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SOBREVIVENDO COM O CÂNCER - 2ª PARTE

CAPÍTULO 02

Meu pai foi um comunista de carteirinha. Em casa havia sessões de espiritismo e concomitantemente seguíamos os dogmas da igreja católica. Com direito a crisma, batizados, procissões e tudo mais . Cresci entre o racionalismo de Karl Marx, o humanismo religioso e o simbolismo supersticioso do esoterismo. Da junção, então, do racionalismo com o místico formei minha identidade religiosa. Acreditava em Deus mas sempre o achei muito distante de minha capacidade de compreendê-lo e afastava a tentação de humanizá-lo. Racionalmente, pensava, que Ele estava em uma esfera e eu em outra. Se o chamasse não me ouviria e em contrapartida não deveria incomodá-lo posto que Ele já houvesse me dado todas as condições para que eu existisse. Sua tarefa teria se encerrado aí.
Entretanto, nunca me conformei que a vida pudesse estar contida apenas na matéria e todavia, não me convenciam os apelos habituais. Não!Se eu nasci foi para dominar o pior dos elementos: eu próprio. Para isso teria que travar uma luta diária contra as facilidades do comodismo, da subserviência, da falsa humildade e do gosto pelas coisas que julgava corriqueiras e que fazem à alegria da maioria.
Teria que ser o “Super Homem” que Nietzche propôs um dia.
Ao ler, pela primeira vez “Assim falava Zaratustra“ encontrei o meu modelo. A força da vontade imperando contra o obscurantismo da mediocridade humana. A propriedade do destino. Busquei viver essa teoria e exigia de mim um detalhismo tão perfeccionista quanto pernóstico. Não podia admitir a fraqueza, o interesse tacanho e principalmente a servilidade. Valores abstratos e talvez ultrapassados, tais como a vergonha de falhar, de fraquejar, foram objetos de culto em toda a minha vida . Agora, no entanto, posso ver que essa soberba, muito menos que pelo niilismo, foi originada pelo excesso de situações humilhantes que já houvera passado na vida. Jurei que tão logo pudesse não seria mais ofendido. Assim que pude, coloquei meu recalque em evidência e me recusava a pedir. A herdar. Odiava ter que solicitar favores. Vacilava até mesmo em exigir direitos. Eu deveria pairar acima dos comuns! E vivi essa fantasia até o dia 02 de abril.
Falido financeiramente, em vias de perder meu filho e sob a ameaça de ter câncer, a quem recorrer? Nietzche que me desculpasse, mas Deus era mais reconfortante. Primeiro, fui tomar “passes” em um centro espírita. Reconhecia a boa vontade de quem me levou e de quem os ministrou. Porém, o que eu queria era algo mais íntimo. Sem intermediários. Na igreja católica escolhia o horário em que estivesse mais vazia e me postava por longas horas. Buscava me lembrar das orações que havia aprendido na infância e tentava recitá-las, mas o formalismo dos versos prontos ainda impedia o contacto que eu queria, até que em certo dia, uma moça sentou-se ao meu lado e, sem nada falar, me sorriu. Nunca mais a vi depois desse dia pois certamente voltou para a sua outra vida. Trazia consigo um despojamento que me encorajou a tirar a fantasia de “Super Homem“ e consegui chorar.
Daí em diante o diálogo ficou muito mais fácil. Sem que eu lhe pedisse, Ele ofereceu o que eu mais buscava. Guardei com carinho a serenidade ofertada e me preparei para enfrentar o que estivesse por vir.
Ainda não era íntimo de Mr. Hodgkin, mas entendi o motivo de sua visita quando me devolveu à condição de humano e me deu o direito de fraquejar. Que fosse, então, bem - vindo!

