Fernando Pessoa- O livro do desassossego ( I Parte)
Pertenço, porém àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços em que há ao lado.
O espírito humano tende a criticar porque sente e não porque pensa.
A decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida.
Alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezados do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.
Sabemos bem que toda a obra tem de ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.
Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas – uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
A glória nocturna de ser grande não sendo nada!
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.
…não me pesar muito o conhecimento que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim.
Vivo mais porque vivo maior.
Tenho amor a isto, talvez porque não tenho mais nada para amar – ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.
A arte que mora na mesma rua que a vida, porém num lugar diferente, a arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só num lugar diferente.
Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o céu.
Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de manhã ter pena de ter tido pena de hoje – grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos.
O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios.
Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma.
Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido.
Um hálito de música ou sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.
Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir.
Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quando me debrucei na janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.
Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhece!
O absurdo, a confusão, o apagamento – tudo que não fosse a vida…
Oiço cair o tempo. Gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair.
Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio.
Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me…
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
http://topeneda.blogspot.pt/
Submited by
Poesia :
- Login to post comments
- 3301 reads
other contents of topeneda
Topic | Title | Replies | Views | Last Post | Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/Thoughts | Ideologias Fósseis | 0 | 5.644 | 08/31/2011 - 07:44 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Desafio da raça humana | 0 | 2.287 | 08/31/2011 - 07:41 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Cultura da baixa produtividade | 0 | 2.607 | 08/31/2011 - 07:38 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Exercer o controlo sobre o destino | 0 | 2.540 | 08/31/2011 - 07:31 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Desafio Hercúleo | 0 | 4.588 | 08/31/2011 - 07:28 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Cordão de solidariedade | 0 | 4.273 | 08/31/2011 - 07:24 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | A violência faz parte do curriculum | 2 | 3.624 | 08/30/2011 - 18:02 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | A revolução preserva a vitalidade | 0 | 1.700 | 08/30/2011 - 08:14 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Pintura de um Sobrevivente | 0 | 2.894 | 08/29/2011 - 11:51 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Ideologia | 2 | 1.467 | 08/29/2011 - 07:37 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | FMI | 2 | 3.530 | 08/28/2011 - 21:10 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Obedecer é para qualquer um | 2 | 2.649 | 08/28/2011 - 20:04 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Sentimento de impunidade | 0 | 2.564 | 08/28/2011 - 14:40 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | A justiça é neve no Verão | 0 | 2.455 | 08/28/2011 - 14:37 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | O nu mortifica | 0 | 3.562 | 08/27/2011 - 10:47 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Evolução biológica | 0 | 4.000 | 08/27/2011 - 10:42 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Se dessem olhos ao povo o que faria ele? | 0 | 2.469 | 08/27/2011 - 10:30 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Loucos precisam-se ! | 0 | 3.569 | 08/27/2011 - 10:16 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Desejar de não precisar dos outros | 0 | 2.442 | 08/27/2011 - 10:04 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Falta de substância | 0 | 2.747 | 08/27/2011 - 09:59 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | O Pântano | 0 | 2.521 | 08/27/2011 - 09:56 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Carolina Beatriz Ângelo (1878-1911) | 2 | 2.594 | 08/25/2011 - 17:24 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Estado da Educação | 0 | 2.988 | 08/25/2011 - 13:44 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Aquecimento global | 0 | 1.681 | 08/25/2011 - 13:29 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Outra opção | 0 | 3.074 | 08/25/2011 - 13:18 | Portuguese |
Add comment