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Voltaire e o Iluminismo francês - Parte IV - Ensaio sobre os Costumes
Essa punição foi-lhe imposta devido à publicação feita em Berlim, Alemanha, do Ensaio que veremos adiante. O célebre “Ensaio sobre os Costumes e o Espírito das Nações e sobre os Principais fatos da História, de Carlos Magno a Luis XIII”. Um longo titulo para aquele que segundo Will Durant foi o mais volumoso, o mais característico e o mais ousado de seus trabalhos.
Voltaire o começara quando ainda residia com Madame du Chatelet em Cirey. Aliás, o motivo para tê-lo iniciado veio da própria amada e de suas criticas a forma como a História moderna era escrita.
Segundo ela, um amontoado de fatos vulgares, personagens idem, lugares comuns, repetidas descrições de batalhas irrelevantes, travadas por facções igualmente desinteressantes. Um tedioso exercício repetitivo que ela abandonara ao sentir que nada lhe acrescentava. Ainda segundo ela, se a história antiga tinha o seu encanto e lhe ofertava novos conhecimentos por contar as vidas, os costumes e os fatos de nações e de personagens deveras importantes, o mesmo não se repetia com os acontecimentos da modernidade.
Convenhamos que se trate de uma censura pertinente e que ainda hoje é válida; sendo, em verdade, a maior causa de seu abandono por parte dos estudantes hodiernos, que logo se fartam da prolixidade de datas, nomes e eventos que em nada lhes interessa.
Voltaire também concordava com essas observações, mas, ao contrário da mesma, ela via a importância da História no contexto geral do conhecimento humano. E foi para harmonizar essa necessidade com aquelas críticas, que ele decidiu reescrever a disciplina, modificando o seu objeto de estudo e o próprio estilo literário para torná-la prazerosa.
Para tanto, ele decidiu acrescentar Filosofia às narrativas, traçando abaixo do fluxo de acontecimentos narrados, os pensamentos humanos que os causaram. A seu ver, a solução estaria em não apenas narrar os fatos, mas em ir além e investigar as causas, os motivos que o causaram e as consequências que dele resultaram. Em suas palavras:
“Só os Filósofos deveriam escrever História. (...) Em todas as nações, a história é desfigurada pela fábula, até que por fim a Filosofia vem iluminar o homem; e quando finalmente ela chega em (sic) meio a essa escuridão, encontra a mente humana tão cega por século de erros, que dificilmente pode desenganá-la; encontra cerimônias, fatos e monumentos empilhados para provar mentiras. (...) A história, afinal de contas, nada mais é do que uma série de peças que pregamos nos mortos. (...) Transformamos o passado para que fique de acordo com os nossos desejos para o futuro, e o resultado final é que a história prova que qualquer coisa pode ser provada pela história”.
Logo após a idealização do projeto ele começou um árduo trabalho de pesquisa que o levou a se debruçar sobre centenas de livros, de manuscritos, cartas, diários e tudo que pudesse contar a história real, sem as falcatruas oficiais que habitualmente lhe são colocadas.
Estudou minuciosamente alguns volumes oficiais, como, por exemplo, “História da Rússia”, “História de Carlos XII”, “A Era de Luis XIV”, “A Era de Luis III” e os outros a que teve acesso. Porém, o estudo desses compêndios sempre foi acompanhado do extremo zelo de confrontar as versões que eles apresentavam com as que ele recolhia em suas outras fontes acima citadas, nos documentos oficiosos, nos documentos apócrifos e, até, com as narrativas dos eventuais sobreviventes dos fatos estudados.
Um trabalho de garimpeiro, tal a sua volúpia; e de joalheiro, tal a sua precisão. E que não terminou nem mesmo após a publicação da obra, pois ele fazia, em cada nova edição, as correções que surgiam.
Após a coleta inicial de dados, ele partiu para a redação do texto usando como critério principal a seleção dos fatos, pois, a seu ver, a prolixidade de minúcias não seria desejável pelos motivos que já se citou, além de apenas repetir as obras que já existiam. Segundo ele:
“Detalhes que não levem a nada são, para a história, o que a bagagem é para um exército: impedimenta; temos de olhar para as coisas em grande escala, pela simples razão de que a mente humana é muito pequena e afunda sob o peso das minúcias”.
Assim, em seu ponto de vista, dever-se-ia adotar a diagramação usada para compor um Dicionário e dispor os fatos, realmente importantes, em determinada ordem (alfabética, cronológica etc.) para que o leitor pudesse ir diretamente ao ponto que lhe interessasse. Ter-se-ia, pois, um “Dicionário Histórico” semelhante a um léxico de palavras.