CAPÍTULO 03

Até meados de maio acrescentei à minha rotina diária uma novidade. Mais que um lugar, um hábito. Deixava meu filho no colégio, minha mulher no consultório e rumava para a igreja. Quase sempre das 7h às 9h ficava refletindo , dando asas à imaginação e tentando entender o porquê toda aquela situação estava acontecendo comigo. Afora minha prepotência, minha vaidade, meu retraimento e tantos outros defeitos julgava não ser merecedor daquela situação. Sempre trabalhei muito e honestamente, nunca me envolvi em fatos duvidosos, ajudava a todos sempre que possível e necessário e tinha, sim, algumas outras qualidades. Os erros que cometi foram por ter tentado e nunca por omissão . Sentia que a vida tinha me traído. Tanta miséria já tinha passado, tantas dificuldades e agora mais essa. Por quê?
Da igreja seguia para a loja e para novamente me frustrar com o resultado do dia anterior, fazer e refazer mil contas e ver que o dinheiro disponível era insuficiente para as necessidades. Todos os dias a mesma rotina. A mesma aflição.
Em 15 de maio - aliás uma data que eu sempre associara a algum evento perdido em minha memória estive no consultório da hematologista. O tempo que tive que aguardar para conseguir essa consulta e a quantidade de pessoas na sala de espera já sugeriam a sua fama. Durante a consulta a sua objetividade e gentileza me fascinaram. Alguns dias depois seriam a sua honestidade e o desprendimento. Procedendo ao exame clínico, constatou os gânglios enfartados e indicou a necessidade de biópsia. Chamou seu marido, cujo consultório é vizinho ao seu e juntos demarcaram o local a ser operado. Acertamos a operação para a terça-feira seguinte, em regime ambulatorial e sem anestesia geral. Disse ser inútil declinar algum prognóstico antes da biopsia mas que estaria torcendo por um bom resultado.
Novamente os problemas de acne que tive no passado me ajudaram a não temer o procedimento, pois uma incisão como aquela seria igual a tantas outras que já fizera. O final de semana repetiu os últimos e novamente busquei o isolamento quase total. Sem sucesso, é verdade. Aproveitava as folgas que as brincadeiras de meu filho me permitiam ou, então, os intervalos das visitas de amigos para remoer minhas dúvidas, aflições e ressentimentos.
Mas também para começar a encarar a morte. O condicionamento da educação e da natureza previam a vida, mas as dificuldades e mágoas de agora começavam a sutilmente sugerir que talvez aquela fosse uma saída. Diriam os puritanos, uma fuga. Que fosse! Ainda que não assumisse, já sentia certo prazer com a pior hipótese. A traição, que julgava, a vida estar me aprontando, resultava nessa indiferença pela mesma. Já não era importante viver.
Na segunda-feira fui contatado pela secretária da médica avisando-me de uma mudança nos planos. Eu deveria me internar naquela noite e seria operado na manhã seguinte, sob anestesia geral. Segundo ela, para efeito de maior conforto. Apenas por isso (sic). Durante o dia vendi o único bem que me restara e com o carro se foi a minha mobilidade e a perspectiva de voltar logo a viajar para atender os meus clientes. Com o produto da venda paguei os vencimentos mais urgentes e à noite me internei. Na manhã do dia seguinte, antes de adormecer completamente sob efeito da anestesia ainda vi, de relance, o rosto do anestesista com quem eu tivera oportunidade de conviver nas festas nos bons tempos. Por volta das 15 h acordei muito bem disposto. O incômodo do soro e uma leve dor no corte não conseguiam fazer frente ao benefício do sono. Após vários dias tinha conseguido uma trégua. Eu tinha dormido! Senti fome, vontade de levantar, de viver. Fui contente, na cadeira de rodas, até o setor de radiologia para ser submetido a uma ultra - sonografia do abdômen, a qual segundo o médico indicava uma lesão no fígado, mas que poderia ser apenas um sinal de nascença. No laudo, entretanto aventou a hipótese de ser um hemangioma ou um “TU hepático”. Naquela noite dormi novamente e no dia seguinte recebi alta e, novamente, uma resposta vaga do médico. Todos nós, Sr. Fábio, estaremos torcendo para não ser câncer.
Não morrera e como o corte estava cicatrizando tão bem era evidente que não tinha nada maligno (novamente usava uma teoria que havia lido não sei onde). A falta do carro começou a prejudicar a vida da família, pois morávamos em uma casa distante de tudo e o longo caminho tínhamos que vencer andando. Além do dinheiro, começou também a faltar tempo. Fui a uma concessionária, fizemos um novo financiamento e só não compramos o novo carro por resistência de minha mulher. Não entendi o motivo dessa resistência, em vista da necessidade que estávamos passando e da, ainda, possibilidade de pagar as prestações. Mais tarde iria compreendê-la.
Os dias passando e cada vez mais a tensão crescendo. O dinheiro da venda do carro não foi o bastante para suavizar as contas, as vendas em declínio e o ambiente em casa se deteriorando. Eu próprio estava deteriorando. Foram momentos de tanto pavor, ressentimento e mágoas que passei a encarar a morte como uma desejada amante. Tudo o que escutava, o que pensava e o que tinha ouvido ou visto indicavam que me tornara apenas “O INCÔMODO“.
Via a vida em sua pior feição e não mais a queria. Estava cansado. Muito cansado.
O câncer teria vindo a calhar. Seria o suicídio perfeito. Com álibi e sem culpa. Ali estava a desculpa para os meus fracassos. Todos veriam que não consegui ganhar bastante dinheiro pois quando iria começar a maldita doença interrompeu esta fase. O meu verdadeiro potencial nunca poderia ser conhecido. Todas as responsabilidades cessariam. Tudo seria perdoado. Não sei se Freud explicaria. Contudo, o vírus me justificaria.
Assim, no dia 27 voltei à hematologista em busca do resultado da biópsia. Quase ansiando para que fosse positivo. Ainda não chegou, Sr. Fabio. Deve estar no laboratório, no andar de baixo. Desci dois andares e a recepcionista me pediu para aguardar, ao contrário dos demais para quem entregava os envelopes. Após alguns minutos fui convidado a entrar na sala do médico responsável. O convite me significou, de imediato, que algo de anormal havia e a desarrumação do ambiente - na verdade um
laboratório com uma mesa e uma cadeira - indicava que esses convites eram muito raros, o que reforçava minha suposição. O patologista me pareceu inseguro, quase amedrontado. Tanto quanto uma outra médica presente. Alegou que o resultado não estava pronto em vista da dificuldade de fechar o diagnóstico e me pediu que voltasse no dia seguinte. A singularidade da situação me deu a certeza: deve ser câncer .
