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Produção do tempo - Quarto dia
Fixa o teu olhar, não desvies o teu olhar, fixa o meu, fá-lo cintilar num brilho único. Um vidro reflectido à luz intensa. Ela me dizia, olhando-me. Olha-me, então, com o teu melhor olhar. Deixa-me ficar em silêncio enquanto me olhas. Estou em silêncio, ficarei em silêncio por que me olhas. Mas, o teu silêncio não pode perdurar, não o deixes ir além, não deixemos que o silêncio fale por nós, mais do que nós. Nada nos escapa, não podemos escapar a nada.
Vendem-se palavras, compram-se palavras, frases completas, discursos, argumentos, homilias, palavras para certas ocasiões, frases de amor para oferecer a quem se ama, a quem se vai amar, quem se amará ou quem se amou. Discursos de despedida dos outros, homilias que convençam ingénuos e cépticos, argumentos de entusiasmo pela eternidade, sílabas avulso de apelo à felicidade, compaixão, solidariedade. Vendem-se argumentos se queremos ser felizes, compram-se, em mercados de retórica, raciocínios que um dia teremos disponíveis se a alegria se rasga. Palavras estão à venda e compram-se, prevendo o dia da nossa morte. Tememos tanto as palavras, queremos palavras, queremos tanto as palavras, tememos a palavras. Não é a vida que nos interessa, é a explicação da vida. Sim, com a venda em quiosques de palavras ou das palavras – depende -, vendemos explicações. As mais simples, explicações elementares, às mais complexas, as essenciais, sejam simples ou complexas. O importante é explicar. Encontro numa palavra a minha vida, direi, o sentido da minha vida está numa palavra. Onde poderia encontrar o que procuro? Onde encontras o que procuras? Onde foste procurar? A quem perguntaste o sentido da tua vida? Por onde andaste que não te encontraste? O grande sentido da vida está à venda num quiosque de palavras. Há uma grande variedade de palavras, a dificuldade está em saber escolher. Depende das circunstâncias. Muitas palavras já não me servem, usei-as e abandonei-as.
Quando não prolongamos o silêncio podemos ir muito longe. A nossa dificuldade é começar. Experimento: na neblina da noite foi onde encontrei a luz mais intensa; sem um nome, o que vai existir ainda não existe; e percorro a madrugada como se fosse uma floresta, quero conhecer antes da aurora todas as árvores, na clareira do dia hei-de saber nomeá-las.
Troco metáforas por outras metáforas, quero conhecer essa realidade, descreve-me essa realidade, emprega as tuas melhores metáforas, narra-me as realidades que não vi. Não percas as emoções, mesmo que não voltes a senti-las. Ofereço as minhas mais íntimas emoções, talvez possamos viver tudo de novo, talvez possamos trocar a vida enquanto trocamos o olhar. Que emoção! Terei de compreender.
Se dissesse, como entenderias? Digo: aqui, o dia se esvai e afirmo ao dia que se esvai, um hábito para me reconhecer, enquanto passam personagens respirando, de ar solene, o ar solene de ruas anónimas. Escrevo. Escrevi. Não escrevo confissões, mas a dissolução, dissolver é renovar, deslizar, negar uma confissão, a confissão é assunção de culpa. Nós não somos culpados.
Trocamos de metáforas, é o nosso acordo, cada dia. O que dizemos de nós só em parte sabemos, do que vivemos só uma parte retemos. Inventamos para explicar o que vivemos, sentir o que não vivemos. O que preferes? Como reconheces a linha que te separa? Onde estás, que lugar ocupas? Preferes ficar na linha, permanecer na fronteira, nenhum passo que nos defina, definitivamente. E não é que, curiosamente, não sejamos capazes de voar.
Quando vier a noite, como ontem na repentina obscuridade, ouvimos como nunca – num pronunciar subtil que atordoa – a voz do filósofo: “jamais se deixa de ser um outro”.
Na iluminação da noite, voltamos ao olhar. Repito, queremos entender, queremos saber o que olhamos. Não temos nenhum espelho, não confundamos o seu brilho. Não temos nenhum espelho que reflicta qualquer essência. Uma perspectiva, múltiplas perspectivas, a realidade marcada pelas características do olhar. Ou, então, mil espelhos e todos os brilhos que possam cintilar.
Que outro sou eu, que outro sou hoje? Quem tu vês? Quem vemos? Talvez nem me conheça, nem eu me conheço. Quem somos? Fragmentaste-te por um só dia, todos os dias, encontro-te num palco e surges entre a névoa, surges para representar o que nunca se ensaiou. Frente a frente. Frente a frente nos olhamos, assim, a pluralidade de nós, já não buscamos conhecer-nos de outro modo. “Jamais se deixa de ser um outro”. Eu fragmento-me, tu fragmentas-te, eles fragmentam-se.
Deveremos voltar às metáforas - como as belas sombras de jardins reais, o toque dos lábios nos lábios, a intuição das folhas ao vento, imagens habitando as pálpebras, o céu das formas sobre o mar, a ontologia dos jardins liquescentes, árvores invisíveis no vale dos sonhos e areais longínquos para traçar a memória e a noite onde vieste de vestes púrpuras ouvir as fontes, horas no encontro das aves, esse desejo vivido na pele do delírio, a aurora na irrisão dos ombros da manhã, tuas veias rondando os véus do corpo, quando dias sensíveis do crepúsculo, o que escrevi sobre a tela do fascínio, mapas do assombro, profusão de pétalas nas alamedas do ar e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e.
Trocamos de metáforas, nosso repto. Trocamos de metáforas em qualquer momento de ondas, filtramos sílabas num espaço aéreo.
Eis as metáforas possíveis para inventares a realidade:
como as belas sombras de lábios reais, o toque dos sonhos nos lábios, a concepção das folhas ao vento, imagens debitando as pálpebras, o céu das formas sobre os vales, a metafísica de jardins imarcescíveis, árvores invisíveis na planície dos lábios e areais longínquos para traçar a noite e a noite onde vieste de vestido translúcido ouvir os bosques, horas no encontro do desejo, essas aves vividas na pele da aurora, o delírio na irrisão dos ombros da manhã, tuas veias rondando o corpo das veias, enquanto dias sensíveis do poente, o que escrevi sobre a tela da impaciência, apontamentos do assombro, infusão de sombras nos corredores do ar e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e e .
As palavras, escolhê-las com o objectivo de descrever a vida. Comprar as palavras mais exactas e saber quem somos. Que elas sirvam para explicar o que vivemos, a solução do que viveremos. Trazê-las no bolso, como maços de notas, utilizáveis em cada momento oportuno e nunca nos enganarmos, nunca nos enganarmos. Sim, eis a solução, num bolso de casaco, repito, a solução da vida.
É tarde, fiquemos em silêncio, olha-me com o teu melhor olhar, deixa que perdure o silêncio. Cintile este brilho num espelho pela reminiscência da noite.
Regressemos ou voltemos.
Pela manhã compramos as palavras: as palavras exactas.
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Comentários
Re: Produção do tempo - Quarto dia
Carlos, as palavras exatas... Silêncio. Lindo texto. Bjos :-)