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SEGREDO - 4
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Em princípio a minha biografia nada tem de assinalável que mereça ser contado. Isto até aos vinte e cinco anos, idade em que encontrei o Nando, me enamorei apaixonadamente e me casei com ele. Hoje estou com trinta e seis, e o nosso percurso de vida conjugal até há dois anos atrás foi o típico dos jovens pouco amadurecidos que se cruzam numa paixão violenta, e cujas ilusões pouco sobrevivem às necessidades materiais do quotidiano e ao próprio fio do tempo.
Há cinco anos a minha relação com o Nando sofreu um certo abalo: descobri inesperadamente que ele andava com outra mulher. Foi mesmo na véspera da minha partida para um dos seminários de avaliação de objectivos comerciais, a que, por minha competência, era hábito ser convocada. Nestes períodos de verdadeiro isolamento, a nossa família passa a ser um grupo de pouco mais de trinta colegas. Habitualmente reunimos durante uma semana e todos desenvolvemos um trabalho esgotante ainda que compensador, que implica o melhor da nossa concentração e objectividade. Na altura foi o que me valeu. Quando regressei a casa, depois de uma última noite de divertido lazer para descomprimirmos a tensão acumulada, já pude enfrentar a frio a infidelidade do Nando. Nos dias seguintes muito reflecti sobre nós. Passei em revista o nosso passado, muito bonito, que já me parecia remoto, o presente que continha amizade mas era morna acomodação, e encarei o futuro, com muita reserva porque se bem que gostasse de conservar o Nando comigo não me via capaz de tanto desprendimento quanto o necessário para o compartilhar com outras. Não acreditava que ele quisesse a separação. Também admitia que para ele quaisquer outras mulhares não passariam de casos passageiros. Como não tínhamos filhos e eu já perdera a esperança de os gerar, resolvi acautelar as minhas intimidades com ele e cultivar o meu sentido de liberdade que eu lhe hipotecara na hora do casamento, e o Nando, por idiossincrasia masculina, posso concordar com isso, não andava a respeitar. Agora, dito assim, este comportamento até parece ter sido simples de concluir e de adoptar. O meu marido fora sempre gentil e agradável para comigo, e mostrava-se meu amigo e compreensivo, que eu também tinha uma profissão exigente. Estávamos razoavelmente instalados na vida. Preferi manter o Nando sob discreta observação. Nunca lhe disse que sabia, mas sem sobressaltos fui arrefecendo imenso as nossas relações de cama. Durante algum tempo consegui iludir a minha insatisfação, mas meses depois deixei-me tentar por um dos tímidos que frequentava o ginásio onde eu não desistia de manter em forma a minha elegância natural e que, literalmente, sempre que me via me cortejava com olhares devoradores embora quase não fosse capaz de dirigir-me uma palavra. Considerei que já não tinha obrigação de fidelidade ao Nando. Aliás, o nosso amor convertera-se em boa amizade; isto não era hipocrisia, mas um modo de vivermos o nosso cómodo casamento em perfeita paz e harmonia de interesses e atitudes. Posso mesmo dizer que, por meia dúzia de semanas, que foi quanto durou o meu devaneio com o tal pateta tímido do ginásio, a proximidade afectiva entre mim e o Nando retomou uma feição surpreendentemente mais estreita.
Pode suceder que o meu marido tenha sido tão circunspecto a respeito deste meu caso, como do que se lhe seguiu um ano depois, e também breve, com um amigo comum, como eu me comportei em relação às aventuras dele, que eu deliberadamente desconheci, mas acredito que o Nando nunca tenha sabido de nada. E, não sei mesmo se algum dia se terá interrogado acerca da minha seriedade matrimonial, de tal modo eu agi sempre com recato. De todo em todo também creio que esta situação, sem estar esclarecida de parte a parte, a qualquer momento poderia ter um desfecho muito difícil de ultrapassarmos. Nunca se está livre de terceiros, que querendo magoar-nos são implacáveis e, por inveja, sempre por inveja, tornam publicamente insustentáveis aquelas vicissitudes que a sociedade farisaicamente reprova. Muito provavelmente só nos restaria o divórcio.
É muito raro eu agir impulsivamente, e quando assim cedo aos meus instintos podem apostar que metido na circunstância há um homem tímido. Foi o que aconteceu no Domingo passado, o último dia de mais um dos habituais seminários de Marketing da minha empresa. Um dia obrigatoriamente consagrado ao descanso e descompressão mental, ainda em grupo. A manhã, na praia privativa das nossas instalações residenciais, estava excelente. Fazendo horas para o almoço eu estava na Esplanada, abancada numa mesa ao acaso, onde a confraternização corria ruidosa e picante mas sobretudo espevitada pelas perspectivas de promoções pessoais que se desenhavam ante o sucesso comercial que este ano está a proporcionar à empresa.
Incrivelmente, sem dar conta em absoluto, estive muito tempo sentada, e divertida como os outros, ao lado do Maurício, o homem mais simpático e também mais qualificado da Força de Vendas; o colega com quem há anos mantinha o tipo de relacionamento mais formal e distanciado, talvez porque desde que havíamos sido apresentados fora ele próprio a não se interessar por facilitar e amiudar o nosso contacto. Para mim, um “tímido”... Mas quando o vi levantar-se, murmurar uma escusa, inevitavelmente roçar nos minhas pernas para conseguir passar, e afastar-se em direcção ao Bar, a presença dele consubstanciou-se finalmente na minha mente, e no meu corpo, porque aquele ligeiro toque nos meus joelhos electrizou-me e desconcertou-me.
Por instantes sofreei o impulso emotivo, poderosamente insinuante, que tomou conta da minha vontade. Mas logo depois ergui-me sem hesitar e dispensando explicações fui atrás dele, a pensar que ele ia passar a Director-Adjunto e portanto era exactamente a altura menos apropriada para se me tornar irresistível e oxalá que ele não encarasse a situação por essa faceta, que não era verdadeira, e nem eu sabia o porquê de “agora” embora há muito tempo suspeitasse que a nossa mútua indiferença poderia um dia embaraçar-me mesmo.
Quando o vi olhar para trás fiz-lhe um aceno para que me aguardasse, não fosse ele tornar para a mesa e o que eu ansiava era sair dali e levá-lo sozinho comigo sob qualquer pretexto a que ele anuísse, para conversarmos ou estarmos calados, o que ele entendesse, mas juntos, talvez de mão dada, muito sorrateiramente por causa dos outros, e se ele se não assustasse, que por mim não tinha dúvidas de que o meu sexto sentido estava a mandar no meu coração com uma fogosidade que eu já não me conhecia.
Esperou-me, e ao pé dele fitou-me, mudo, olhar meigo e tão interrogador que as minhas ideias para o cativar baralharam-se e só fui capaz de exclamar uma tolice que poderia ter estragado tudo “– Apanhado em flagrante...”, querendo eu dizer que topara a sua intenção de se escapar dali, mas sibilada num murmúrio que eu enchi de cumplicidade e de sorriso. Depois lá remendei o meu dito e concordámos em irmos sentar-nos sossegadamente num murito que delimita o areal, bem mais pertinho do mar.
Qualquer coincidência entre a realidade
e os factos ou personagens deste obra é,
precisamente, coincidência ficcional.
Escrito de acordo com a Antiga Ortografia.
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