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Spinoza e o Panteísmo - Parte IX - Deus e a Natureza


Antes de tudo, será oportuno relembrar o significado dos seguintes conceitos:

1. Natura Naturan – o processo ativo, o elã vital, as Leis naturais.
2. Natura Naturata – a natureza material, os rios, as montanhas, os animais, os vegetais, os homens, os ventos etc.

Graças ao prestigio de Spinoza, mesmo os leigos em Filosofia conhecem a tese básica de seu Sistema que diz: “Deus e a Natureza são a mesma coisa”.
Porém, ao contrário das análises equivocadas de alguns pseudos eruditos, a identificação a que o filósofo se refere acontece entre o divino e natura naturan; e não entre Ele o segundo tópico acima.
São idênticos, portanto, Deus e o processo ativo, o processo criativo, o elã vital, as Leis naturais. E porque o “divino” é o mesmo que aquilo que está além do concreto e da física, logo no inicio da obra, Spinoza adentra no aspecto metafísico da questão.
Afinal, sendo a Metafísica, nas palavras de Willian James: “o esforço de pensar com clareza até o significado final das coisas, descobrir a sua essência substancial no plano da realidade”, nada mais apropriado que utilizar essa ferramenta para se investigar a “Verdade” e atingir a mais elevada de todas as generalizações. Seguindo, então, essa trilha, Spinoza alicerçou a sua tese em três conceitos chaves:

1. Substância
2. Modo
3. Atributo

Sendo o Atributo, qualquer coisa ou acontecimento individual, pessoal, subjetivo. Qualquer forma ou formato que a Realidade assuma provisoriamente (um corpo, um pensamento, um planeta, uma ave, um espécie, um homem etc.). Todos eles são formatos ou “Modos” transitórios de uma Realidade eterna e imutável que está por “de trás” e “por baixo” dos mesmos. A “Realidade subjacente” a tudo, que para Spinoza, é a Substância* (ou Essência), colocada no topo da lista acima.
Três conceitos que ao se juntarem constituem o “UNO”, já que a natureza é constituída pela natura naturan (o processo ativo, criativo e vital) e naturata (o processo passivo, a matéria, a natureza criada, os rios, as montanhas, os animais, o homem etc.). Contudo, apesar dessa Unicidade, vale repetir que para Spinoza, Deus identifica-se apenas com a Essência, com o aspecto naturan, pois a igualdade entre o divino e a substância não poderia estar associada às meras cópias que estão no reino da natura naturata.
Todavia, como se falou algures, apesar dessa evidência, o equívoco de igualar Deus com reles fenômenos perceptíveis prosperou nas religiões do Ocidente de forma majoritária, principalmente porque interessava aos diversos cleros usar o Fabuloso, o Fantástico, o Miraculoso para exercer sua nefasta influência e o seu sórdido poder sobre as massas ignorantes.
Nas palavras do filósofo, em Epístola 21:

“Tenho uma concepção de Deus e da natureza totalmente diferente da que costumam ter os cristãos mais recentes, pois afirmo que Deus é a causa imanente, e não externa, de todas as coisas. Eu digo: tudo está e Deus; tudo vive e se movimenta em Deus. E isso eu afirmo com o apóstolo Paulo e, talvez, com todos os Filósofos da antiguidade, embora de maneira diversa da deles. Posso, até, arriscar-me a dizer que a minha concepção é a mesma que a dos hebreus de antigamente, se isso puder ser inferido de certas tradições, por muitíssimo alteradas ou falsificadas que possam ter sido. Contudo, estão totalmente enganados aqueles que dizem que meu propósito (...) é mostrar que Deus e a natureza, esta entendida por eles como uma certa massa de matéria corpórea, são uma e a mesma coisa. Eu não tive essa intenção”.

O universo concreto, o dos “modos”, está para Deus assim como uma ponte está para o projeto (para as Leis da matemática, da física e da mecânica), segundo o qual, ela foi construída. As Leis que a projetaram são a base de sua sustentação, a condição subjacente de sua existência. A sua Substância ou Essência. E tal como essa ponte, o mundo dos fenômenos é sustentado pelas Leis da Natureza, as quais, em última análise, são Deus. E como a “Vontade” de Deus e as Leis da Natureza são uma só realidade, fica evidente que todos os eventos são regidos pelo funcionamento mecânico dessas “Leis Invariáveis”, não sendo, em absoluto, caprichos de um Tirano sentado em seu trono de nuvens. O mecanismo que Descartes enxergou na matéria e no corpo físico, Spinoza ampliou para Deus e Mente (ou alma), reafirmando a tese de que o Universo é regido pelo Determinismo e não pelos desígnios arbitrários de um “Soberano do Mundo”, criado pela rude imaginação das massas e manipulado pelos seus exploradores.
Ademais, a ilusão antropocêntrica que leva o homem a imaginar todas as coisas e eventos como símiles ao seu viver, talvez seja a causa dos maiores e mais contumazes erros filosóficos e teológicos, pois ao reduzir às suas mesquinhas dimensões a grandiosidade da “existência em si”, o homem torna-se prisioneiro de conceitos, que embora sejam apenas relativos, causam-lhe profundas angústias.
É o caso, por exemplo, do Bom e do Mau, que normalmente são correlacionados a prêmios ou castigos divinos. Sobre isso, escreveu Spinoza no prefácio da “Ética”:

