Fernando Pessoa- O livro do desassossego ( III )

Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.

É que a banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é estúpida ou áspera, um complemento natural da alma.

É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a Lua como se houvesse maneira de a obter.

Se é; foi isso mesmo. Se não é, passe por o que poderia ser, e a intenção valha pala metáfora que falhou.

À porta da cabana que não tive sentei-me ao sol que nunca houve, a gozar a velhice futura da minha realidade cansada (com o prazer de a não ter ainda).

Dormir! Adormecer! Sossegar! Ser uma consciência abstrata de respirar sossegadamente; sem muno, sem astros, sem alma – mar morto de emoção refletindo uma ausência de estrelas.

O peso de sentir! O peso de ter que sentir!

Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos.

As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo Deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como forma criadas.

Se viajasse, encontrava a cópia débil do que já vira sem viajar.

Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assinar.

Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver.

O que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui.

Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde se não está…

Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho e faltam a esse também.

O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a perfeição do homem que não há; O homem perfeito do budista a perfeição de não haver o homem.

A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente.

Muito mais longe está o homem superior do homem vulgar que o homem vulgar do macaco.

Renega-se a mulher mas não a mãe, não o pai, não o irmão.

Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender.

Pensar? Sentir? Como tudo cansa se é uma coisa definida.

Há metáforas que são mais reais do que a gente anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana.

Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou os ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta que aquilo é real.

São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias na nossa alma.

O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória, nem ilusão, o não ter passado nem futuro.

A violência foi sempre uma forma esbugalhada de estupidez humana.

Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível.

O que eu quero deveras, com toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é ver o azul começar a surgir de entre elas, verdade certa e clara porque nada é nem querer.

Em tudo sou o que não sente, para que sinta.

Os homens de acção são os escravos involuntários dos homens de entendimento.

A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.

http://topeneda.blogspot.pt/

Submited by

Tuesday, October 30, 2012 - 12:06

Poesia :

No votes yet

topeneda

topeneda's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 7 years 29 weeks ago
Joined: 08/12/2011
Posts:
Points: 4308

Add comment

Login to post comments

other contents of topeneda

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Musica/Other Deus te salve Rosa 0 6.247 10/29/2011 - 16:28 Portuguese
Musica/Other Vai, Maria vai 0 2.951 10/29/2011 - 16:25 Portuguese
Musica/Other Qualquer dia 0 4.187 10/29/2011 - 16:22 Portuguese
Musica/Other S. Macaio 0 2.744 10/29/2011 - 16:14 Portuguese
Musica/Other Oh! Que calma vai caindo 0 3.580 10/29/2011 - 16:10 Portuguese
Musica/Other Baila 0 2.670 10/29/2011 - 16:07 Portuguese
Musica/Other Cantares de Andarilho 0 3.907 10/28/2011 - 21:37 Portuguese
Musica/Other VEJAM BEM 0 2.970 10/28/2011 - 21:34 Portuguese
Musica/Other Senhora do Almortão 0 4.089 10/28/2011 - 21:31 Portuguese
Musica/Other Chamaram-me cigano 0 3.397 10/28/2011 - 21:27 Portuguese
Musica/Other Endechas a barbara escrava 0 1.602 10/28/2011 - 21:25 Portuguese
Musica/Other Teto da montanha 0 3.458 10/28/2011 - 21:22 Portuguese
Musica/Other Saudadinha 0 2.634 10/28/2011 - 21:18 Portuguese
Musica/Other O Cavaleiro e o Anjo 0 2.964 10/28/2011 - 21:15 Portuguese
Musica/Other Canção de embalar 0 3.030 10/28/2011 - 21:07 Portuguese
Musica/Other Resineiro Engraçado 0 4.009 10/28/2011 - 21:05 Portuguese
Musica/Other Balada do sino 0 4.150 10/28/2011 - 21:01 Portuguese
Musica/Other Natal dos simples 0 3.490 10/28/2011 - 20:59 Portuguese
Musica/Other Ronda dos paisanos 0 3.268 10/28/2011 - 19:41 Portuguese
Musica/Other Elegia 0 3.253 10/28/2011 - 19:38 Portuguese
Musica/Other O Pastor de Bensafrim 0 2.953 10/28/2011 - 19:31 Portuguese
Musica/Other Altos Castelos 0 3.240 10/28/2011 - 19:27 Portuguese
Musica/Other Minha mãe 0 2.199 10/28/2011 - 19:23 Portuguese
Musica/Other Na fonte está Leonor 0 2.375 10/28/2011 - 19:19 Portuguese
Musica/Other Trovas antigas 0 3.197 10/28/2011 - 19:14 Portuguese