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Só os humildes perdoam

Só os humildes perdoam

O mês de Outubro estava no seu final, frio e chuvoso e anunciava um Outono igual a tantos. O dia, a correr sob um ocaso encoberto pelo cinzento manto de nuvens, estava mesmo terrivelmente desagradável, era Outono e reinava a chuva.

A estrada, como tantas outras neste belo jardim à beira mar plantado, apresentava as naturais, grandes e habituais poças da água da última chuvada. No escuro céu os energéticos e luminosos riscos surgiam quase simultaneamente com o fortíssimo ribombar dos trovões, cujo rugir fazia tremer a terra enquanto o vento, gélido e teimoso, insistia em dobrar as árvores.

Ladeando a sinuosa via, os valados ora se elevavam, cobertos de cerrados silvados e mantas de entrelaçados marmeleiros, ora desapareciam para dar lugar a altas ribanceiras, quais e pequenos precipícios, sob as várzeas já ameaçadas pelo extravasar dos já tumultuosos caudais das pequenas ribeiras pluviais.

À beira da estrada, cujos passeios não passavam de estreitos carreiros repletos de profundas poças de barrenta água, seguia um casal, curvado, quer pelo peso das ensopadíssimas roupas mal protegidas da chuva pelas sacas de serapilheira que usava como capa, quer sob os já muitos anos de dura existência.

Ele, de nome João Marques, de carnes secas, pele dura e queimada pela longa odisseia de trabalhador rural, nos seus sessenta e cinco anos de idade, descurando a protecção do seu rosto sulcado pelas rugas, testemunho da sua resistência à dureza da própria vida, procurava proteger a sua parceira de quatro décadas e mãe dos seus três filhos, que nas suas seis décadas de vida, dobrada pelas amarguras de uma existência de bons e maus momentos, se acolhia, como sempre, à protecção dos cansados braços que a rodeavam com a ternura de sempre, moldada num amor vivido e construído com cada dificuldade a enfrentar e vencer.

Os pés, ensopados, nem procuravam já desviar-se das poças, limitavam-se a andar o mais depressa possível em direcção à protectora casa de muitos anos, construída em adobes pelas vigorosas mãos de um casal jovem e recheado de sonhos.

João conheceu a sua Margarida Maria e juntos projectaram o seu futuro e concretizaram o seu sonho no pequeno círculo que sempre conheceram, no mundo rural que o rodeava e limitado por inacessíveis horizontes.

Num pedaço de terra cedido pelos seus pais, João, tendo a seu lado a muito jovial Margarida, meteu entusiasticamente mãos à obra e, entre sorrisos e cansaços, construiu o sonho de ambos, a sua casinha. Amassaram a negra terra, pisaram-na nos moldes, fabricaram os adobes e construíram as paredes do seu castelo.

Nele viveram os seus melhores e piores momentos. Na sua casinha, sempre alva pela mão da diligente dona de casa, viveram as alegrias dos nascimentos dos seus filhos, duas raparigas e um rapaz, hoje já pais e a viverem na grande e longínqua cidade onde os horizontes não são tão limitados.

O vento rugia teimoso, forte e gélido, como se pretendesse castigar a ousadia de tão corajoso casal que o desafiava. O dia escurecia rapidamente, quer sob o efeito do temporal, quer pela despedida do escondido Sol.

Curvado o casal continuava a sua marcha, com o cansado olhar fixo na direcção do seu protector castelo, fustigado pelas grossas e frias bátegas, com João a colocar todas as suas forças na protecção da sua companheira, mulher, mãe e amante de sempre.

Um sorriso surgiu, em leve esboço, nos pálidos e trémulos lábios, ao avistarem a sua alva casinha para além da apertada curva a uns trezentos metros de distância. Uma luz, verdadeiro farol, aquele branco ponto a sobressair na crescente negridão. O desejado porto de abrigo, que os aguardava com a sua larga lareira, onde fácil e rapidamente se acenderia uma acariciante fogueira para aquecer os gélidos corpos sequiosos de conforto.

Todavia o destino reservava-lhes algo muito diferente do que tanto desejavam. Na sinuosa estrada recheada de poças um carro rodava veloz. Um potente veículo que só alguns podiam ter rugia sob a potência dos seus muitos cavalos. No seu habitáculo um casal, muito jovem, pleno de vida, regozijava com o fortíssimo roncar do motor e, exalando o fumo dos seus cigarros, quase nem ligava à chuva que lhe toldava a visão, apesar da rapidez do limpa-vidros, ocupado com as suas brincadeiras de jovens namorados.

Nisto o condutor avistou o compacto vulto formado pelo idoso casal à beira da estrada e no momento em que este passava junto a uma grande poça de água que quase cobria toda a largura da via e, com uma ruidosa gargalhada de pleno gozo, acelerou e pisou a água que, face à violência da passagem, saltou feita lençol e quase derrubou os curvados idosos.

João teve que se esforçar completamente para não cair e para segurar a companheira, como ele completamente ensopada e resmungou furibundo, quer contra o que havia acontecido, quer por reconhecer o carro e os seus ocupantes.

--Filhos de uma....
--João!
--Desculpa-me mulher. Mas...está bem desculpa-me...
--Assim gosto, homem meu. São jovens, deixa lá.
--Tu...só tu, minha velha, para me falares desse modo. Mas os grandes...pronto está bem, eu calo-me.
--Eu já lhes perdoei.
--Pronto, pronto.

Nisto estremeceram e violentamente, ao ouvirem um ruído, muito forte, quase parecido com os assustadores trovões que sobre si rebentavam, mas cujo significado perceberam. Não hesitaram e correram, conforme lho permitiram as suas cansadas pernas, galgaram os duzentos metros que os separavam da apertada curva, completamente alheios à chuva que os fustigava, para depararem com a confirmação dos seus receios.

Fora da estrada, na baixa várzea, para além da curva, onde a água pluvial já ameaçava cheia ao abandonar o furibundo caudal da pequena ribeira, sobre uma grossa árvore de desconhecida idade, empinado com a frente virada à ramalhuda copa, encontrava-se o automóvel.

As portas abertas, os vidros partidos, toda a sua parte frontal esborrachada pela violência do embate e no solo, sobre a alta e molhada erva, de rostos virados ao céu, inanimados, os dois jovens sangravam dos seus ferimentos.

Palidíssimo João saltou para a várzea, ajudou a companheira e ajoelharam ambos juntos aos corpos, reunidos num sobrenatural esforço de apego à vida, com Margarida, comovidíssima, misturando as lágrimas de dor com a fria água que lhe escorria do alvo cabelo, a proteger os molhados e imóveis rostos com o seu encharcado xaile, esboçando um leve sorriso face à trôpega corrida do seu João em busca de auxílio.

Apesar de muito rezingão por vezes, o seu homem continuava o grande coração de sempre, incapaz de guardar qualquer rancor, tal como ela própria, que já havia esquecido e perdoado a leviandade daqueles jovens agora caídos nos seus trémulos e cansados braços à mercê da benevolência Divina.

Só os humildes conseguem perdoar.

                                       

                                                                                 JSS

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sexta-feira, junho 22, 2012 - 16:11

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José Sereno da Silva

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