava...

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quinta-feira, agosto 20, 2009 - 18:39

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romaluf

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Comentários

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Re: NÓS, MULHERES QUE VENCEMOS O CÃNCER PARTE I

Ninguém tem culpa de ter cancer e não são culpadas as outras pessoas que isto aconteça, mas medo, vergonha e preconceito atrapalham a pessoa de se sentir bem, de sentir-se gente após uma cirurgia destas.
Parabens um relato contundente.

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