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SOBREVIVENDO COM O CÂNCER - PARTE FINAL- ERRATA

NOTA - por motivos alheios à vontade do autor, a última página do livro não foi publicada. Abaixo segue a complementação. Peço desculpa aos amáveis leitores (as) e os convido a terminarem a leitura.

. . . Porém, como tudo que é bom se acaba , logo voltaram as dores intensas, o inchaço no abdômen, o empanzinamento e a indisposição. A esses sintomas juntou -se a febre. Esse conjunto de sintomas coincidia com aqueles que havia estudado e me indicava que a minha doença se agravara e que o
fim estava próximo (eu, hein ? . . . Mangalô três vezes . . . parece profecia bíblica . . . ).
Contudo e apesar de todos esses inconvenientes a estada foi agradável com direito a visita de uma prima e de uma amiga que não via há muito tempo e que me deu muito prazer. Com direito também , a um baile chato (ou sou eu que estou ?) e, sorry, visita ao Pronto Socorro de Itupeva. Foi um reveillon atípico, tanto por ser a virada do século, pela ameaça do Bug nos computadores e pelo fato de que eu teria que inverter o
operador aritmético. Não era MAIS um ano que passara. Era MENOS um dos que me sobraram.
De volta para minha cidade consultei um médico e a seu pedido fiz novos exames de urina e Rx do tórax. No primeiro houve um aumento de 50% a mais de hemácias no sedimento da urina. No segundo, constou um espessamento da pleura. Aos remédios que já estava tomando foi acrescentado um novo analgésico e as dores foram suavizando com o correr dos dias e até hoje não sei a sua origem. Se dos rins ou dos pulmões.

CAPÍTULO 11

Já no novo ano estive na Unicamp, no dia 07, para o exame de Cintilografia. Nos últimos dias as cólicas foram substituídas por espasmos abdominais dolorosos e irregulares e que agudizavam a dor quando bocejava, espirrava ou respirava mais fundo. Chegamos as 13h e às 13h30 já estava na maca. A duração do exame prolongou-se até as 16h30 e quando cheguei ao Gastrocentro para fazer o ultra-som encontrei-o fechado. Ficou remarcado para o dia 18, daquele mês.
No dia 18, fui o primeiro a ser atendido. O residente que fazia as imagens localizou um cálculo renal, depois o perdeu e com a chegada de seu supervisor tentou acha-lo novamente, mas sem conseguir. Conversaram tão baixo que mesmo me esforçando não consegui ouvir nada. Nunca soube o resultado daquela conversa pois o laudo desse exame nunca foi para o meu prontuário.
Hospedei-me, junto com meu filho, na chácara de minha sobrinha e desfrutei um visual muito bonito e muita paz. O lagostim flambado foi um acréscimo muito bem vindo.
No dia seguinte segui para a consulta e fui atendido por uma das supervisoras do Hemocentro. Belíssima, por sinal !

- Sr. Fabio, a proposta agora é aguardar os resultados de todos os exames e não havendo sinais da doença o senhor estará em remissão. Caso contrário, faremos um transplante autólogo de medula e uma mega quimioterapia. Tudo bem ?
Como dizer que não , para uma mulher tão bonita ?

Quando já estava saindo do consultório , chegou o resultado da Cintilografia: baixa probabilidade. Sem conseguir discernir , acreditei quando me disse que era uma boa noticia. A dúvida, entretanto, ficou, pois o correto não seria: “nenhuma probabilidade “ ? Isso, sim, seria uma conclusão feliz e não aquele termo. Ainda existiria a doença, porém adormecida ?