“Sempre, então, que qualquer coisa na natureza nos parecer ridícula, absurda ou nociva será porque temos apenas um conhecimento parcial das coisas e ignoramos, em geral, a ordem e a coerência da natureza como um todo, e porque queremos que tudo seja arranjado de acordo co os ditames de nossa própria razão; embora, na verdade, o que a nossa razão considere mau** não seja mau no que se refere à ordem e às Leis da natureza universal, mas só no que se refere às Leis de nossa natureza tomadas em separado. (...) Quanto aos termos bom e mau, nada indicam de positivo considerados em si mesmos. (...) Porque uma única coisa pode ser ao mesmo tempo boa, má e indiferente. Por exemplo, a música é boa para os melancólicos, má para as carpideiras e indiferente para os mortos”.

Mau e Bom; Feio e Belo etc. são conceitos que inexistem para a “Realidade Eterna”. São, na verdade, conceitos subjetivos, individuais, pessoais, sem nada que os sustente como essências. E essa constatação auxilia a escorar a negativa que Spinoza coloca contra a tese de que o “divino” seja um “Ser”, ainda que “Supremo”.
Negação, aliás, que não lhe é original, haja vista que as antigas filosofias já a traziam, como acontece, por exemplo, com o ideário do pré-socrático Xenófanes, em que o holandês se inspirou para argumentar na “Epistola 60” que:

“Quando dizeis que se eu não reconheço em Deus as funções de ver, ouvir, observar, desejar, e semelhantes (...), não sabeis de que tipo é o meu Deus, penso que acreditais não existir perfeição maior do que aquela que possa ser explicada pelos atributos citados. Isso não me admira; porque creio que um triângulo, se pudesse falar, diria igualmente que Deus é eminentemente triangular, e um círculo, que a natureza divina é eminentemente circular; e assim, cada qual iria imputar seus atributos a Deus”.

Desse modo, será possível observar que nem o intelecto nem a vontade humana estão inseridos na “natureza divina”; ou seja, não “estão” em Deus; já que a “Vontade de Deus” abarca todas as Causas e todas as Leis e o Seu intelecto é a soma de todas as mentes. A mente divina, segundo o filósofo, “é toda a mentalidade que se encontra espalhada pelo Espaço e pelo Tempo. (É) a difusa consciência que anima o mundo”.
E, de fato, todas as coisas são animadas em algum grau. A Vida ou Mente é uma face ou um aspecto de tudo aquilo que conhecemos, assim como a extensão (a matéria) é outra face ou aspecto. E são por essas duas faces, ou Atributos, mente e corpo, que percebemos como funciona a Substância ou Essência de tudo; ou seja, Deus.
Aliás, talvez, por esse prisma, seja possível dizer que Deus “possua” mente e corpo, mas é imperioso que se tenha em mente o sentido figurado da afirmativa, pois nem a mente, tampouco o corpo são Deus, haja vista que Ele é o conjunto de todos os processos mentais e moleculares que formam a dupla história do mundo. Ele é o conjunto das Causas e das Leis que constituem, as quais constituem, efetivamente, a “natureza divina”.
Na sequência adentraremos mais detalhadamente sobre essas faces da Realidade única.

Nota do Autor* - o termo “Substância” ensejou acaloradas discussões entre vários sábios durante o transcorrer do tempo. Cada qual se aferrando ao significado que julgava mais exato, sem que se lograsse qualquer consenso. Spinoza, porém, conseguiu sepultar algumas dessas versões equivocadas, como a que afirmava que Substância seria a matéria prima de qualquer objeto (como se a madeira fosse a Substância da cadeira, por exemplo), entre outras. Graças a ele, desde a citação em “Progresso do Intelecto” sob os nomes de “Ordem Eterna” e “Ordem Temporal”, a maioria se convenceu de que o significado mais correto para o conceito é o que diz que Substância é “algo” mais elevado, sublime, já que nela está a “Realidade última” de tudo. Com isso, o significado oriundo dos Filósofos Escolásticos – expresso pela tradução da palavra grega “ousia” (particípio presente de “einai (ser)”) indica o “Ser interior”, a “Essência”, a “Existência efetiva*” de algo – passou a prevalecer e se estabeleceu que a Essência (ou Substância) é a forma (ou a fôrma) imutável, eterna, da qual provém todo o resto. Coisas, objetos, pensamentos e Seres que, a rigor, não passam de simples cópias ou “modos” provisórios, alteráveis, finitos.

Nota do Autor – mau**, respeitada a grafia original.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

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terça-feira, agosto 12, 2014 - 22:51

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