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Yoanna
O seu grande confidente, o rio, dissera-lhe: “Yoanna não te deixes atrasar mais por desculpas e por desvios de um sem número de acasos. É lá que estás e é lá que te esperam. Algum dia a consciência virá por ti, a tua realidade se imporá…”
Escutou, interiorizou e decidiu-se. Regressou à sala de actos.
À entrada aquele odor de efervescência e de adrenalina suado. Deixou o olhar correr o soalho até bem ao fundo da sala. Envolveu-se e contribuiu para o silêncio inundado de muitas vozes daquele espaço e viu-o. O espelho. O experimentado espelho, sábio da técnica, conselheiro do caminho da perfeição. Pedagogo, pai… Reconheceram-se. Fitou-o, abraçou-o com o íntimo. Partilharam as vozes do silêncio.
E o espelho, feliz em bagos prenhes de carinho, dobrou-se em inusitada vénia, revelando todo um mundo guardado no seu baú opaco.
Projectado na sua pele vítrea fria o calor de muitos momentos, como um álbum de memórias, deixou correr todos os afectos, impressões de anos, tentações e sensações, notas, imagens, realidades… do universo de Yoanna. Esta, algo trémula, trocou de pé no equilíbrio da sua gravidade, trocou de olhar e pintou de sentir os sentidos, invadida, trespassada por todos aqueles casulos de vivências. E tanto que havia ficado para trás, por escolha ou por força doutras forças.
Reagiu e injectada de nervo chutou para canto os sapatos de tacão alto, acariciou nas mãos da imaginação os sapatos de pontas mágicos, transformou o tailler em maillot sob tutu (tão justo que revelava as formas leves e soltas) e ficou pronta para o lago dos cisnes. Dos cisnes ou de qualquer outro dos sonhos alados que lhe florearam de imediato o céu impregnado na cobertura da sala. A música, tamanha música redonda, cheia, omnipresente do passado a passos bailados em desejo para o futuro, sacudia-a, tentava-a como cachorro brincalhão à espera de companhia.
E, descalça e nua, Yoanna tingiu o espelho com bailado de doce fúria e desejo, bailado de visita a todos os seus seres espalhados nos anos, bailado de saudade, bailado de dor e felicidade, bailado de riso e lágrimas, bailado de memórias e memorável…
O espelho, ávido de atenção, registou cada saboroso movimento, como imagens sequenciais de lanterna mágica. Guardou-as no seu dorso opaco. Ficou tão brilhante e límpido, recolhendo-se por segundos, como mármore extasiado.
Dos pés corriam pequenos traços de sangue, do corpo ofegantes vapores transpirados elevavam-se como preces, dos lábios um beijo sorridente desmascarava a alma, agora tranquila, em paz. A pátria reconstruída, a nação reunificada e o império coeso novamente.
Retomou os sapatos de tacão e o tailler, era tempo de regressar a casa. À casa de agora, à casa de sempre. Ao lar que recuperara e à família que retomara.
Despediu-se do espelho, em silêncio, encostou-lhe o coração.
Ia solta, em dança interminável para os salões da vida que a esperavam.
E na sala, o espelho mostra a quem por lá passa e conseguir escutar as vozes no silêncio, a pureza e a bondade do ser humano… Yoanna.
Andarilhus “(º0º)”
XIII : V : MMVIII
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Comentários
Re: Yoanna
Uma vénia por tão intimo momento e tanto saber sobre o "lado" do espelho.
Um beijo, Sábio.
Re: Yoanna
Um espelho mágico que liberta a mulher nela própria :-)
Este texto está genial.
Bjs
Re: Yoanna
Bem... acho que tenho que ler-te mais... gostei.
Re: Yoanna
1º acto:
O jogo, linguagem corporal dá-se..o qual poderia chamar-lhe "Fantasmagórico".
2º acto:
As imagens precipitam-se em apoteose, pelos movimentos conseguidos através da consciência artistica, que remetem-me para a conjugação cénica/ilusão.
3º acto:
Grandioso bailado. actua plenamente na intuição, no firmamento sossegado do fundo do espelho, prolongando-se após os panos fecharem-se...
...levanto-me e aplaudo.
Beijo*