Mas, o seu objetivo real não se resumia em criar facilidades para o leitor. O que ele queria, de fato, era encontrar um principio unificador que entrelaçasse a história de toda a Europa. Um “fio” que unisse “todas as histórias”. E esse “fio” seria a “Cultura” ou, melhor, a “História da Cultura”.
Por isso, a sua obra não trata do General sicrano, do Político beltrano, da Batalha tal, etc. Ela focaliza o “movimento”, “as forças”, “as massas”. Não disseca a natureza das nações, mas, sim, a natureza da espécie humana; não se debruça sobre as guerras, os armistícios, os conchavos etc., mas, sim, sobre a marcha, o desenvolvimento da mente do homem. Para ele:
“As batalhas e as revoluções são a menor parte do plano; esquadrões e batalhões conquistando ou sendo conquistados, cidades tomadas e retomadas, são comuns a toda história. (...) Tirem as artes e o progresso da mente, e nada encontrarão (em qualquer era) de notável que seja suficiente para atrair a atenção da posteridade. (...) Quero escrever uma história, não de guerras, mas da sociedade1; e apurar como viviam os homens no seio de suas famílias e quais eram as artes que costumavam cultivar. (...) Meu objetivo é a história da mente humana, e não um mero detalhe de fatos insignificantes; tampouco me preocupo com a história de grandes senhores...; mas quero saber quais os passos pelos quais os homens passaram do barbarismo para a civilização”.
Uma guinada de 360º na historiografia de então que se constituía, basicamente, de narrativas, nem sempre fiéis aos fatos, e de glorificações a quem tivesse o poder de escrevê-la.
E, por isso, talvez inconscientemente e ainda involuntariamente, ele tenha colocado mais lenha na grande fogueira que se iniciava e que culminou com a derrocada do Absolutismo, cujo exemplo clássico é a queda da dinastia dos Bourbons na Revolução Francesa. E talvez também inconscientemente, tenha feito a primeira “Filosofia da História”; ou seja, a primeira sistematização de “causa e efeito” no desenvolvimento da mente europeia. A primeira busca pela “essência” do acontecimento.
E como essa “essência” só pode estar na natureza concreta, na física, o abandono das “causas metafísicas (Deus mandou exterminar os mouros, por exemplo)” foi automático. E foi, justamente por esse abandono, que na obra o Iluminismo se mostrou de forma mais cristalina. Mostrou claramente o poder da Razão, das Luzes, do Saber racional, vencendo as sombras da superstição teológica e política. “Iluminação” de tamanha magnitude que para vários Pensadores, foi o livro de Voltaire que deu a base da moderna ciência histórica. Eruditos do porte de Gibbon, Niebuhr, Buckle, Grote e outros, são, certamente, seus agradecidos discípulos.
Porém, como sempre acontece, esse reconhecimento só aconteceu a posteriori, pois, na época, o trabalho de Voltaire suscitou apenas temor e ressentimento, do qual resultou o exílio citado no inicio.
Afinal, o “maior de seus livros” ofendeu a praticamente todos os segmentos da sociedade. Algumas pessoas se sentiram diretamente atingidas, enquanto outras, indiretamente, pois se o Clero foi particularmente afrontado pela adoção que o filósofo fez dos seguintes pontos de vista:
1. A fulminante conquista do paganismo pelo Cristianismo, paradoxalmente, enfraqueceu o poder de Roma, deixando-a vulnerável aos bárbaros invasores2;
2. Pelo desdém que ele dedicou à Judeia e à doutrina cristã, para tratar com muito mais cuidado e amplitude das religiões orientais (sem esboçar qualquer restrição àquelas fés que eram consideradas demoníacas), tornando, assim, os dogmas católicos apenas relativos e não mais absolutos.
Os pobres e ignorantes homens do povo ressentiram-se por ele ter-lhes tomado um objeto de fé, de devoção, que os consolava de suas inumanas condições de vida, sem lhes oferecer nada em troca.
Ademais, de chofre, a Europa como um todo, viu que o Oriente e a Cultura oriental eram maiores que ela mesma. Que ela estava longe de ser o “centro do mundo”, como se imaginava.
Portanto, nada mais previsível que todo europeu passasse a ver em Voltaire um traidor, um inimigo a ser banido. E o rei o baniu.
Nota do autor1 – o leitor não deixará de perceber nesse trecho a semente das disciplinas de Sociologia e de Antropologia. E não estará errado em creditar ao filósofo o desenvolvimento posterior de ambas.
Nota do Autor2 – posteriormente o historiador Gibbon (Edward – 1737-1794 – Grã Bretanha) retomou o assunto, consolidando a tese voltariana.
Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.
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