Voltei conforme o combinado e imediatamente fui conduzido à sua sala. Fez-me sentar e teve que permanecer em pé. Mais por nervosismo que pelo fato de haver apenas uma cadeira. Seu constrangimento (?) superava o do dia anterior. Parecia temer me comunicar a doença e ter que se deparar com uma reação passional de minha parte. Citou três hipóteses para o meu mal e os nomes científicos pouco me esclareceram. Perguntei então qual das três seria câncer e ele me respondeu que todas. Sugeriu um outro exame, a ser feito na Universidade de Botucatu, para determinar com precisão qual das hipóteses seria a verdadeira. Ante meu consentimento, fez rapidamente o pedido para o convênio médico e fui buscar a autorização. Devia aparentar tensão no rosto, o que derrubou qualquer barreira burocrática que pudesse existir. Na volta para seu laboratório comecei a sentir o irrealismo que o câncer causa. O patologista já estava menos tenso, pois viu que os arroubos emocionais não combinavam com o meu estilo e já se permitia sentar na beirada da mesa. Rimos nervosamente quando ele me sugeriu que enquanto demorasse o novo resultado eu trabalhasse e vivesse normalmente. Ou então que eu não precisaria me preocupar, pois o caso não era sério (sic). Cômico para não ser trágico. Deveria ter sido acalmado e não acalmá-lo. Do seu laboratório voltei para o consultório da hematologista, que não estava. Fui atendido por seu marido de quem ouvi bons prognósticos para a doença e o pedido para que regressasse na segunda feira seguinte para consultar e esclarecer as dúvidas com a sua mulher.
Do consultório fui para o Clube, onde me encontraria com minha mulher, cunhada e filho conforme tínhamos combinado. Durante a caminhada repetia silenciosamente e de modo tão contínuo “estou com câncer“ que parecia recitar um mantra indiano. Os carros, as ruas, as pessoas e até a própria caminhada não existiam fisicamente. Apenas me rodeavam.
Já no Clube e pelo alambrado do campo de futebol avistei o meu filho que no auge de seus onze anos jogava com os amigos. Por muito tempo fiquei admirando - o. Como estava ficando alto . . . como era bonito! O impacto do diagnóstico me confundia mas uma serena resignação se contra punha. Sabia que a doença é grave, que o otimismo dos médicos poderia ser uma mera gentileza ou talvez a tentativa de evitar um escândalo de minha parte, que o tratamento seria terrível e tudo o mais que cerca a situação. Mesmo assim o entorpecimento persistia. Ou melhor, durou até que eu visse o menino.
Meu Deus, o meu menino! Senti o mesmo cheiro que tinha quando era bebê e só dormia em meu colo. Revi-o aos 2 ou 3 anos uniformizado como um jogador da seleção (era tão magrinho e tinha um chute tão forte, que o orgulho que sentia nessas ocasiões eliminava o cansaço das madrugadas de futebol), ouvia novamente as suas perguntas sobre “moral e cívica“, assinei de novo o primeiro boletim da escola e fiz todos os carinhos -“ arrepiantes, né, pai?” que o cansaço por vezes me impediu. Pai. . . Era possível que ele deixasse de ter. Senti tristeza e a primeira dor do câncer.
Prever que ele seria obrigado a viver com quem não queria, conviver com a mediocridade, talvez sofrer agressões de um eventual padrasto, ter a sua grandeza tolhida e tantas outras questões me fizeram sentir a segunda . A Morte que até a pouco me fora tão atraente, perdeu o encanto.
A reunião no Clube, na verdade, serviria para acertamos os detalhes do divórcio. Algumas horas antes, enquanto aguardava ser atendido pelo médico, mentira, por telefone, para minha mulher. Ao lhe responder sobre o resultado da biópsia lhe disse que era negativo. Compartilhando o mesmo sofá com mais quatro pessoas achei ruim usar o termo, câncer. Agora, e após ter recebido um abraço e as felicitações de minha cunhada, constrangidamente tive que contar a verdade. Entretanto, ambas, já sabiam o resultado pois enquanto estava sendo operado para a biópsia a hematologista afirmou para minha mulher que era câncer. A confirmação foi encarada com serenidade, pelas duas.
A doença existia de fato mas a vida precisava continuar e passamos a discutir a nossa separação. Para ela seria oportuna tanto por questões econômicas, no sentido de que minha falência deixaria de atingi-la, quanto por questões pessoais. Pude entendê-la. Também me interessava o rompimento no sentido de livrar-me da culpa de ter atingido o seu patrimônio quanto pelo fato de a doença ser uma incógnita, e conforme já me referi anteriormente, as eventuais deformidades, dores e outras complicações me assustarem. Se as tivesse que fosse longe dos olhos de meu filho.
Contudo, segundo ela, seria desumano me abandonar naquele estado. Já tinha descoberto que me tornara um incômodo e, agora, que necessitaria de piedade. O que de mim restou foi despido da fantasia, das ilusões, dos ideais. Da alegria. Restei tão nu quanto nua ficou a vida. Crua e, talvez, breve.
De chofre, tomei consciência da inutilidade daquilo tudo que antes me fora tão caro. E que ainda era para os outros. Foi como descer de um carrossel e passar a apenas observá-lo de longe. Da vida normal já não participaria mais. Tão somente co-existiria ao seu lado.
A chegada do amigo Orlando que tanto sabia do divórcio quanto da doença para quem comuniquei o resultado da biópsia quando me telefonou no Clube cortou o estupor que sentia e tentei demonstrar a tranqüila confusão que sentia. Ouvir e fingir que acreditava na argumentação (podemos morrer antes que você; o que para eles era uma hipótese, para mim se tornara um fato) sobre os “avanços da medicina”, as curas milagrosas, as ervas miraculosas e todo o restante do arsenal, foi uma tarefa complicada.
O mantra indiano “estou com câncer“ insistia em martelar minha mente enquanto rodopiava o pavor de perder o meu filho. Escutei e fingi acreditar apenas e somente por educação. Pude ver o quão forte é o nosso condicionamento. Meu formalismo ainda estava intacto.
A insônia daquela sexta feira foi diferente das anteriores. Os fantasmas da falência, da miséria e da falta de perspectivas povoaram cada segundo e agora, acompanhados daqueles relativos ao medo do tratamento, das dores e das deformidades. Eram tão reais que quase podia tocá-los. Pensei em dar nomes a cada um, afinal já convivia com os primeiros há tanto tempo que me sentia íntimo dos mesmos. Certamente o mesmo aconteceria com os segundos. O fato, contudo, é que essa insônia inaugurou uma série que perdura até hoje.
Sábado foi o dia de contar aos funcionários, vizinhos da loja e amigos o resultado. A decisão de contar foi tomada para evitar que o eventual agravamento das minhas condições de saúde e a agudização da crise financeira não lhes causasse surpresas. Também serviria para minorar a minha culpa em relação à segunda.