No dia seguinte , vinte , tive que fazer um empréstimo com o meu irmão (devidamente avalizado pelo Abreu. Piada tão antiga quanto ficou a data do vencimento) e outro com minha sobrinha. De virtual, passei, a ser um incômodo real. Que o diga, aliás, a minha mulher que tem pagado as contas durante todo esse tempo. O terror de não conseguir saldar esses compromissos me atormenta desde então e quando o desespero bate mais forte tento um pouco de cada coisa.
Primeiro fiz capas para agendas. Usei chapas de PVC, gobelins, jeans, etc. Tentei depois ensacar argila por quilos e vender para as floriculturas, depois foram os cartões de visita pelo computador, montar um escritório virtual para fazer as cobranças de farmácias e tentei até escrever um livro.
Ou, quem sabe, então, voltar a estudar e tentar passar em um concurso público (quem diria hein , Sr. Fabio ?) . Seria uma boa opção se o curso não tivesse dezoito meses de duração e eu não sei se ainda terei esses dezoito meses disponíveis . Meu Deus, quando tudo isso vai acabar ? Tentei várias coisas. Tentei fazer alguma coisa. Qualquer coisa . . .
Até a nova consulta, agendada para o dia 02 de fevereiro senti as dores, já tradicionais, nas pernas, indisposição, febres, muito medo de ficar internado para a nova quimioterapia e principalmente o horror da inutilidade. O desespero de a cada manhã não ter o que fazer. Com o fim das férias todos voltaram às suas ocupações , menos eu. Como já não tomava mais os comprimidos não me sentia doente. Mas as limitações físicas eram tão evidentes que também não estava curado. Uma terra de ninguém. Uma indefinição terrível. Cheguei a pensar que era melhor quando estava tomando as quimioterapias e poderia me sentir menos envergonhado por não ter o que fazer. Mas, agora . . .
No dia 21 fui até o convênio médico buscar as autorizações para as tomografias. Poderiam autorizar uma delas e a outra eu teria que pagar. Fui então ao Posto de Saúde e pedi a autorização para ambas, via SUS. O atendimento foi imediato. Novamente, o Estado era muito mais eficiente que a iniciativa privada . Enquanto estive no Posto de Saúde, podia observar aquelas pessoas que buscavam atendimento. O comportamento das pessoas mais carentes é caracterizado por uma competitividade disfarçada. Todos querem o primeiro lugar nas filas habituais e parecem constranger-se em conseguir. Temem, talvez, explicitar uma ambição que julgam contrária àquilo que têm de melhor: a solidariedade.
No final do mês retornei ao Hospital para buscar o resultado das Tomografias. Naquela referente ao abdômen nenhuma alteração enquanto que na do tórax aparecia novamente um espessamento da pleura.
No domingo seguinte atendi com muita satisfação ao telefonema de uma prima com quem não tinha contacto há muito tempo. E, novamente, pensei em deixar o cigarro. Parodiando Bertold Brecht, parar de fumar é muito fácil, pois tal como ele, eu também já havia conseguido por dezoito vezes . . .

CAPÍTULO 12

No dia 02 de fevereiro fui para a Unicamp fazer a consulta. Os resultados de todos os exames foram negativos. Fui liberado de qualquer medicação e classificado como, “Em Remissão“ , devendo a partir daí fazer um acompanhamento trimestral. O vazio me dominou. Caramba, o único compromisso que eu tinha acabou ! Não teria que ir mais a cada quinzena. E agora ? Sabia que o termo “Remissão“ significava apenas um intervalo da doença e não a cura (aquela dúvida sobre o resultado inconclusivo da Cintilografia ainda me preocupava) . Não podia, com efeito, me sentir curado pois os inchaços, dores e trombosamentos continuavam severos. E ficaram as dúvidas: será que, mesmo assim, eu poderia trabalhar ? Aliás, conseguiria um trabalho ? Por quanto tempo duraria a remissão ?
É engraçado lembrar o quanto busquei ter tempo livre , em outras épocas. Agora esse excesso me exaspera. Tenho saudades de um Brasil que vivi. De um mundo que vejo na TV; sinto e me ressinto das misérias , das dores , dos encantos e das belezas. Tenho tempo de sobra e por isso sou mais sensibilizado. Tenho tempo demais, e, por isso, penso mais. Talvez, demais. Em todas as possibilidades. Sonho com milagres e, com eles, refazer a minha vida. Recuperar a minha dignidade. Voltar a ser o que já fui. Temo morrer e sentir saudades da vida que não levei e que apenas imaginei em meus delírios de grandeza. E tudo passa, repassa e acaba. A angústia das incertezas fica.
Em 14 de fevereiro um amigo muito especial, a quem chamarei de “Iron Joe “ cedeu uma sala para a instalação da ONG. Cumpriu, assim, uma oferta que tinha feito quando lhe disse que deixaria de ser seu inquilino na loja. O uso do pseudônimo para esse amigo é uma maneira de citar toda a sua generosidade e prestar uma reverência a sua maior virtude: a discrição. Qualidades, aliás, comuns a tantos outros. Amigos íntimos ou nem tanto e até desconhecidos. A garota do banco que me oferece uma cadeira . . . A do seguro saúde que quebra burocracias . . . o motorista que me dá passagem . . . e tantos mais. Amigos (irmãos ?) como o Edison que me leva, aguarda longas horas e me traz da Unicamp. Ou, então, os doces Amaury e Marlene, que se emociona ao me ver na festa de seu aniversário, logo após a segunda quimioterapia
(. . . às vezes me culpo por minha vida cor de rosa . . . não se culpe, pois você é que
conseguiu esse colorido ). Ou o Orlando, tão presente. O Geraldo e a sua alegria; a empregada da casa que insiste em me ensinar rezas fortes e receitar ervas milagrosas . Ou, a funcionária da loja, que em entrevista à TV. local, em plena festa de rodeio, manda ao patrão - muito doente, segundo ela - um beijo. Tão ingênuo quanto a vaia que levou. Afinal, onde já viu mandar beijo para o patrão ? Tias, primas, sobrinhos que me telefonam, me visitam; vindo de longe e, talvez, com grandes sacrifícios. Antes, tão distantes e agora tão próximas. Filho, mulher, irmão, mãe tão perto. Um círculo que em outras ocasiões julguei asfixiante e agora me parece tão protetor. Gente é, de fato, o espelho de Deus.
Lavar a sala da futura ONG, junto com o meu filho, foi o primeiro trabalho efetivo que fiz nesses últimos meses. Depois foi trazer a mobília que sobrou da loja, os apetrechos e um vaso de plantas que me acompanha desde aquela ocasião. Pronto, estava resolvido um dos meus problemas ! Eu já tinha para onde ir. Poderia fingir para os vizinhos e para mim que estava trabalhando. E, mais importante, poderia acariciar o meu Ego posando como o “REALIZADOR“. Aquele pobre coitado que sofre de câncer e mesmo assim ainda tem ânimo para pensar e ajudar o próximo. Oh, que belo exemplo!

