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Sopa de Letras
Gostaria de partilhar agora com todos vós uma brincadeira que fiz para o Funchal, capital da Madeira, pequena pérola do Oceano Atlântico onde me deito todos os dias.
Informo que a minha escrita foi influenciada sendo que para este conto era obrigatório incluir as palavras "poeta", "letras", "livro" e "Funchal".
Deste modo, eis a minha pequena brincadeira....
“A sopa da letras”
Era uma vez uma sopa de letras, igual a tantas outras, feita em água e especiarias, aquecida com amor e ternura, repleta de pequenas letrinhas que bailavam e dançavam umas contra as outras, batendo nos rebordos e recantos do prato frio e cinzento.
Não havia tempo nem espaço, apenas festa e brincadeira por entre as letras, onde os “as” surfavam nas ondas, os “pês” brincavam aos cowboys, os “cês” e os “dês” usavam os “is” como trampolim para atingir alturas inimagináveis, enfim uma alegria constante que parecia não querer ter fim.
Porém o senhor do livro, aquele a quem alguns chamam de poeta, tinha outras intenções. Havia feito uma sopa para o jantar e procurava, diga-se que de uma forma original, satisfazer o apetite com vontade mas também com cultura e diversão.
Durante a sua merenda dava por si a juntar letrinhas e comendo palavras como fazia durante todo o dia, só que ali já o fazia de uma forma mais literal e objectiva.
Juntava na sua grande colher um “l”, um “i”, um “v”, um “r” e um “o”, e ria-se sozinho cantarolando “Ora cá vou eu devorar mais um livro”, palavra que tinha como predilecta, tentando sempre repeti-la a cada trago, entoando gemidos de satisfação e prazer a cada colherada fatal.
As letras, essas coitadas, fugiam nadando o mais que podiam, escondendo-se umas nas outras, saltando e pulando para territórios difíceis de uma colher alcançar, tentando passar despercebidas pelo poeta, para não acabarem no estômago do rude comedor.
Conta quem lá esteve que viram “éles”se agarrarem para formarem um “agá” e “ós” gritando a pulmões cheios “Eu sou um zero, eu sou um zero!”, embora nada escapasse ao grande poeta e à sua pesquisa pela palavra fulcral.
Um massacre, uma devastação, sem fuga possível, num cenário de terror onde nada escapava, nenhuma letra brincava agora, todas temiam o pior sem ter para onde fugir, num prato redondo sem furos nem rachas que permitisse sequer sonhar com uma possível fuga vitoriosa.
A água já rasava o fundo do prato, as letras já saltitavam que nem peixes num rio acabado de secar e o poeta, esse, de sorriso rasgado, não dava qualquer sinal de fadiga ou cansaço.
“Ai meu Deus que é agora!”, suplicava mais um “i” ao cair na colher, “Abraça-me que o nosso fim está perto!”, soluçava um “v” para um “l”, e todos choravam e pensavam nos seus na hora da despedida, naquele destino cruel e inglório.
O raspar metálico da colher parecia descrever uma marcha fúnebre que ecoava nos ouvidos de todas as pequenas letrinhas, que viam agora a água esbarrar-lhes nos seus pés, umas no meio do prato, de braços para os céus a pedir clemência, outras correndo sem cessar tentando fugir ao seu destino e algumas, mais resignadas e conformadas, sentavam-se pacientemente a um canto soltando de vez em quando um “Eu nem sequer gostava muito de ser um “v”.
Estava cada vez mais perto do fim esta carnificina, por todo o prato já se contabilizavam os mortos e os feridos, com “erres” desfeitos e espalhados por toda a parte a gritar “As minhas pernas! Levaram-me as pernas!”, viam-se “is” a perguntar “O meu ponto? Alguém viu o meu ponto?” e “ós” que falavam sozinhos, após metade do seu corpo ser ceifado pela colher, deixavam escapar entre dentes “Meu Deus…Já fui perfeito…Agora pareço um simples C…Se os meus pais vissem esta figura…”.
Por entre todo este episódio utópico há que realçar o poeta, que olhava sempre para a colher e exclamava “Mais um livro!”, seguido de um “Este era bom!”, variando para um “Nunca comi este!”, ou então um simples “Que livro tão bom”, alheio a tudo o que se passava á sua volta, sem qualquer respeito ou pudor pelas letrinhas que nada haviam feito, nada tinham a pagar, apenas o facto da sua existência e a sua consistência deliciosa tornaram-nas alvos apetecíveis.
Já estava prestes a acabar, as últimas sete letras foram alinhadas em fila na colher, com o auxilio da mão do poeta, dirigindo-se para a boca do mesmo, destino que seria a sua última casa, local onde iriam padecer de uma forma dramática para o prazer de quem não o merecia.
Porém algo aconteceu; de repente o poeta olhou para a colher durante largos segundos, deixando-se ficar imóvel e pensativo.
As sete letrinhas amedrontadas não sabiam o que pensar, desejando que o seu fim fosse rápido e indolor dado que esta demora apenas aumentava o stress e o desconforto, sendo que o tempo agora é inimigo pois a vontade de viver já havia há muito partido para outras paragens.
Uma lágrima escorreu lentamente pela face do poeta e em seguida este viu-se a posar a colher na mesa, levantar-se e virar as costas á sua refeição.
Reza a história que aquelas sete letrinhas, viveram muitos anos e tiveram os seus momentos de felicidade durante muito tempo após esta experiência e diz quem sabe que o poeta, naquela noite chorou e chorou pela sua pátria, saudades da sua terra, que havia abandonado à muito em procura de uma vida melhor, e que ao deparar-se com as sete letrinhas recordou tudo e não pôde acabar a sua refeição.
Assim sendo, anos mais tarde, juntam-se as sete letrinhas novamente para recordar aquele momento, dispondo-se em fila para a foto da memória, pois estes amigos sobreviveram ao massacre e estão gratos para sempre, e ao soar do flash da máquina pôde ver-se da esquerda para a direita, todos de mão dada, o “F”, o “U”, o “N”, o “C”, o “H”, o “A” e o “L” e contam os que viram a foto, que nela pode então ler-se a razão para toda a história e o porquê da decisão do poeta.
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