Sim, eu tinha câncer!

À incredulidade de suas feições somava-se um mal disfarçado sentimento de pena, alguns de repulsa (há quem considere contagioso) e a catilinária habitual sobre “os avanços da ciência“, o poder da fé . . . O domingo foi o dia de deixar minha cunhada colocar um composto fitoterápico milagroso (como poderia recusar tão boa intenção?) e reviver os fantasmas, os quais, como amigos íntimos que eram, já não se contentavam em vir com hora marcada.
O isolamento a que me submeti era apenas o reflexo da solidão que sentia. Da imensa solidão que o desconhecido e a anormalidade nos proporcionam. Como conviver com quem não estava fadado a morrer? Como explicar a angústia, o medo?
Na manhã de segunda-feira fui ao consultório da hematologista. Enquanto aguardava minha mulher juntou-se a mim contra a minha vontade, aliás. Aquele momento deveria ser apenas meu. Há muito que só lhe dividia problemas e esse não precisaria ser repassado. O casamento, a cumplicidade já não existia mais, então porque reparti-lo ? Ora. . .
Fui chamado e encontrei uma médica sorridente, amável. Senti confiança. Fiquei alegre quando ela respondeu com alguma rispidez à minha mulher que lhe indagara sobre leituras sobre o tema. Para leigos, não! Senti-me vingado. Bem feito, quem mandou se intrometer onde não devia?
Antes de ser atendido, listara mentalmente as perguntas que faria. Como seria o desenrolar da doença? Quando começariam as dores? E as deformações? Mas, e principalmente, quando eu morreria ? Queria um parâmetro. Uma previsão. Programar-me para o evento. Entretanto, tão logo começamos a conversar, sufoquei as perguntas. Imaginei que seria mal educado tomar-lhe tempo. Ainda o formalismo. O respeito quase medieval àquela que tinha o poder sobre a vida e a morte. Nada perguntei, ouvi o seu prognóstico . . . O tratamento reduziria o tumor até extingui-lo. Não poderia prever o tempo de sobrevida. Citou o exemplo de sua primeira paciente na cidade que já completara cinco anos. Que o tratamento era, de fato, severo. Que não era contagioso e nem hereditário, etc. . . . Mas falou principalmente que havia tomado a liberdade de fazer o meu encaminhamento para a Unicamp . Conhecia casos em que o paciente abandonava o tratamento em função das dificuldades locais, e então solicitara a terapêutica naquela Universidade.
Ao saber que estava com câncer eu já havia decidido fazer o tratamento naquela Universidade pois conhecia a excelência de seus resultados e, agora, aquele encaminhamento me livraria de qualquer restrição que pudesse haver.
Aquele desprendimento, aquela grandeza me emocionou. A imagem que fazia dos médicos, em geral, era a mesma da maioria da população: mercenários. Já tinha visto tantos erros, tanta incompetência, tanta ganância, tanta insensibilidade que era difícil mudar esse conceito. Na verdade culpava muito mais a banalização da profissão, por conta da disseminação dos cursos, que os indivíduos em si. Quando era criança a figura do médico carregava uma aura de sacerdócio. Conheciam todas as nossas doenças e as curavam. Inexistia o aperfeiçoamento tão detalhado como agora. Era mais simples. Sem a batelada atual dos exames pedidos e as seguidas idas e vindas. Consultório, remédios e cura. Ou morte.
E mesmo assim, com resultados mais pobres que os atuais, o médico era quase um semideus. Talvez, também, a pouca concorrência e, conseqüentes ganhos maiores evitavam que demonstrasse tanta ganância. Infelizmente, o que não ocorre hoje. Ou, ocorre? Antes a dermatologista e, agora, a hematologista tinham acabado de provar que sim! Poderiam ter chamado o meu tratamento a si e ter obtido rendimentos com ele. No entanto, preferiram ser honestas com o princípio da profissão.
Na tarde desse dia , encontrei o amigo Orlando na porta de um banco e aproveitei uma carona para ir a uma seguradora, onde há muito tempo atrás eu tinha feito um seguro e que nunca tinha usado. Fui verificar se tinha direito a algum tipo de seguro, pois , embora tenha contribuído durante 27 anos seguidos, havia quase dois que não recolhia a contribuição. Enquanto aguardávamos o atendimento, o meu celular tocou e recebi uma encomenda de um cliente de Poços de Caldas. Era um conjunto de embalagens que restara e estava em casa. O pedido coincidia com o estoque, tanto em formato quanto em quantidade, de forma tão precisa que ficou difícil acreditar em mera coincidência. Essa venda poderia me dar um sobrevida financeira para alguns dias e comemorei a entrada do dinheiro como se tivesse ganhado na loteria. Até as minhas ilusões estavam diminuindo.
Naquela tarde o atendimento não foi possível e foi remarcado para a manhã seguinte. Se a amabilidade da primeira pessoa foi ofuscada pelo seu embaraço, a moça , no dia seguinte, foi de uma sensibilidade, competência e amabilidade que me deixaram atônito e tal qual havia acontecido com a classe dos médicos, outra má imagem que tinha começou a ruir.
Sim, eu ainda tinha direito a receber um auxílio mensal. Fez os papéis e me encaminhou para a médica perita que comprovou a moléstia e me cobriu de gentilezas e votos de boa sorte. Ante a minha pergunta sobre a gravidade do quadro me disse para confiar em Deus. Pouco científico, é verdade, mas cheio de sensibilidade.

