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O Diário do Anjo Negro

O Diário do Anjo Negro Lúcio Sarmento
Hoje, parado nessa esquina escura, pela primeira vez me sinto um anjo. Um anjo-da-guarda. Não mais um tolo na noite, tentando fazer justiça com as próprias mãos. Mas um anjo protetor, cujas orações de uma alma inocente invocaram, desesperadamente, pedindo socorro. Uma situação que está me levando ao limite da sanidade. Temo pelo que serei obrigado a fazer, quando a hora chegar. Talvez, apenas vomite e desmaie. Ou estraçalhe o miserável corruptor, tornando-me finalmente um bandido. Um assassino. De qualquer maneira, preciso aguardar. Sufocar a ansiedade e esperar...
A espera começou há algumas semanas atrás. A escola fervilhava de vida pulsante, naquela manhã primaveril. Havia uma verdadeira torrente, que começava ao toque da campainha, anunciando a hora do recreio. Água viva que escorria das salas-de-aula, indo desaguar na área de recreação, formando um mar de risos, correrias e vozes plenas de felicidade. A vida, ali, era palpável, concreta.
- São como anjos, não é, Dona marta?
- Cruz-credo, diretor! Estes danadinhos estão quase me deixando louca! – a secretária se benzeu.
Sorri. Era quase sempre a mesma ladainha. É o que todos dizem, quando trabalham em escolas. No entanto, quando chega a hora de parar, de deixar para trás o “inferno” que consumiu nossas vidas durante muitos anos, é inevitável a dor na alma; a tristeza da partida; a angustiante despedida. Muitos até retornam à ativa, mesmo depois de aposentados.
- Não diga isso! Sei o quanto a senhora gosta do que faz.
- Eu, hein! Não vejo a hora de me aposentar. Vai provar a merenda? Ah, chegaram novos alunos transferidos para cá.
- Tudo bem. Quero ver os boletins e conversar com os pais. E traga-me, por
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favor, um pouco da merenda. Quero saber se é realmente boa, como dizem.
A secretária sai e me deixa ali, parado diante da janela. Aproveito para absorver um pouco da vida que emanava do lado de fora, da área de recreação.
A primeira vez que vi a pequena Izabel, impressionou-me seu comportamento retraído.
- Ela é sempre assim?
- É, senhor diretor. Izabel não é dada a muita conversa. Na antiga escola nunca fez amizade. – sua mãe me respondeu. Parecia inquieta. Às vezes preciso me controlar para não transforma uma simples entrevista, num verdadeiro interrogatório policial. Isso deixa as pessoas um pouco nervosas.
- As médias caíram. As primeiras avaliações foram ótimas, mas as segundas foram um desastre. O que pode ter ocorrido? – disse olhando o boletim e perscrutando o rosto da mulher. Parecia abatida.
- Saudades do pai. Ele faleceu há três anos. Izabel o adorava. Foi por isso que viemos para cá. Uma mudança de ares deve ajudá-la a esquecer.
- Eu sinto muito. De qualquer maneira, sejam bem-vindas! Tenho certeza que o contato com nossos alunos ajudarão Izabel a encontrar um pouco de alegria.
- Assim espero, diretor.
O tempo passou e o comportamento da menina em nada melhorou. Era um anjo acabrunhado. Vivia isolada e taciturna. Nem as tentativas da turminha da Alicinha surtiram o efeito de socializá-la.
- Coitadinha! Tão bonitinha, mas triste. Não é, diretor?
A secretária olhava pela janela.
- Concordo, Dona Marta. E vou fazer alguma coisa a respeito.
Encontrei-a sentada na calçada de sempre. Olhava fixamente para
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a imagem de um anjo. Era São Gabriel.
- Oi, lembra-se de mim? – sentei ao seu lado.
- Lembro. É o diretor. – disse, afastando-se um pouco, sem desviar o olhar da figura.
- Por que não está brincando com o resto dos alunos?
- Estou ocupada. – respondeu num tom quase inaudível.
- Ocupada com o quê? – abaixei o tom da voz, também.
- Estou rezando para este anjo. Vê? Ele parece forte. – para quem não falava nada, estava bem eloqüente.
- É. Muito forte. Com certeza, está te ouvindo.
- Não sei. Ele nunca vem. Eu chamo toda noite, mas ele nunca vem! – disse asperamente, quase chorando. Ia perguntar-lhe algo, quando sua mãe chegou para buscá-la. A criança pareceu relutante. A mulher a chamou com mais autoridade e a arrastou pelo braço. Parecia impaciente. Acompanhei-as com os olhos, até vê-las entrar num carro, que era dirigido por um homem.
O diálogo com Izabel ativou-me um sinal de alerta vermelho no cérebro. Uma criança pedindo desesperadamente o auxílio de um anjo não era nenhuma novidade. No entanto, aprendi a não ignorar meus instintos, alguma coisa estava errada.
Daí em diante, passei a monitorar ainda mais os movimentos da pequena Izabel. Percebi que ela ficava mais arredia, quando não era sua mãe que vinha apanhá-la.
- Quem é o senhor que vem apanhar Izabel? – perguntei à professora Beatriz.
- É o padrasto!
- Padrasto? A mãe dela não disse que havia um padrasto.
- Coisa feia, diretor! Deu para bisbilhotar a vida particular dos alunos, é?
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Sorrindo, ela se foi, me deixando a sós com meus pensamentos. Tomei a decisão de investigar.
No dia seguinte, pedi que trouxessem a menina na diretoria. Ela entrou e foi logo se instalando na cadeira.
- Fiz algo errado, diretor? Os meninos ficaram me caçoando!
- Não, meu bem. Não fez nada de errado. Lembra da nossa conversa sobre anjos?
- Lembro. Mas não quero mais saber!