. . . “Essa cabeça baixa, esse orgulho“ seriam típicas de minha origem mineira, segundo Drummond. A necessidade de atenção e do brilho dos holofotes também serão ? Porém, segundo algum dos nossos iminentes Ministros da Fazenda, a falta de disponibilidade líquida do meio circulante me impede uma definição freudiana. Resta, portanto, esse auto-exorcismo com o patrocínio do amável leitor.
Dúvidas sobre a validade da ONG e os questionamentos sobre a minha vaidade e minhas intenções foram sendo acomodadas e a organização começou a existir. Anúncios gratuitos em jornais da cidade a tornaram pública e acanhados pacientes começaram a chegar (tanto quanto eu, eles não sabiam o que dizer). Tristes, alegres, conformados ou revoltados. Cada qual com a sua história, dores e aflições. Diferentes entre si e de mim, salvo naquilo que temos de mais comum: a esperança, ou a ilusão da cura.
Sabemos da gravidade da doença, de suas remissões e recidivas, de seus sintomas e efeitos e sofremos as suas conseqüências. Acreditamos em falsas promessas, em novos medicamentos, no “avanço da medicina“. Acreditamos em tudo. (por vezes a soma dessas crenças me leva até mesmo a esquecer da doença) . . . Mas, não falamos na Morte.

. . . Célia é uma moça de trinta anos. Viaja do interior do estado para fazer o tratamento em Piracicaba e agora nos visita com alguma regularidade. É negra, magra e feia. Ao nascer foi abandonada pela mãe e do pai não faz a menor idéia de quem seja. Do orfanato foi para a casa de sua mãe adotiva. Cresceu sendo empregada doméstica, babá e lavadeira e quando estava no auge de sua carreira profissional - operária em um laticínio - pôde realizar o seu sonho de consumo e comprou uma bicicleta. No segundo mês já não conseguia mais usa-la . O exercício a fatigava. Fizeram a biópsia e - “ até a doutora foi em casa, com uma garrafa de champanhe, para comemorar “ o resultado foi negativo. Um simples fibroma instalado no tórax, que embora removido, não concordou com a “ doutora “ e voltou a crescer. Faz quimioterapia há dois anos . A opacidade de seus olhos reflete a sua tristeza. É fácil entender essa melancolia.

. . . Manuel trabalhou a vida toda na lavoura. De acordo com o seu filho, que é freqüentador assíduo, plantava pimentões e jogava futebol aos domingos. O câncer na laringe foi auto-diagnosticado como castigo pelas blasfêmias que havia dito na juventude. O filho não acredita muito nessa hipótese, pois então, como explicar que o seu próprio filho, neto de Manuel, que só tem dois anos e ainda nem consegue falar já tem a mesma “ferida“ . . .