Bem diferente, aliás, do ocorrido com uma outra Seguradora na qual eu mantinha um outro seguro e que em face da solicitação de pagamento negou-se peremptoriamente, alegando pré-existência da doença (de fato, para nós, leigos, é muito fácil diagnosticar esse tipo de doença . . . )..
No dia seguinte fui para Poços de Caldas levar a encomenda junto com o meu amigo Edison (com i , por favor). Era bom rever a minha cidade natal. Fizemos à entrega , os passeios habituais e ainda pude, para inveja do amigo que estava dirigindo, saborear uma cachaça de lei. Tudo tão gostoso. Tão bom. Pena que o cansaço extremo que sentia não me deixasse esquecer que tinha câncer.
No dia 20 de maio voltei ao prédio onde fica o consultório da hematologista. Mas , dessa vez, fui com minha mulher visitar outra “doutora“ em outro escritório. O de uma advogada que conhecíamos e que é mãe de um amigo de meu filho. Fomos tratar das formalidades do divórcio.
Pela primeira vez em minha vida tive que confessar os meus fracassos a terceiros. Sentia tanta vergonha que concordava automaticamente com todas as suas propostas de divisão de bens (como se houvesse), pensão alimentícia, visitas ao filho, etc. .Eu só pensava em conseguir sair dali o mais rápido possível. A proposta do divórcio, aliás ,era absurdamente estranha. Estávamos casados há doze anos e mais os quatro de namoro e noivado. Durante todo esse tempo nunca houve qualquer tipo de desentendimento, brigas ou simples discussões. Sempre nos demos bem e, em outras ocasiões, tínhamos até mesmo sido felizes. Mas a crise financeira foi minando o convívio e a hospedagem de minha mãe (com sua difícil personalidade) foi uma agravante importante e, assim, acabei ficando entre o dilema de abandonar a mãe ou a mulher e como essa última era plena de condições de sobrevivência e eu agora só estaria atrapalhando a sua vida, a escolha recaiu sobre o elo mais frágil. Demasiado humano, diria Nietchze. Seria verdade, se tivesse sido possível. Mas naquele momento nem isso eu pude fazer.
Quando descemos do prédio os termos da advogada ainda nos soavam estranhos. Era como se tivessem sido dirigidos a outras pessoas. Estaríamos apenas observando. Nunca, creio que posso falar também por minha mulher, nos imagináramos naquela situação. Agora não a aceitávamos.
No dia trinta, a falta de dinheiro tinha chegado ao limite extremo. No café da manhã, em companhia de meu filho, liguei para a seguradora para saber do andamento do meu processo e fui agradavelmente surpreendido pela informação de que estava pronto e o dinheiro estaria disponível no dia seguinte. A escuridão me pareceu, então, menos intensa. Junto com o medo da miséria total, a idéia do divórcio foi sendo esquecida.

CAPÍTULO 04

Nas primeiras horas do dia 01 de junho fui ao banco receber o pecúlio da seguradora. A gentileza dos funcionários não chegou a me surpreender, pois anteriormente, quando tinha dinheiro também era tratado dessa forma. Só depois é que vi que o motivo não era esse. Alguém de 42 anos, sem deficiência física aparente e recebendo aquele seguro evidenciava o porte de uma doença muito grave. Foi o meu primeiro vislumbre que, efetivamente, eu me tornara diferente da maioria. Porém, após uma longa temporada contando tostões e morrendo de medo dos cheques serem devolvidos tinha em mãos uma quantia razoável. Quitei alguns compromissos mais atrasados e tive a oportunidade de sentar na praça sem me sentir oprimido.
O inverno foi rigoroso naquele ano e o sol que sentia e que me aquecia pareceu muito amigo. Tão diferente daquele que existia há três meses atrás e que eu achava que só servia para me fazer transpirar dentro do carro. Torcia para que as pessoas que via não tivessem câncer nunca. Era bom poder vê-las. Feias, bonitas, magras ou gordas, caminhavam como eu fizera outrora, sem perceber o sentido real das coisas. A imagem da caverna de Platão era exata: até que algo importante surja, insistimos em ver apenas a sombra. A claridade que o câncer acendeu, e que a princípio tinha me ofuscado, agora podia ser captada com facilidade.
Eu via o que os outros não viam. Sentia a inutilidade dos desejos. A mediocridade dos sonhos rasteiros, o peso da solidariedade obrigatória e o das fantasias, que eu também usara. Eu via a simplicidade da vida e entendia o riso despreocupado do gari (feliz, de fato, é quem não tem camisa). Queria lhes dizer, mas tive medo de ser confundido com um desses pregadores que tentam nos vender o reino dos céus.
No dia seguinte recebi o telefonema da secretária do patologista dizendo que o resultado do exame feito em Botucatu estava pronto, ainda que enviado apenas por fax. Quatro dias depois e datado de 05 de junho chegou o documento original. Por vício profissional, antes de ler o diagnóstico, admirei a bela apresentação do mesmo. A combinação do verde suave com o vermelho foi uma escolha acertada. O verde de fundo suavizava o que estava escrito em vermelho:

• Granulócito/Células de Reed - Sternberg – Positivo
• Células linfóides ativadas / Células Reed Sternberg – Positivo
• Latent Membrane Protein do vírus de Epstein-Barr – Positivo
• Diagnóstico: Gânglio linfático cervical: achados morfológicos
• e imuno-histoquímicos diagnósticos de Doença de Hodgkin,
• subtipo celularidade mista.

Como se já não bastasse ter conhecido Mr. Hodgkin tinha acabado de ampliar o meu leque de novos conhecimentos Mr. Reed, Mr. Sternberg, Mr.Epstein e Mr. Barr. E, pensei, é, certamente, um dos efeitos da globalização. . .
Junto com o documento, o patologista entregou um bloco de parafina contendo as amostras do tecido extirpado e que haviam sido utilizadas para a obtenção do resultado acima. Mostrou satisfação pelo fato de que meu tratamento seria na Unicamp e pediu para entregar-lhes aquele material. Seguindo o conselho da médica perita da seguradora para que guardasse com cuidado todos os exames relativos à doença, o bloco de parafina, esse exame e os outros foram minha maior preocupação durante a mudança de nossa residência que aconteceu no dia seguinte.
Há tempos cobiçávamos uma simpática casa que ficava em nosso caminho diário e a duas quadras do colégio de meu filho e a três, à direita, do consultório de minha mulher. Essas proximidades resolveriam os problemas que a distância e a falta do carro ocasionavam. Pensávamos que ganharíamos tempo, mas na verdade, ganhamos muito mais: vizinhos calorosos e verdadeiros amigos. Ganhamos proteção. Uma casa que, embora pequena para os padrões a que estávamos acostumados, era absurdamente confortável e segura. Extremamente acolhedora. Não tinha, de fato, o tamanho e o luxo das anteriores, mas foi aqui que encontrei muita tranqüilidade. Sentia-me seguro em poder pagar o aluguel, que era a metade do anterior, em deixar meu filho sozinho caso eu tivesse que ficar internado e, principalmente, encontrei a calma de ter fugido do lugar onde tinha acontecido a falência, o quase divórcio, a doença . . .
Em 09 de junho estive na Unicamp pela primeira vez. Embora tivesse morado em Campinas por 23 anos seguidos, nunca tive a oportunidade ou interesse em conhecê-la. Segui de ônibus até um posto de gasolina onde me encontraria com meu sobrinho e que me levaria até a Universidade. O mesmo sobrinho, aliás, que tempos atrás engordara 20 kg e mesmo assim se achava aidético. O mesmo, que ao me ligar dizia que por ter câncer eu não deveria fazer planos de longo prazo. O mesmo, que tentava com seu jeito brincalhão suavizar o que lhe era triste.
A imagem de soberba acadêmica, de grandiosidade, de estilo asséptico (a “Havard“ que eu vira nos filmes), que eu tinha da Universidade Estadual de Campinas ruiu tão logo chegamos ao estacionamento enlameado. Meu sobrinho, ao contrário do habitual, mostrava-se tenso. A aglomeração de pessoas carentes sugeria a longa espera a que todos os usuários do serviço público eram submetidos. Via com constância, pela TV, os casos onde pacientes eram precariamente alojados, mal cuidados e todas as outras mazelas habituais.
Ao entrar no Ambulatório de Hematologia, a visão me estarreceu. Todos os pacientes estavam sentados de costas para a porta e aquele conjunto de cabeças lisas me lembrou um congresso de extraterrestres. Ao avançar, via as suas faces pálidas, as peles ressecadas e podia imaginar as aflições que sentiam. Os aproximadamente 100 m2 do salão, com dezenas de poltronas cinzas, tendo na lateral esquerda a sala de pós-consulta (para que serviria?), na direita, a sala de coleta de sangue e ao fundo o balcão de recepção, continham, com efeito, parcela considerável das dores do mundo. A televisão, instalada sobre os recepcionistas, tinha imagem e estava muda e, com isso, já indicava a precariedade daquele universo. Ao meu lado um senhor sem o olho direito e no canto oposto, outro senhor, sem as orelhas. Com imagem e sem o som. Ou vice - versa. Mas sempre com a falta de algo.
Senti uma pena sincera e imensa daquelas pessoas. Pobres coitados! Ainda bem que o meu caso era apenas de um erro nos exames. Coisas da província, naturalmente. Imagine! Eu, com câncer? Em um serviço público? Ora . . . Na recepção levei um susto tremendo com o sorriso e a amabilidade do atendente. Ué, o Estado era amável? Enquanto aguardava via à minha direita o trabalho das enfermeiras na sala de coleta. Em ritmo frenético, com precisão de linha de montagem industrial e um sorriso que foi difícil de assimilar. Percebi, novamente assustado, que além de amável, ali, o Estado também era eficiente!