- Por quê?
- Não acredito mais neles! Joguei fora o papel do anjo. Ele não existe!
Fiquei ali, observando-a. imaginando o que a fez desacreditar na imagem que mais atrai positivamente uma criança: o anjo-da-guarda. Uma idéia súbita me assaltou. Fiquei tonto e o gosto de vômito veio a minha boca. O coração acelerou desproporcionadamente. Não quis que ela percebesse o meu sofrimento. A vista escureceu. Queda de pressão? Assaltou-me uma vontade louca de chorar e abraçar aquele anjo indefeso. Tinha só nove anos de idade, estudava a terceira série e tinha tristes olhos castanhos. O cabelo liso, curto e com franjas emolduravam um angelical rosto rosado. Fui ao banheiro, chorei e esmurrei a parede. “Vou matá-lo!”, pensei.
Voltei para a diretoria. Ela continuava ali, sentadinha.
- Escute Izabel, anjos existem e vão te ajudar!
- Como? Já rezei tanto, mas eles não chegaram.
- É que você não fez da maneira certa. Ouça: quando você precisar de um anjo, reze, pegue um pano branco e pendure na janela. O anjo verá o sinal e virá em teu socorro. Será negro e forte, entendeu? Negro e forte.
A menina fez que sim e saiu.
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Agora, estou aqui na esquina, dentro do carro, esperando o sinal. Recusei o convite dos amigos para a costumeira cerveja de sexta-feira.
Dentro da casa de dois andares Izabel se encolhia na cama, rezando. A menina esperava que, naquela noite, o demônio não viesse lhe visitar. Era imundo, feio e cheirava à bebida. Suas esperanças se foram, ao escutar a discussão vinda do andar de baixo. Era sempre assim. Primeiro vinha a discussão; depois, a briga; depois, os passos na escada. Era ele, o demônio, que se aproximava. Lembrou do conselho do diretor e apanhou o lençol.
Do carro, vi o pano esvoaçando na janela. Era o sinal. Naquele instante, Izabel rezava freneticamente. Sai do carro caminhando a passos largos, cerrando os dentes e os punhos. Ao chegar à porta da casa, coloquei a máscara negra. A porta voou com o pisão que desferi e adentrei o recinto. A mulher estava caída e a boca sangrava. Apontou para o alto da escada. Subi, sentindo um aperto no coração que batia descompassadamente. Chutei a porta do quarto e me deparei com um homem gordo, sem camisa e com o cinto na mão. Izabel se encolhia na cama. Todo o ódio do mundo veio à tona. Ele tentou me esmurrar, mas o soco passou no vazio. Abaixei-me e esmurrei seu tórax volumoso, ouvindo seu berro de dor. Um murro esmagou seu nariz; outro, deslocou seu maxilar. O tarado caiu sobre o criado-mudo, quebrando-o. Trôpego, tentou se levantar, mas um chute bem dado no rosto o prostrou de volta ao chão. Saltei sobre ele, cego de ódio. Minhas mãos subiam e desciam esmurrando-o. Uma raiva insana apoderou-se de mim. “Vou matá-lo!”, pensei, cerrando os dedos ao redor do seu pescoço, sufocando-o. Apertava sem piedade. Vi seus olhos esbugalhados e a língua para fora. Em dado momento, parou de se debater. “Vou matá-lo!”, pensei novamente. Nesse momento, a mão de um anjo pousou no meu braço. Olhei para ele e a razão voltou como por encanto.
- Você é meu anjo ou mais um demônio?
Aquelas palavras tiveram o efeito de um balde com água nas labaredas. Afrouxei os dedos e levantei. O homem estava desmaiado, porém vivo. Carreguei a menina nos braços e desci a escada. Encontrei a mulher
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chorando. Coloquei a menina no sofá e disse:
- Vá à polícia e conte tudo. Do contrário, eu voltarei para fazer justiça!- virei para Izabel – Adeus e fique em paz!
- Adeus, meu anjo-da-guarda!
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Pela primeira vez na minha vida, a tagarelice dos meninos não chegava aos meus ouvidos. Parecia um som muito distante. Meus sentidos estavam fixos naquela porta. De repente, ela se abriu e aquela mulher entrou, trazendo Izabel pelas mãos. Aguardei que começasse a falar. Para meu espanto, veio solicitar nova transferência e me falou do assalto que sofreu no fim-de-semana. Recomeçariam a vida em outra cidade, assim que o marido saísse do hospital.
- Cale-se! – interrompi. – Um amigo me contou o que aconteceu. Por que não fez o que ele mandou?
- Não posso! Ele me matará, se...
- Basta! Aqui está o telefone! Denuncie seu marido agora, ou a denunciarei como cúmplice!
A mulher hesita. Trêmula, estende a mão para o telefone. Enquanto espera ser atendida pelo delegado, converso com Izabel.
- Obrigada por me ensinar a rezar direito. Só assim o anjo me escutou. Era negro e forte como o senhor disse. Ele me salvou.

Sorri. Ela parecia feliz. Não sei como será sua vida daqui para
frente. Só sei que será melhor, com certeza. E eu darei um jeito de estar sempre por perto, quando ela mais precisar. Como um verdadeiro anjo-da-guarda FIM.

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quarta-feira, fevereiro 3, 2010 - 15:27

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lucio

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Re: O Diário do Anjo Negro

Parabéns pelo belo texto.

Um abraço,
Roberto

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Re: O Diário do Anjo Negro

Olá, Roberto.
Geralmente se cria um herói para ser a voz que
expressa a nossa indignação com as injustiças que
nos cercam.Obrigado pela gentileza do comentário.
Um abraço.

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