. . . Lúcia é falante, bonita e elegante. Reclama da escada de acesso à sala e ri de sua calvície. Quer aproveitá-la para fazer cinema. Filmes eróticos, onde posaria a sua nudez total. Inclusive a da cabeça . . .

. . . João tem 60 e poucos anos . Nunca fumou e agora tem câncer no pulmão. Pergunta-me por quê ? Não consigo lhe responder.

. . . Neuza telefona e reclama que no hospital onde se trata é obrigada a ficar exposta aos olhares de pena e de curiosidade de todos os que passam. E que a espera pela sua quimioterapia ocorre no corredor de acesso ao depósito do hospital onde , na última vez, entrou um carrinho cheio de carnes para uso da cozinha. Imagino a náusea que sentiu . . . Se soubesse, então, que a sala de procedimentos é geminada ao necrotério . . .

. . . Celina teve Hodgkin disseminado. Sofreu 15 cirurgias, fez radioterapia, quimioterapia, possivelmente despachos, rezas fortes, freqüentou igrejas e ficou internada quatro meses em virtude de uma infecção hospitalar. Ligou-me convidando para o seu casamento ( a “doutora“ me disse que sou um caso raro na medicina, mas Jesus me salvou ) e morreu no dia seguinte de colapso circulatório. O conceito de salvação é complexo.

CAPÍTULO 13

Em fins de fevereiro fomos convidados para um churrasco na chácara de um casal amigo. Além de ter sido um passeio muito agradável rendeu-me outro grande benefício. Conheci a presidente do grupo de voluntárias do hospital local. Aproveitei o ensejo e pedi ajuda para a ONG. Agendamos um encontro para a segunda - feira seguinte onde eu conheceria uma outra pessoa - médica infectologista - que certamente me ajudaria com palestras e artigos. No dia marcado, nos encontramos no saguão do hospital e no caminho para a sua sala, nessas esquinas da vida, um feliz acaso nos fez encontrar o diretor do banco de sangue da unidade. Aquele mesmo médico de Limeira que outro oncologista me havia indicado tempos atrás. Por coincidência, o seu setor estava sendo preparado para atingir metas de qualidade de padrões internacionais e, portanto, envolvido com vários relatórios , controles e estatísticas. Coisas que eu sabia fazer. Na falta de saber jogar futebol . . .
A minha interação com essa meta foi imediata e em retribuição à generosidade de ambos, ofereci-me para ajudar na área administrativa. Criamos uma parceria informal. Ele me daria o respaldo técnico até onde fosse possível ( palestras, esclarecimentos de dúvidas, etc. ) para que eu pudesse ajudar o pessoal da ONG e eu o auxiliaria com os papéis. Assim, tudo acertado eu começaria dentro de dois dias. Em 1° de março. Até lá vivi a alegria de ter encontrado o que fazer e o medo de não corresponder à expectativa. De ter desaprendido, de não suportar fisicamente, de ter me tornado um incapaz. Há tempos lera em Baudelaire “ . . . O êxtase e o terror de ter
sido o escolhido . . . “ Agora, os sentia.
No dia primeiro iniciei o voluntariado e, por mais que tentasse, nunca consegui assumi-lo como tal. Para todos os efeitos , estava novamente empregado e ainda não seria dessa vez que eu teria que concorrer a um cargo político para ter alguma coisa para
fazer. O medo que sentira mostrou-se, de imediato, infundado. Na reunião em que fui apresentado (e na qual eu quase caí de uma dessas cadeiras de plástico) o carinho que todo o pessoal demonstrou afastou qualquer temor. Meu primeiro trabalho foi digitar e criar gráficos para os controles de temperaturas dos equipamentos , criar novas planilhas, encaderná-las e ajudar na recepção dos doadores. Depois, junto com as outras voluntárias participei de bazares beneficentes (senti novamente o gosto de vender. . .), eventos de pesca com contribuição para a maternidade do hospital, e fui, em companhia da nossa presidente, atrás de patrocinadores para as novas carteiras de doadores. Mas, principalmente, tive a chance de conhecer novas pessoas, fazer novos amigos.
O custo físico dessas atividades foi um aumento nos inchaços das mãos, das pernas e dos pés. Muito pouco, quando comparado ao benefício de ver que os meus trabalhos estavam sendo aprovados. Até elogiados. Eu estava tendo outra chance. Eu estava renascendo! Agora, que são passados dois meses, a integração com o trabalho, com o pessoal e com as metas é total.

Tenho uma rotina. Talvez, até, alguma utilidade.

Araras 30 de Abril de 2.000

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segunda-feira, julho 13, 2009 - 21:41

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