Como já me referi, na minha adolescência cheguei a ler, entre outros, o “Capital“ de Karl Marx com um grupo de amigos. Estudos em conjunto como era moda. Aliás, também era moda querer derrubar o sistema capitalista. Vivia-se a polaridade da guerra fria. A ditadura e a contracultura. O socialismo, mais que uma doutrina política era o símbolo da rebeldia, típica da idade. Como meu pai, eu também era comunista de carteirinha e de passeata. Porém, com o casamento, filho, responsabilidades, ascensão profissional e financeira o eixo de meu ideário mudou e passei, então, a ser um ardoroso defensor da livre iniciativa e feroz detrator dos serviços públicos. Nunca tinha necessitado dos mesmos e nem mesmo os conhecia. Ainda assim não gostava. Agora, aquela cordialidade, boa vontade e eficiência me surpreendiam de fato. Estava feito o primeiro contacto e desfeito um pré - conceito meu.
Do ambulatório fui encaminhado ao Hospital das Clínicas para o cadastramento. O tamanho e a limpeza do prédio não me impressionaram tanto, quanto a quantidade de pessoas circulando. Pacientes, acompanhantes, médicos, funcionários. E todos se guiando por faixas coloridas pintadas no chão. Segui a minha faixa e no setor de cadastramento ganhei um cartão de identificação e um número. A partir de então seria o paciente n° H.C. 68.27.74-5. A primeira consulta ficou agendada para sete dias após.
Da Unicamp segui para a casa de meu irmão em Itupeva. Saboreei, então, o gosto de ser o centro das atenções. E, mais, o de ter reencontrado uma família que julguei ter perdido. Ou, melhor, ter abandonado. O afastamento voluntário a que me impus em relação aos mesmos tinha me levado a criar tantas barreiras que o apelido de “chato“ era mais que justo. A ilusão da auto-suficiência formou em mim a pernóstica prepotência que me caracteriza. Nunca havia me furtado em ajudá-los quando necessário e se fosse possível, mas tinha sérias objeções em pedir e aceitar ajuda. Tinha dificuldades em lhes abrir meus sentimentos, minhas fraquezas, dúvidas, dívidas etc. Fazia o estilo “bem sucedido“ e superior. Pois sim. Quanto orgulho, quanto erro!
Na infância o excesso de visitas, hóspedes e de moradores fixos tinha provocado, em mim, uma certeza: tão logo pudesse me afastaria de todos e preservaria a minha privacidade a todo custo. Assim fiz, tão logo pude. E, agora, eu podia compreender a extensão do meu erro. Ninguém se basta. E foram tantas as ofertas. Tanta proteção. Eu vi que não estava mais sozinho. Engolir o orgulho, o fracasso e a consciência do erro foi facilitado por doses generosas da caninha de engenho. Com a caninha, o bom humor e a descontração surgiram. Falamos da doença sem a pompa fúnebre que talvez fosse mais adequada. Na família rimos de qualquer coisa, mas, principalmente, de nossas mazelas. Rimos até da e na morte. Como quando aquela prima roubou o recheio dos sanduíches feitos para o velório da avó. Ou, do frentista do posto de gasolina onde paramos na volta do enterro de meu irmão. O coitado tinha um dente sim e outro não. Segundo meu sobrinho, para comer uma espiga de milho teria que fazer a ida e a volta.
Na verdade, não é apenas uma característica, mas mais uma forma de nos antagonizarmos com os excessos melancólicos (. . . Ah , esse hábito de sofrer que tanto me diverte . . .) de minha mãe. Desagrada-nos sobremaneira o seu jeito de ser e, ainda que inconscientemente, buscamos ser diferentes. Isso nos tolheu até o direito à tristeza genuína, mas nos livrou da hipocrisia dos falsos sofrimentos. A fraterna solidariedade, a lealdade e o espírito de clã, entretanto é real e em momentos como esse, quase que concreto.
Sete dias após, 16 de junho, voltei para a minha primeira consulta. Primeiro colhi sangue para o hemograma e em tal quantidade, que julgo, todas as nuances de minha condição física puderam ser analisadas. Novamente em companhia de meu sobrinho, aguardei pela consulta. Aquele impacto inicial já tinha então se dissolvido e pude atentar para as pessoas que nos rodeavam. Particularmente olhava para uma garota de uns 17, 18 anos. Totalmente calva e, mesmo assim, linda. Por que o câncer havia se instalado nela? Ainda agora, me é difícil aceitar que ocorra em crianças ou em jovens como ela. A sua latente degeneração não combina com a infância e a juventude.
O chamado da jovem médica interrompeu minha divagação. Era muito jovem mesmo, como, aliás, seriam todos os que me atenderam. São residentes, supervisionados por profissionais experimentados. Ao entrar no corredor que levava aos consultórios, pude observar à minha direita a sala do serviço social e à minha esquerda a sala de “discussão dos casos“. Por um momento imaginei que era mais uma cobaia para aqueles estudantes. Um dos “casos“. O consultório, pequeno e razoavelmente bem decorado, era agradável. Respondi-lhe um extenso questionário (anamnese) e na hora do exame clínico pude sentir a sua “deliciosa“ inexperiência e o enorme respeito ao ser humano. Falou que “meu“ câncer poderia ser curado, mas evitou entrar em detalhes. O respeito demonstrado, aliás, fez-me ver que, com efeito, eu, ou melhor, todos nós não éramos apenas os números de identificação. Sequer cobaias. Numa troca justa, depositávamos as nossas esperanças e, eles, o interesse pelo aprendizado.
