Eurico O Presbítero
A podridão tinha chegado ao âmago da árvore, e ela devia secar. O próprio clero se corrompeu por fim (...) e a maioria do povo preferia a infâmia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos gloriosos dos combates e à vida fadigosa da guerra.
(…) era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las.
Uma destas revoluções morais que as grandes crises produzem no espírito humano se operou então no moço (…)
A maior das humanas desventuras, a viuvez do espírito (…) O entusiasmo e o amor tinham ressurgido naquele coração que parecera morto, mas transformados: o entusiasmo em entusiasmo pela virtude; o amor em amor dos homens. E a esperança? Oh, a esperança, essa é que não renascera!
O povo rude (…) não podia entender esta vida de excepção, porque não percebia que a inteligência do poeta precisa de viver num mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites.
(…) esmagado o seu coração pela soberba dos homens.
O Evangelho é um protesto, ditado por Deus para os séculos, contra as vãs distinções que a força e o orgulho radicaram neste mundo de lodo, de opressão e de sangue (…) a única nobreza é a dos corações e dos entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela.
(…) insolências que costumam acompanhar e encher de amargor para os miseráveis a piedade hipócrita dos felizes da terra.
(…) não perceberiam como, tranquila a consciência e repousada a vida, um coração pode devorar-se a si próprio.
Nem a todos dá o túmulo a bonança das tempestades do espírito.
(…) contemplava este horrível espectáculo de uma nação cadáver (…)
Hipócritas dos afectos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?
Arrastava-me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém acorda, senão depois de morrer.
Sabeis o que é esse despertar de poeta?
É o ter entrado na existência com um coração que trasborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntarem-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele:
É o ter dado às palavras — virtude, amor pátrio e glória — uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia:
É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se e a esperança nas causas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo ténue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura.
Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de desprezo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as acções dos homens. É então que para ele há unicamente uma vida real.
(…) e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos.
Hoje, a cobiça assentou-se no lugar da equidade: o juiz vende a consciência no mercado dos poderosos, como as mulheres de Babilónia vendiam a pudicícia nas praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia.
Hoje, (…) a coroa é uma conquista, a lei vontade do desonrado vencedor de pelejas domésticas, a liberdade palavra mentida.
Lá, no tumulto dos cortesãos, onde o amor é cálculo ou sentimento grosseiro, terás achado quem te chame sua, quem te aperte entre os braços, quem tivesse para dar a teu pai o preço do teu corpo e te comprasse como alfaia preciosa para serviço doméstico. O velho estará contente, porque trocou sua filha por ouro.
A isto chama prudência o mundo estúpido e ambicioso; a isto, que não é mais do que uma prostituição abençoada sacrilegamente perante as aras sacrossantas.
O sono ou a vigília, que me importa esta ou aquele? As horas da minha vida são quase todas dolorosas; porque a imaginação do homem não pode dormir .
Para o povo, ignorante e impiamente crédulo, a noite é cheia de terrores; em cada folha que range na selva ele ouve um gemido de alma que vagueia na terra; em cada sombra de árvore solitária que se balouça com a aragem sente o mover de um fantasma; as exalações dos brejos são para ele luz de demónios, alumiando folgares de feiticeiras.
Mas, quando jaz no leito do repouso, o seu dormir é tranquilo. Ao cruzar os umbrais domésticos esses terrores sumiram-se com os objectos que os geraram. A sua alma parece despir-se da fantasia grosseira, como o corpo se despe da estringe áspera que lhe resguarda os membros.
(…)as carícias feminis, facilmente compradas e profundamente mentidas, atrás das quais correra loucamente outrora, tinham-se-lhe tornado odiosas; porque o amor, com toda a sua virgindade sublime, lhe convertera em podridão asquerosa os deleites grosseiros que o mundo oferece à sensualidade do homem.
Não há palavras que possam erguer um espírito que deu em terra.
A vingança é mais segura inspiração, porque é o sonho perene do homem desperto, quando vê assim falhar a justiça do céu, se é que nele há justiça.
A traição, semelhante ao veneno recentemente bebido, que gira nas veias e ainda não aparece no aspecto, está por toda a parte.
Examina bem a consciência, e dize-me qual é para os corações puros e nobres o motivo imenso, irresistível das ambições de poder, de opulência, de renome? É um só — a mulher: é esse o termo final de todos os nossos sonhos, de todas as nossas esperanças, de todos os nossos desejos.
Para o que encontrou na terra aquela que deve amar para sempre, aquela que é a realidade do tipo ideal que desde o berço trouxe estampado na alma, a mira das mais exaltadas paixões é a auréola celestial que cinge a fronte da virgem, ídolo das suas adorações.
Para o que anda, por assim dizer, perdido nas solidões do mundo, porque ainda não descobriu a estrela polar da sua existência, o astro que há-de iluminar-lhe a noite do coração, como o Sol com os seus primeiros raios ilumina as trevas de um templo, para esse a mulher é uma ideia vaga e confusa, mas formosa e que- rida. Não a conhece, não sabe onde esteja a imagem visível da filha da sua imaginação, e, todavia, é para lhe pôr aos pés glória, pode- rio, riqueza, que ele cobiça tudo isso. Tirai do mundo a mulher, e a ambição desaparecerá de todas as almas generosas.
Realidade ou desejo incerto, o amor é o elemento primitivo da actividade interior; é a causa, o fim e o resumo de todos os afectos humanos.
Os montanheses do Hermínio na Lusitânia, aborígenes, talvez, daquele país, os quais, na época das invasões germânicas, bem como já na da conquista romana, a custo haviam submetido o colo ao jugo de estranhos (…) Requeimados pelo sol ardente do Estio ou pelo vento gelado dos invernos rigorosos das serranias, incapazes de conhecerem a vantagem da ordem e da disciplina, estes homens rudes combatiam meios nus e desprezavam todas as precauções da guerra. O seu grito de acometer era um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes ouvia pedir compaixão; porque, vencedores, não havia a esperar deles misericórdia.
O Sol passava envolto na sua glória, indiferente às angústias daqueles que, em seu ridículo orgulho, se chamavam monarcas e conquistadores do mundo; passava, sem lhe importar se os vermes vestidos de ferro chamados guerreiros se despedaçavam uns aos outros, com o delírio insensato das víboras no momento dos seus amorosos ardores.
E tu, renegado, sai daqui! Possa eu nunca mais ver-te o rosto e esquecer-me na hora de morrer de que nessas veias gira o sangue de nossos nobres e generosos avós.
O cutelo ou a prostituição é o que os árabes oferecem à inocência. Eu escolho o cutelo: a morte vale mais que a desonra.
(…) um homem cujo coração é há longo tempo morto, porque as paixões o queimaram; mas cuja inteligência por isso mesmo é mais fria.
(…) todos os vestígios da cólera tinham desaparecido: só nele se lia a ansiedade de um amor imenso, que precisa, mais que do gozo brutal.
Abomino-te... Não!... Enganei-me. Desprezo-te.
Porque a abelha zumbiu aos ouvidos do caçador faminto, arrojará ele para longe o mel do seu favo e esmagará o insecto?
O que lhe tumultuava no coração não tem nome na linguagem dos homens: era mais que a loucura.
Quero viver: o viver é delicioso.
Nas raias da vida, aquele beijo, primeiro e último, era purificado pelo hálito da morte que se aproximava: era inocente e santo, como o de dois querubins ao dizer-lhe o Criador: «Existi!»
www.topeneda.blogspot.pt Alexandre Herculano
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