Finda a consulta, esperei que todos os outros pacientes fossem atendidos e fui submetido a dois exames: a biopsia óssea, que consiste em introduzir uma agulha na base da coluna e dali recolher fragmentos de ossos e o Mielograma que é feito retirando, também da coluna e com uma seringa, o líquor. Ambos bem dolorosos, mesmo com anestesia. Como tinha chegado às 7h e já era 14h o cansaço que senti correspondeu ao tempo em que lá permaneci. Cansado, mas confiante. Se antes recebera da família uma super dose de apoio emocional, agora recebia o equivalente em segurança quanto ao tratamento que receberia. Novamente, agradeci à Dr.a. Ana Amélia.
Pousei na casa de meu sobrinho e no dia seguinte fui trazido por sua irmã, a quem devo , aliás , até a oferta da chave de seu apartamento. Ela também se encarregou de levar os pertences de minha mãe para a casa de meu irmão. O que era um passeio de dias, acabou se tornando definitivo. Na volta para casa trouxe a expectativa de cura. Expectativa que, aliás, eu via com cautela, pois era fácil supor que fosse apenas uma formalidade da médica e faria parte do tratamento.
Até a próxima consulta, dali a oito dias, substituí a ansiedade anterior (estaria ou não com câncer?) por aquela referente ao tratamento. Como seria a quimioterapia? Como eu a suportaria? Todos os relatos a esse respeito eram medonhos, assustadores. Todavia, junto com essa ansiedade, uma nova concepção de vida ia se formando em mim. Eu, que tanto louvara o “Super Homem“ de Nietzsche, via, agora a minha fragilidade e que era, sim, possível fraquejar. O que tinha visto na Unicamp, sem a tela da TV para me proteger, era o Mundo. Fraquejar era humano. Com toda sinceridade, foi a primeira vez que acreditei no choro de alguém.
Em 24 de junho voltei para a minha segunda consulta. O jovem médico, gordo, barbudo e mal arrumado exteriorizava a sua inaptidão. Notei e depois pude comprovar que a Medicina só deveria ser exercida por mulheres. Pediu - me dois exames: Tomografia Computadorizada e Cintilografia com Gálio 67. Quanto ao primeiro seria fácil, pois poderia fazer em minha cidade através do convênio médico. Em relação ao segundo a história seria diferente. Poderia fazê-lo na própria Unicamp, mas a espera seria longa e retardaria o início do tratamento. Na loja de minha sobrinha e por telefone fui informado do preço do exame. Inviável. Voltei para minha cidade e tentei uma interferência de meu convênio. Solene e burocraticamente negada. Então, guardei no bolso o que me restava de soberba e fui até um Posto de Saúde. Não era naquela unidade e deveria ir a um segundo local. As longas caminhadas, do convênio ao primeiro posto e desse ao segundo, agravavam o cansaço que é característico da doença e na verdade, ia apenas para alívio de consciência, pois não acreditava que fosse encontrar ajuda. Ao chegar, no entanto, fui imediatamente encaminhado à Assistente Social que prontamente telefonou para a clínica em Campinas, agendou o horário e o dia e me deu a documentação necessária. Tudo em aproximadamente cinco minutos, se tanto. Seu sorriso e amabilidade foram mais extensos . .
Também aqui, o Estado era cortês e eficaz. No mesmo bolso onde guardei a soberba restante, tentei achar onde estava a canonização que fazia à livre iniciativa. Nunca mais pude encontrá-la.
Em Campinas, encontrei na clínica instalações luxuosas e um atendimento VIP (pelo SUS, sim senhor ) e tomei a injeção com tendo o Gálio 67. Deveria retornar em dois dias para o exame e, nessa folga, fiquei hospedado na casa de uma sobrinha. Passeei por Campinas como não fazia há muito tempo e fiz a dieta recomendada. No dia marcado, na clínica, nova anamnese e o início do exame, que consiste em um mapeamento completo do corpo através de radiação. Embora seja indolor, é cansativo ao extremo, pois exige uma imobilidade quase total, com os braços estendidos acima da cabeça, por quase duas horas. No dia seguinte, tive que repeti-lo em vista das imagens não terem ficado com boa qualidade.

Em 05 de julho recebi o resultado:

. . . Hiper captação heterogênea em grau acentuado na cadeia cervical esquerda, alcançando a região supra-clavicular do mesmo lado. Infiltração pela patologia de base.

A nitidez das imagens obtidas com esse procedimento é impressionante e segundo meu irmão lembra o “Santo Sudário“. Já conhecia Hodgkin através dos médicos e pelo dicionário. Agora podia vê-lo em ação. Já não podia mais crer em um erro nos exames e no diagnóstico.

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sexta-feira, julho 10, 2009 - 20:05

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